sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Un tal Lucas!

Julio Cortazar: ponte perfeita entre Buenos Aires e Paris
Certamente um dos escritores que mais marcaram a minha juventude foi o argentino Julio Cortázar. Li quase tudo o que ele escreveu e ainda tive o privilégio de entrevistá-lo para a revista Panorama, no início dos anos 80, em seu apartamento na calle Montevideo, em Buenos Aires.
Cortázar nasceu na Bélgica, de pais argentinos, e fez a ponte perfeita entre Buenos Aires e Paris. Tinha uma obsessão marcante: as aventuras pelos metrôs, que tanto podiam ser em uma cidade como em outra. Não sei dizer se foi o momento em que eu o conheci, lendo seus contos maravilhosos, mas ele sempre me reportava ao tango Buenos Aires Hora Zero, de Astor Piazzola.
Eu via Cortázar nas ruas escuras, nas vielas e nas grandes avenidas de Buenos Aires. Sua inquietação e a loucura dos seus personagens me davam uma incrível sensação de contemporaneidade. Dividíamos a paixão pela mesma atriz: Glenda Jackson, a quem ele dedicou um conto maravilhoso chamado “Queremos tanto a Glenda!”, e até pelo mesmo filme, “Mulheres Apaixonadas”, de Ken Russel.
Cortázar era completamente tarado por Maria Bethânia. Tinha todos os discos. E por Oswald de Andrade. Aliás, falava do modernismo brasileiro com uma desenvoltura impressionante. Conhecia até o palhaço Piolim.
Cortázar tinha pavor de congestionamentos claustrofóbicos. Um de seus contos mais famosos trata de um, nas cercanias de Paris, depois de um feriado prolongado, quando todas as rodovias ficaram literalmente paradas.

Glenda Jackson; musa em comum
 A paralisação levou ao convívio entre as pessoas que ocupavam os carros. Rolou até uma história de amor. E quando tudo parecia fazer reerguer o melhor dos mundos, o trânsito começou a andar e o sonho se desfez. As pessoas nunca mais se encontraram.
Mas, o conto que mais me entusiasma foi um dos últimos que ele escreveu. Está no livro “Un tal Lucas”. Portenho até a gema. Conta a história de um cidadão que ao final da tarde chega a seu apartamento, provavelmente no Barrio Norte. Uma criatura está a sua espera para dividir a sua solidão.
A ansiedade é tanta que ele nem se banha. Os dois partilham da intimidade com volúpia e se refestelam na cama ao final, contemplando o movimento dos faróis dos carros que contornavam Ayacucho com Juncal e se refletiam no teto do quarto. Fazia muito calor e ele estica os braços em busca de cigarros.
Encontra o maço de Jockey Club, mas não acha os fósforos. Levanta-se, remexe nas gavetas, vai até a cozinha. Não encontra um único palito de fósforos em toda a casa.
Sua companheira está deitada de bruços, dormindo. Ele a contempla por um instante, mas a seguir veste o roupão e desce para comprar uma caixa de fósforos no quiosque da esquina. Vinte metros da entrada do seu prédio. Talvez nem isso.
No pequeno percurso, entretanto, encontra um amigo, que o saúda efusivamente.
- É o aniversário do meu sogro, venha comigo.
- Como assim, não está vendo? Estou de roupão.
- Mas, o meu sogro é o farmacêutico de frente, ele te adora, e ficaria muito feliz em te ver.
Contrariado, nosso personagem concorda em pelo menos cumprimentar o velho farmacêutico que, com efeito, fica muito feliz em vê-lo. A família toda reunida também o saúda, quase sem perceber que, afinal, ele está vestido apenas com o roupão.
Buenos Aires Hora Zero; cenário de Cortazar
Em meio à alegria e aos cumprimentos, uma senhora nervosa entra na farmácia e pede um remédio próprio para acelerar os batimentos cardíacos. Zeloso, o farmacêutico coloca a escada na estante de mogno, antiga e lustrosa, para alcançar o medicamento.
E quando está lá no alto, com a caixa azul na mão, um neto peralta esbarra levemente na escada, o suficiente para derrubar o farmacêutico no chão.
Verdadeira comoção. Parece que uma perna se quebrou. Alguém já chama uma ambulância, que espalhafatosa chega ao local.
Nosso personagem ajuda a colocar a maca na viatura e não se dá conta que a porta se fecha atrás dele.
Com a sirene a toda, a ambulância atravessa toda a cidade, enquanto nosso personagem trata de acalmar o velho farmacêutico que gemia de dor.
A chegada ao hospital é traumática. Os enfermeiros se atrapalham ao pegar a maca. E ele ajuda mais uma vez, até acomodá-lo em um leito no Pronto Socorro. Logo chega a família, aquela confusão toda.
Nosso personagem tenta sair do hospital e estabelece-se nova confusão. Como assim, vestido apenas de roupão, ele parecia um paciente tentando fugir. Uma filha do farmacêutico consegue explicar ao segurança do hospital que ele não tinha nada a ver com isso.
E o nosso amigo se vê só. Do outro lado da cidade. Vestindo apenas um roupão.
Resignado, foi para o ponto do ônibus. Um abrigo com um banco de cimento. Sentou-se numa das pontas. Na outra uma senhora de uns 60 anos, ainda vigorosa na maquiagem e no arranjo dos cabelos pintados, olhava de forma estranha para ele. Levantou-se abriu a bolsa e disparou:
- O senhor tem fósforos?
Desculpe Julio, não tenho o teu talento. Mas, que é uma grande história, é.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um momento de saudade!

Bairro industrial: tipica construção de fábrica na Mooca, hoje abandonada
O mundo segue mudando a uma velocidade espantosa. Não sou daqueles saudosistas, acho que o novo é sempre melhor, o futuro é um desafio, etc... Mas, me bateu uma saudade danada do meu bairro, a Mooca, ao deparar com um anúncio na Folha, de um notável empreendimento imobiliário exatamente no local onde funcionou durante quase um século a Companhia União dos Refinadores.
Alguém já havia me dito que a Mooca havia se tornado cult. Refinada. Apartamentos de um e até dois milhões de dólares. Butiques sofisticadas, restaurantes badalados...que coisa!
Nossa! A primeira lembrança que me vem da Mooca era o perfume, o cheiro quente e vespertino de biscoitos assando. Eram as fábricas de bolachas, como a gente dizia. Depois a revoada dos pardais e das andorinhas que faziam um barulho ensurdecedor no final do dia. As folhas dos carvalhos amontoadas no chão e o vento da tarde que os esparramava. 
Igreja São Rafael: Ave Maria vespertina
A Mooca era um bairro industrial. Tinha chaminés e sirenes que tocavam às 17h30. Às 18h,  o padre Mário, da Paróquia de São Rafael, colocava no sistema de alto-falantes da igreja, no último volume, o som da Ave Maria, na voz potente de Beniamino Giglio. Os operários saíam das fábricas, subiam a Rua Guaratinguetá, numa caminhada silenciosa. 
Pouco depois, o ônibus vermelho que transportava as funcionárias da Duchen (que se mudara para Guarulhos) apontava na rua Leocádia Cintra. Uma vez por semana, ele parava na porta da casa da Dona Ana (minha bisavó). Era para lhe entregar um pacote de biscoitos rejeitados (quebrados ou deformados).

Dona Ana e seu bisneto Nunzio: 1952

Dona Ana se aposentou depois de mais de 40 anos de trabalho na fábrica e era tão respeitada que as jovens funcionárias, às vezes, desciam para cumprimentá-la respeitosamente. Ela não faltava com educação, mas parecia incomodada com isso.
Por volta das sete horas, já surgiam as cadeiras na calçada. O som da louça do jantar na pia. A conversa corria solta e animada. Jogava-se “punha”, “escopa”, dominó.
Às oito horas parecia combinado: tudo se desfazia. Todos entravam e iam ouvir o rádio. Ainda me lembro do potente Grundig do meu tio Michele e o indefectível programa “Página Lírica”, da Rádio Gazeta.
Quando fui para a escola, no glorioso Grupo Escolar Oswaldo Cruz, na rua da Mooca, entendi que a língua de casa e da rua não eram bem a que as pessoas costumavam falar. No final da aula, saímos em fila, absolutamente comportados. Mães se acotovelavam no portão. Havia um guarda civil que atravessava a todos e parava o trânsito.
O Sêo Nunzio, meu pai, me esperava na calçada defronte. É que a loja da fábrica de brinquedos dele era justamente em frente à escola. No posto de gasolina Texaco, ao lado, saía uma provocação que o fazia ainda mais orgulhoso:
- Anche questo caminare! (Até o jeito de caminhar)
A Mooca era bucólica. Hoje, olhando pelo retrovisor da história, parece que era um mundo dentro de outro mundo.
O Dr. Ciro e o Dr. Pinkus, médicos que atendiam a todos. Um cirurgião-clínico geral e outro pediatra. O Sêo Zé da Farmácia, da Farmácia Roma, mais tarde presidente do glorioso Clube Atlético Juventus. A Pizzaria Bimbar, o Di Cunto, a famosa esquina da rua Taquari com a Avenida Paes de Barros.
Taquari com Paes de Barros: esquina historica
Aliás, este é um sítio histórico que não existe mais. A ampliação da Paes de Barros matou aquela esquina. Mas, foi ali, junto do Cotonifício Crespi, que o cavaleiro da Esperança, Luis Carlos Prestes, encerrou sua campanha para o Senado Federal, em 1946.
Quando Prestes voltou do exílio, em 1979, tive o privilégio de entrevistá-lo em uma coletiva na Assembléia Legislativa de São Paulo. E lhe perguntei:
- Senhor Prestes, como devemos tratá-lo?
- Como senador por São Paulo, o último cargo que disputei e ocupei na Constituinte de 1946.
Ai vale uma dica: o notável filme do meu amigo Toni Venturi, O Velho, disponível em locadoras e lojas especializadas. Um documentário notável, feito com a sensibilidade que uma figura como Prestes sem dúvida merece.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O xerife e o mafioso


Tuma: dúvidas sobre a esquerda

Com todas as honras que lhe são inerentes, o senador-delegado Romeu Tuma foi desta para a melhor. O clã dos Tuma está de luto merecido.
Cruzei com Romeu Tuma várias vezes no Senado Federal e sempre tive a impressão que ele continuava a ser o que sempre foi: um delegado de polícia.
Conheci o Dr. Romeu quando ele foi promovido a chefe do DOPS e tentava entender atônito a árvore das esquerdas, seus galhos, suas distensões e seus desdobramentos. Tenho comigo que ele nunca entendeu que entre o MR-8 e a IV Internacional havia uma diferença gritante. Assim como entre o MEP e a APML. Mas, também isso hoje não tem nenhuma importância, a não ser que alguém tenha tempo a perder para entender as divisões da kombi do PSOL, do PSTU e do PCO.
Tuma foi o delegado que serviu como carcereiro do Lula, então apenas presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Foi também quem teve o bom senso de prender uns jornalistas malucos que atentavam contra a distribuição de jornais na tristemente fracassada greve da categoria em 1978. E libertá-los logo em seguida.
O episódio mais interessante que eu vivi com o Dr.Romeu seguiu-se à prisão do célebre Tommaso Buscetta. Ele era o superintendente da Polícia Federal e sua equipe prendeu o mafioso descendo de um Ford Galaxie na porta de sua residência no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo.
Tommaso foi apresentado com um enorme espalhafato como o líder de uma organização que traficava cocaína para o crime organizado nos Estados Unidos.
Tommaso: prisão no Itaim Bibi

Assisti à apresentação da Federal e comentei com um colega, que chamava-se Nicolau, e que tinha certeza: faria o meu comentário chegar aos ouvidos do flamante delegado.
- Nicolau, eles não têm a menor idéia de quem prenderam. Isso vai dar um rolo danado.
Naquela noite, uma viatura da Federal me pegou em casa e me levou para o prédio do Largo do Paisandu, sem me explicar o porquê. Lá, um nervoso Tuma andava de um lado para outro.
- O que você sabe que eu não sei? Perguntou-me à queima-roupa.
- Dr. Romeu, com todo o respeito, não sou informante da Polícia Federal. O senhor terá que pagar uns tostões e ler a minha reportagem no sábado.
O delegado esvaziou a sala. Convidou-me a sentar em uma poltrona, sentou-se ao meu lado e em tom baixo começou a me questionar.
- Me ajude. Recebi informações de que este cara é um dos maiores líderes da Máfia. Será verdade?
- É verdade, Dr. Romeu. Perto dele, Al Capone era apenas um contrabandista.
Tuma me agradeceu e me mandou deixar em casa. Como recompensa, me permitiu entrevistar D. Masino, como ele era conhecido, na noite seguinte, na Casa de Custódia, na Rua Piauí.
Havia duas coisas espetaculares correndo simultaneamente. De um lado, Tommaso Busceta em pessoa, desaparecido desde que, foragido do presídio de segurança máxima em Ascoli-Piceno, na Itália, reunira todos os chefes das grandes famílias em Milão e matou a todos com um vinho envenenado, servido em um jantar. O bambino d’oro de Vito Gambino. O operador da conexão Pizza. De outro, o que tinha acontecido com ele, quando esteve pela primeira vez no Brasil, no início dos anos 70, e comandava a conexão Ilha Bela. Um pequeno ponto de onde controlava a heroína que vinha do Oriente, passava pelo porto de São Sebastião e ia para o Hemisfério Norte. Preso, foi entregue as autoridades italianas.
Tommaso caiu numa casa de veraneio na praia de Cabeçudas, em Itajaí. Foi preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, aquele de triste memória.
Fleury não tinha a menor idéia com quem estava lidando. Tentou extorquir dinheiro de Tommaso. E chegou a ameaçar jogar a mulher brasileira dele, Maria Cristina de Almeida Guimarães, do pequeno avião que os trazia a São Paulo, segurando-a apenas pelos cabelos.   
A prepotência de Fleury não tinha limites e ele nem se tocou quando D. Masino foi extraditado às pressas para a Itália. Não tenho nenhuma dúvida que a morte misteriosa desta besta assassina, em Ilha Bela, jamais decifrada, foi perpetrada pelos sicilianos. Meno male! 
O inquérito da Polícia Federal jamais conseguiu mostrar que Tommaso fazia tráfico de drogas. Por uma razão muito simples: ele não fazia. Depois do massacre de Milão, ele queria mesmo era desaparecer no Brasil.

Tommaso em Milão: fim da Omertá  

Tommaso tentou evitar a sua deportação para a Itália de qualquer maneira. Duas vezes buscou o suicídio. Sabia que se estivesse diante dos juízes italianos, desta vez, não teria como evitar a quebra da Omertá.
Depois de décadas, finalmente a máfia viu sua estrutura ruir como um castelo de cartas. Não sobrou pedra sobre pedra. Tommaso morreu no início de abril do ano 2000, de câncer, nos Estados Unidos.
A dúvida que me assaltava na época, segundo o próprio Tuma me contou mais tarde, assaltava a ele também. Como um bandido do porte de D. Masino poderia ser preso pela polícia brasileira, singelamente, em um domingo, numa rua do Itaim Bibi?
A verdade é que ele tentara se naturalizar brasileiro e foi procurado por um emissário do Ministério da Justiça, que lhe pediu a bagatela de US$ 1 milhão para ceder o documento.
- Desculpe – teria respondido D. Masino – o mafioso aqui sou eu.
 Alguns dias depois ele foi preso.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Pega o Negone! Pega o Negone!


Pele aos 18 e aos 70: genio da raça
Éééééééédsooooooonnnnnn Arantes do Nascimento! Era assim que Geraldo José de Almeida, um dos mais marcantes locutores do rádio e depois da televisão, se referia a Pelé. Deus da raça, atleta do século, certamente o mais completo e brilhante jogador de futebol de todos os tempos, hoje um respeitável senhor que acabou de completar 70 anos.
No verão de 1958, eu era ainda um pirralho, e meu primo Olavo, que morava em Santos, encostado nos muros da Vila Belmiro, falava de um tal de Gasolina, que havia chegado de Bauru, verdadeiro gênio do futebol. Naquele ano, ouvi muito falar de Pelé, que chegou com o apelido de Gasolina, na voz de Pedro Luiz e Oduvaldo Cosi diretamente da Suécia. Mas, a primeira vez que o vi nos campos, serviu também para marcar a minha vida para sempre.
Meu pai, o velho Nunzio, palestrino juramentado, estava tremendamente preocupado com a influência do meu primo Olavo e a simpatia que eu demonstrava por aquele time de branco, que eu associava a férias, praias, etc... Por isso mesmo, ele decidiu me levar naquela final do Campeonato Paulista de 1959, num domingo inesquecível, no Pacaembu, minha primeira vez em um estádio. No percurso tome discurso sobre origens, vitórias e feitos históricos.
Papai não era muito destes discursos. E só quando já estávamos sentados no cimento frio do estádio é que eu entendi que ele me preparava para acreditar no improvável. Uma vitória palestrina contra o que todos consideravam uma barbada: o supercampeoanto do Santos. Era o terceiro jogo depois que o campeonato daquele ano (1959) havia terminado empatado. Depois de 38 rodadas, divididas em dois turnos, as duas equipes somavam 63 pontos. E, naquele tempo, vitória contava só dois. Pelé havia marcado nada menos do que 44 gols.
Julio Botelho: o principe da Penha, autor do gol de empate
Nos dois primeiros jogos, dois empates: 1 a 1 no dia 5, e 2 a 2 no dia 8.
Naquele tempo chamar Pelé de Negão era comum. E o velho Nunzio, sempre comedido, naquela tarde não parava de gritar para o zagueiro Aldemar:
- Pega o Negone. Pega o Negone.
E o Negone levava os zagueiros do Palmeiras à loucura.
Aos 13 minutos de jogo, o Negone concluiu uma jogada brilhante, iniciada por Zito e marcou para o Santos. Fiquei com dó do meu pai, quando ele sentou-se, abaixou a cabeça, quase resignado.
Foi quando eu coloquei meus braços sobre seu ombro, querendo consolá-lo, que ele se lembrou que havia outro campeonato em jogo.
- Non ti preocupe. Vamos virar. - Disse no melhor estilo Juó Bananieri.
O Pacaembu explodiu quando o príncipe da Penha, Júlio Botelho, empatou aos 41 minutos.
Nunzios, pai e filho: paixão pelo futebol
E, incrédulo, eu vi o velho Nunzio gritar como louco quando Romeiro, aos 3 minutos do segundo tempo acertou uma bomba no ângulo de Laércio.
Naquela tarde eu descobri que seria palmeirense para sempre, para o bem e para o mal. Muito antes da Academia, de Dudu e Ademir da Guia.
Mas, o Negone, como meu pai o chamava, iria marcar a minha geração. Aquela alegria daquele domingo iria se repetir em 63, em 66, mas aquela década seria consagrada como a década de Pelé. E não foram poucas as vezes em que eu vi aquele deus negro conduzir os destinos do futebol com a habilidade que tinha nas duas pernas.
O velho Nunzio morreu em 69. Milanista e palestrino. Dizia que Pelé era o maior do mundo e que apenas dois zagueiros sabiam marcá-lo: Giovanni Trapattoni e Aldemar. Herdei dele a paixão palestrina. Na Itália, meu coração bate pela Vecchia Signora. Mas, isso é outra história.

De Nápoles ao Brás o percurso da pizza

Pizza autentica: sem queijo, com anchovas, alfavaca e molho de tomate
Saiu publicado na competente revista Língua Portuguesa que a pizza pode ter nascido em terras teutônicas. E como o assunto parece polêmico, vou entrar nesta seara. Há mesmo várias versões. Há quem diga que foram os alemães, outros os chineses, outros os árabes que aprenderam a lidar com a fermentação. A minha versão pode não ser definitiva, mas como dizem os meus patrícios peninsulares, “si non é vero, é bene trovato!”
A origem da pizza está relacionada à volta das legiões romanas da Palestina. Entre outras coisas, eles trouxeram para Roma aquele pão ázimo, sem fermento e sem gosto, tão comum na mesa hebréia. Na Urbi, o genial Apícius, primeira criatura a escrever um livro de gastronomia, colocou sal marinho, rosmarino (alecrim) e azeite de oliva. E serviu como abridor de paladar.
Antes que me acusem de bairrismo, convém lembrar que os romanos foram os primeiros a dar importância a esta história de comer e passar bem. Passaram a tirar as penas das aves antes de devorá-las, eliminar as vísceras e a pele dos pequenos animais, a armazenar a carne em embutidos defumados. Foram também eles que descobriram que a ingestão de água mineral pura e sulfurada ajudava na digestão entre outras coisas. Quem já viajou a Roma deve lembrar-se que há fonte de água mineral em praticamente cada esquina.
Mas, voltamos: o pão judeu chegou a Roma com o nome de pitzel. Não é difícil imaginar que esta pronúncia acabou deformada para pizza.
Entre Apícius e Colombo passaram-se pelo menos 1,5 mil anos. Mas, foi com a chegada do tomate na Espanha que a história da pizza começa a se movimentar. O sucesso do fruto centro-americano foi tremendo, ainda que os espanhóis, ávidos por lucro, não tivessem paciência para aguardar pelo seu amadurecimento.
No século XVII, uma verdadeira diarréia epidêmica tomou conta de toda a Espanha, o que levou a Casa Real a proibir o consumo e a importação do tomate.
Alguns marinheiros, entretanto, inconformados, decidiram contrabandear não só o fruto como as sementes para a colônia espanhola de Nápoles. Lá, em terras vulcânicas, no sopé do Vesúvio, com o sol meridional, o pomodoro (fruto de ouro) ficou vermelho e maduro.
A cozinha napolitana soube muito bem criar receitas extraordinárias para os tomates que vicejaram com vigor em suas terras.
Coube a um padeiro abrir a massa fermentada em forma de disco e espalhar sobre ela o sumo do tomate cozido e amassado no garfo, antes de assá-la.
Mas, a obra ainda não estava concluída. Alguém teve a brilhante idéia de colocar restos de peixe salgado, com folhas de alfavaca e azeite de oliva. Assim, no final do século XVIII, nasceu a primeira pizza, de alici.
Foi preciso mais um século para que a pizza conhecesse sua metade mussarela. Na verdade este queijo não existia naquela época. Um outro padeiro decidiu, ao invés de peixe salgado, dispor fatias generosas de queijo caccia-cavalo (aquele queijo em formato de oito que tem manteiga dentro) e no lugar da alfavaca, singelas folhas de orégano.
Pizza do Babbo: inconfundível
Mas, o episódio mais marcante, que tornaria a pizza popular em toda a Itália, ocorreu apenas no final do século XIX. O rei Vitório Emanuel, da casa de Savoya, de Turim, visitava o seu reino em companhia da rainha Margarida. E claro, quiseram conhecer a tal iguaria napolitana, tão cantada e decantada.
O pizzaiolo (já não era mais o padeiro) que a história não registrou o nome, republicano garibaldino, decidiu aprontar. Fez a pizza com muito molho de tomate (vermelho), queijo caccia-cavalo (branco) e dispôs muitas folhas de basilicão (verde), as três cores da bandeira republicana italiana.
Ao contrário do que se pode imaginar, Vitorio Emanuel e Margarida não perceberam a sutileza. Ao contrário, encomendaram dezenas de pizzas que levaram para todo o reino. Isso explica porque cada região da Itália apresenta uma pizza de forma diferente: a romana é muito fina, a toscana é um pouco mais grossa, a siciliana e a veneta são bem grossas e assim por diante. Na Reggio-Calábria inovou-se com a aplicação de folhas de escarola refogadas com alho e azeitonas, sem queijo. O que também se tornou um clássico.

Como a pizza chegou ao Brasil

Castelões: competencia secular
Não resta nenhuma dúvida que São Paulo é a terra da pizza. Não há padaria que não tenha uma pizza crepitando no balcão e, certamente, nenhum lugar do mundo tem tantas pizzarias como lá na paulicéia. Mas, como isso começou?
O mérito todo é de um mestre-padeiro espanhol chamado Valentim Ruiz e de um aprendiz italiano, toscano na verdade, chamado Giovanni Tuzzatto. Os dois, muito amigos, trabalhavam na Padaria e Confeitaria Guarany, na esquina da rua do Hypodrommo, com avenida Celso Garcia, na segunda metade dos anos 20.
Viviam surpreendendo a clientela do Brás com guloseimas extraordinárias: canoli, sogni da crema, sfogliatellas e assim por diante. Até que o proprietário encomendou um appetizer que pudesse acompanhar o chá das senhoras, no salão da confeitaria, no final da tarde.
Decidiram então assar alguns discos e servir quente aos pedaços. Foi um sucesso retumbante.
Logo se formavam filas no balcão à espera dos discos quentes que eram servidos aos pedaços sobre finas folhas de papel manteiga.
O sucesso foi tanto que alguns rapazes que mantinham uma agremiação futebolística, chamada Castelões, e estavam com problemas para comprar novos uniformes, decidiram propor a Valentim e Giovanni assar uns discos em uma garagem, numa travessa da rua do Gasômetro, no sábado. O lucro da empreitada serviria para comprar camisas, calções e meias daquele leão da várzea.
Os dois toparam. Não é preciso dizer que o sucesso foi imenso, ainda mais porque os dois improvisaram um forno de lenha com tijolos e o sabor da pizza ainda se realçara mais. Decidiram repetir no próximo sábado e assim nasceu a primeira pizzaria de São Paulo, a Castelões, que ainda existe, e de quebra o hábito de comer pizza nas noites de sábado.
Nos anos 30 e 40, várias famílias decidiram reeditar o feito de Valentim e Giovanni. Nasceram assim a Esperanza, na Bela Vista, o Romanatto, na Mooca, e tantas outras.
Os filhos de Giovanni Tuzzatto ainda criariam no final do século passado a pizzaria Babo Giovanni, em homenagem ao pai, na rua Bela Cintra, a melhor que eu conheci.
(Ah, Coca! Você que agora assa discos no paraíso, saiba que todos nós apreciadores da verdadeira pizza e seus amigos, estamos com muitas, mas muitas saudades).            

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Um homem à frente do seu tempo

Richard Francis Burton: pensador e aventureiro vitoriano 
Na galeria dos meus heróis preferidos, o lugar de destaque é de um aventureiro inglês do século XIX chamado Richard Francis Burton. Por quê? Apenas para parodiar sua esposa Isabel Arundell, porque “quem em sã consciência não gostaria de ser Richard Francis Burton”?
Como um simples oficial do exército colonial na Índia, Burton fez uma aventura que iria marcar toda a sua vida. Poliglota, falava mais de 28 línguas e cerca de 40 dialetos, traduziu para o inglês o Kama Sutra, Os Contos das Mil e Uma Noites e Os Lusíadas, entre outras obras. De sua lavra saíram ainda trabalhos tão díspares como manuais de utilização do sabre, um guia sobre a prostituição no Cairo, até duas reportagens, extraordinárias, uma Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho e Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Ambas escritas originalmente em português e disponíveis na livraria do Senado Federal, www.senado.gov.br .
Um terceiro livro, Cartas dos campos de batalha do Paraguai, foi escrito originalmente em inglês e sua tradução está disponível na Biblioteca do Exercito, www.bibliex.com.br.
Burton foi o primeiro ocidental a peregrinar para Meca, travestido de peregrino afegão. Ele conta esta aventura em um livro que não tem tradução em português, A secret pilgrimage to Mecca and Medina, disponível no site www.abebooks.co.uk .
Para quem quer conhecer uma síntese geral das suas aventuras, recomendo a biografia escrita por Edward Rice, Sir Richard Francis Burton, publicada no Brasil pela Companhia das Letras.
Burton veio ao Brasil depois da morte de John Hanning Speke, seu parceiro na aventura pelo descobrimento das nascentes do Nilo, no episódio batizado de Nas Montanhas da Lua. Há um filme maravilhoso que descreve estas peripécias, mas não há cópias disponíveis.
Burton contestou veementemente na Royal Society Geographic a descoberta de Speke, com uma argumentação tão precisa que o levou ao suicídio. O pior é que Speke tinha razão. Na Inglaterra vitoriana isso equivaleria ao mais alto pecado intelectual.
Foi preciso que Isabel Arundell se valesse de toda sua habilidade política (Burton não tinha nenhuma) para conseguir um posto para o marido fora da Grã Bretanha. E o único disponível era o de cônsul em Santos.
-         What can I do in the wrong side of the world?
Esta pergunta sintetiza bem o espírito que o trouxe ao Brasil.
Ele nunca morou em Santos. Na verdade morou em São Paulo, na esquina da rua Tabatinguera com rua do Carmo. E odiou, a exemplo de outros viajantes britânicos, como Darwin, sua passagem por aqui. Até seu casamento foi profundamente abalado.
Tudo por conta da escravidão. Burton tinha ojeriza total a esta instituição. De tal sorte que quando descobriu que Isabel havia comprado um menino negro para ajudá-la na gestão da casa, saiu para uma imensa viagem, a pé, até as ruínas de Machu Pichu, no Peru.
Burton e Isabel em Triste: prêmio foi o exilio na Itália
Em 1869, Burton conseguiria voltar para o mundo árabe, tendo sido nomeado para o consulado em Damasco. E, em 1886, ele recebeu da rainha Vitória o título de Sir. Mas, não se pode dizer que a Inglaterra vitoriana o tinha como herói. Na verdade, ele não escondia suas críticas à postura britânica em suas colônias.
Acredito que este tipo de crítica os ingleses podiam até suportar. Mas, em seu Ensaio Final, Burton apresentou a história, os princípios, a cultura e os costumes de uma série de civilizações, associou a religião à sexualidade e fez uma serie de paralelos, além de defender a naturalidade da homossexualidade.
Há quem diga que a Torre de Londres não caiu por muito pouco. E Burton foi “premiado”com um obscuro consulado em Trieste, na Itália, onde faleceu em 20 de outubro de 1890, exatos 120 anos atrás.
Apavorada com a morte do marido, Isabel chamou um padre (o que não é difícil na Itália) e queimou todo o acervo de Burton, notas, diários e documentos que ele acumulou por mais de 40 anos. Uma desgraça.
Os dois estão enterrados em Mortlake, na Inglaterra, em uma tumba que tem o formato de uma tenda árabe.
Sir Richard seguramente era um homem que estava avançado em seu tempo.


Ainda a questão dos poderosos...

Diretas Já na Sé: qual é a verdade? Quantas pessoas estavam lá?
Não queria voltar ao assunto, mas houve certa insistência e vários pedidos de esclarecimentos, então vamos lá. Honestamente não vejo onde está a meia-verdade da crítica da minha amiga Mana Coelho. Acho que a posição dela não só valoriza o meu texto, como o complementa.
Casos relatados por ela apenas aguçam a relatividade do papel do jornalista. E a bem da verdade, vamos deixar claro que os “coleguinhas” estão longe de serem anjos. Alguém que alguma vez na vida tenha decidido colocar os pés em uma redação não pode imaginar que ganhará o paraíso.
Uma das minhas aulas do curso de Jornalismo Interpretativo, que uma década e toda uma existência atrás eu ministrava na FIAM, em São Paulo, começa com a seguinte observação: “Senhores, se vocês estão em busca da verdade, estão na sala errada. Isso é assunto da filosofia. Aqui vocês vão aprender a lidar com a versão da verdade”.
Esta afirmativa provocava um retumbante “ohhhhh!” emanado daquelas mentes joviais. Ora, parece tão óbvio que os jornais não são a expressão da verdade, que a discussão sobre o direito à informação ganha outro patamar de reflexão.
Por exemplo, o que diferencia grandes jornais como O Estadão e a Folha, O Globo e O Dia, ou o Jornal do Commercio e o Diário de Pernambuco?
Acredito que a apresentação tem alguma coisa a ver, mas decididamente o ato de assinar uma publicação ou se dirigir a uma banca para comprar um exemplar tem a ver com a identidade que o leitor estabelece mais com o seu conteúdo do que com a sua forma.
Meu irmão André, por exemplo, tem que acordar lendo o Estadão. Eu adoro a Folha, fico doente quando não leio. E leio inteirinha! E por quê? Porque o jornal da família Frias tem o poder de me provocar. De me desafiar. De me surpreender, para o bem e para o mal e de me informar, sem a pretensão de ser absoluta ou de falar com Deus.
Tenho respeito e admiração pelo Otávio Frias Filho. Trabalhei diretamente com ele. Tivemos nossas diferenças. Mas, nos respeitávamos. E eu respeito muito o que ele fez com a Folha. Só lamento ter desembarcado do projeto em um momento conturbado da minha vida, quando me faltou lucidez para entendê-lo.
Depois que eu me mudei para Brasília, passei a gostar muito de O Globo. Não é tão trepidante como a Folha, mas é um jornal honesto, muito atento ao seu leitor primário, que afinal tem o privilégio de viver na cidade do Rio de Janeiro.
Não gosto do Estadão, como nunca gostei do Jornal do Brasil. Mas adoro a Luciana Constantino, a Simone Iwaso, o Serginho Pompeu, entre outros colegas que trabalham lá. Decididamente não acho que eles representem o pensamento das elites rurais paulistas.
Agora, se alguém acha que os jornais publicam a verdade, acredita em Papai Noel, com renas e tudo e imagina que a Lapônia seja o centro do mundo.
Ainda me lembro de um episódio ilustrativo na redação da Folha, por conta da manifestação pelas Diretas Já na praça da Sé, em São Paulo. Havia a informação dos organizadores de que havia mais de um milhão de pessoas, a Polícia Militar calculava em 600 mil, o Corpo de Bombeiros em 800 mil. Diabos! Afinal quantas pessoas estavam no evento? Será que algum repórter, ou mesmo o Ricardo Kostcho, poderia dizer o número exatamente?
Outro episódio curioso se passou comigo em Madri. Nas primeiras eleições após a morte de Franco, fui com meu amigo Pepe Fajardo, da Cambio 16, cobrir o encerramento da campanha da direita franquista na Plaza Real. Fiquei apavorado! A praça toda estava repleta de gente. Muita gente.
Comentei com o Pepe. Ele sorriu da minha apreensão. O que eu ia dizer, que o franquismo ainda arrebatava multidões?
- Nunzio, escreva assim: A praça estava lotada, todos os franquistas estavam nela.
Provavelmente os seguidores do caudilho sanguinário iriam se revoltar comigo se pudessem ler, afinal, o que eu escrevi. Exatamente o que o Pepe havia sugerido. Mas honestamente eu não estava preocupado com isso. Mas, que não era verdade, não era, claro.
A informação é dinâmica, precisa de um vetor humano para ser transmitida. Afinal, os jornais ainda são feitos por seres humanos, embora haja controvérsias. Límpida e cristalina ela só vai se cristalizar na cabeça dos leitores, quando confrontada e cristalizada com diversas versões em diversos veículos.
Campos do Jordao: frio desgraçado, mas sem neve
Tenho uma outra historinha bem divertida para concluir este post e reafirmar minha teoria. Era eu um flamante repórter do Diário Popular, o velho jornal da rua do Carmo, quando chegou a informação de que haveria uma nevasca tremenda em Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira, em São Paulo.
O chefe de reportagem me mandou para lá com a missão de dormir no carro e cobrir a nevasca pela manhã. Munimos-nos de cobertores e de uma garrafa de Old Eight para enfrentar a madrugada naquele fusca azulão do jornal.
Fez um frio desgraçado. Mas, decididamente não nevou.
Virei a matéria para produtores agrícolas da Mantiqueira comemoram o fato de não ter nevado.
Quando entreguei a matéria para o saudoso Mário Romano, editor do jornal, ele me olhou de soslaio e disse:
- Você ficou louco? A Globo disse no Jornal Hoje que foi a maior nevasca de todos os tempos.
- Romano, eu virei a serra de cabeça para baixo. Não nevou.
- Nunzio, se vira. Não vou desmentir a Globo.
E agora? Rolei uma lauda na máquina de escrever. Tomei um gole de café. E vamos lá.
“Foi uma madrugada controvertida. Para alguns a pior nevasca dos últimos anos. Para outros, apenas uma geada. Para os produtores agrícolas da Mantiqueira, nem isso. O certo é que não foram registrados prejuízos nas plantações e a vida segue normal na bucólica Campos do Jordão”.
O Romano riu muito. Rasgou uma foto do Zé Ribeiro, sem neve, que estampava o sorriso de um produtor rural e soltou aquele grito gutural: “Desce!.....”

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O que o Nunzio escreveu é uma meia verdade

Mana Coelho é uma amiga querida, companheira de momentos difíceis, jornalista, repórter fotográfica e mestra. Não poderia deixar de publicar as críticas que ela fez ao post “Aflitos de ontem, poderosos de hoje, ou vice-versa”.
Saudades Mana.




Mana Coelho: profissional competente
O que Nunzio escreveu é uma meia-verdade. Isto porque a proximidade com o poder e a força dos veículos de comunicação deslumbra a muitos. Já briguei muito com jornalistas que davam deliberadamente informações falsas. Os motivos eram vários: atender ao pedido dos chefes (por exemplo, quando o Tancredo deixou o governo de Minas, promoveu uma festa na Praça da Liberdade. A praça ficou cheia de pessoas que vieram em ônibus fretados pelo governo para participar da festa (ah, se fosse o Lula!). No meio do público, em um determinado momento, teve uma briga, com socos e tudo, promovida pelo pessoal do MR-8. Eu conhecia este pessoal de longa data, desde os tempos do Jornal dos Bairros. Fotografei a briga e quando cheguei na redação de O Globo (onde trabalhava), nosso chefe, Carlos Lindemberg, mandou que em vez do MR-8, o repórter escrevesse que foi o PT quem brigou. Eu corri para revelar as fotos (velhos tempos!) que mostravam claramente os envolvidos na briga. Apesar disso, o repórter cedeu e, no MGTV e no jornal no dia seguinte,  saiu a informação falsa. Não foi a primeira nem a última vez que isto aconteceu.

Quando o papa levou uma facada, um jornalista ficou dizendo pelo rádio que várias pessoas estavam se dirigindo para a Praça do Papa para rezar por ele. Alguns estavam subindo a Afonso Pena de joelhos. Pura mentira! Ele queria que as pessoas fossem influenciadas pela "informação" e transformassem em verdade o que ainda era mentira deslavada.

Quando o Aureliano foi internado no Prontocor, não se tinha informação sobre o que tinha acontecido. Ficamos dias de plantão, sem saber de nada. Eu conversei com um auxiliar de enfermagem e descobri que ele saia do CTI para fazer uma tomografia (tenho dúvidas sobre o exame) todo dia, por volta das 5 da manhã. Conversei com meu chefe e disse que ia lá fotografá-lo. A história é longa, um dia eu conto mas, o que interessa agora é que eu fiz a foto e a segurança dele (vice-presidente) tomou meu filme. Sabe o que eu disse para o Cel. Leozito (o chefe da segurança)? Que não adiantava eles tomarem meu filme, porque eu era os olhos de quem não podia estar ali e que, como jornalista, eu tinha credibilidade e ia contar o que eu vi, ainda exagerando. Porque essa é a responsabilidade do jornalista, e o Aureliano era um homem público, e por isto o país tinha o direito de ser informado sobre o que acontecia com seu Vice-Presidente. Passei o dia dando entrevistas. Exagerei mesmo. No dia seguinte, pela primeira vez, a junta médica que estava cuidando dele deu uma entrevista coletiva. O engraçado dessa história é que virei ídolo dos seguranças que, para não ficarem desmoralizados, exageravam meu feito.

Jornalistas são como todos os outros: tem quem tem caráter, quem não tem nenhum, os audaciosos, os covardes. 

Acho que o problema principal é que perdemos a pluralidade da informação. Na época da ditadura existia a imprensa alternativa. Hoje, ela está renascendo na internet. Os jornais também pararam de investir nas grandes reportagens. As regras no Brasil são totalmente ultrapassadas e a imprensa é totalmente dominada por grupos que morrem de medo da concorrência. Lembra que o Sarney deu mais de 500 concessões de rádios para os políticos que votaram a favor da mudança de seu mandato para 5 anos? Existe uma ligação estreita entre os políticos conservadores e a imprensa. 

Então, infelizmente, o que vemos é uma imprensa reacionária, partidária reagindo com ódio aos avanços que conquistamos nos últimos anos, apesar existirem jornalistas sérios e idealistas em todas as redações. Não tenha dúvida: toda redação hoje é um palco de luta.

Por isto, discordo do Nunzio. A imprensa tem sim o papel de vigiar os donos do poder. Mas não é isto que estamos assistindo no Brasil hoje e sim um massacre, baseado em mentiras. Só espero que eles não nos derrotem.

O carneiro palestino de um chef judeu

Isaac com Aécio: saudades do La Torreta

Um de meus amigos mais queridos é o chef Isaac Corcias, piloto e proprietário do finado La Torreta, um dos melhores restaurantes de Brasília, não só pela competência de sua cozinha, mas pelo acolhimento, simpatia e, sobretudo, pelas histórias que ele contava, sempre sentado à minha mesa. Esta é uma de suas melhores.
A fama do chef Isaac Corcias, um judeu sefaradi do Marrocos, formado e treinado em Barcelona, começou a se difundir pelo mundo graças a um carneiro que ele teimou em assar no bar da piscina do hotel Sheraton em Tel Aviv. O perfume da iguaria crepitando nas brasas aguçava o apetite e provocava uma sede tremenda nos freqüentadores.
O problema é que Isaac tinha um ajudante que era palestino e que sempre terminava o dia com uma provocação. “Seu carneiro é bom, mas o do meu pai é melhor”.
No começo, Isaac não deu muita importância à provocação. Mas, o menino insistia, insistia e insistia. Tanto que a frase começou a martelar o inconsciente do chef.
- Melhor por quê? O quê ele faz de diferente? O tempero? – desabafou numa tarde.
Sem se intimidar o menino retrucou que não contaria o segredo do pai, mas que se ele se dispusesse a dormir uma noite em um acampamento palestino, pela manhã poderia saborear a iguaria do pai e tirar suas conclusões.
Isaac teve medo. Mas, afinal a curiosidade venceu os temores. Numa noite os dois saíram juntos do hotel, tomaram o ônibus e foram para a chamada área proibida. No percurso, lhe veio à cabeça a contradição: depois de sofrer nos guetos da Europa durante a Segunda Guerra, seus compatriotas agora confinavam os palestinos em acampamentos precários, segregavam o convívio, negavam-lhe direitos.
Chegaram muito tarde. Tão tarde que Isaac foi encaminhado logo para um quarto preparado especialmente para ele. Com a cabeça no travesseiro, as contradições embargaram o seu sono. Foi com muita dificuldade que conseguiu dormir.
Despertou no meio da madrugada, ao som de facas sendo amoladas na pedra. Voltou a dormir e a sonhar. Isaac era o nome do primogênito de Abraão. E não foi pouco o sofrimento e a tortura que ele passara. Deus, Ele mesmo, havia pedido ao já velho patriarca que entregasse o menino em sacrifício.
E Abraão não só cogitou como chegou a preparar o filho para o sacrifício. No momento do golpe decisivo, Deus, Ele mesmo, admitiu que estava testando a fé do velho.
Isaac acordou suando, ouvindo vozes. Quando desceu as escadas, foi saudado efusivamente pela família do seu ajudante. O carneiro crepitava nas brasas, as facas estavam todas afiadíssimas.
O carneiro estava tão bom que Isaac aposentou sua receita e desde então passou a praticar a versão palestina, que o pai de seu ajudante transmitiu em absoluta confiança. Já testei esta iguaria. É espetacular. Ideal para o Natal. Afinal, a habilidade hebraica, a receita árabe, em uma efeméride cristã. Existe forma melhor?
Que bom que você está de volta, Isaac. Que saudades das suas histórias e da sua sabedoria!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Alza la bandera revolucionaria.....

Kapa e duas de suas fotos famosas: testemunha voluntária



Ainda outro dia comentava com um amigo querido o célebre episódio de Katyn, na Polônia, quando dezenas de oficiais poloneses foram executados friamente durante a Segunda Guerra. Depois da descoberta dos corpos - e com o apoio da máquina de divulgação stalinista-soviética - a autoria desta atrocidade foi atribuída aos soldados alemães. Mais tarde, descobriu-se que foram mesmo os soviéticos, cumprindo ordens emanadas pelo próprio Kremlin.
Este triste episódio foi magnificamente tratado pelo genial Andrei Wajda no filme Katyn, disponível em locadoras e lojas especializadas. A Polônia, como sabemos, foi uma das maiores vítimas da Segunda Guerra. Apanhou na ida dos alemães e na volta dos soviéticos.
Mas, este meu amigo revelava certa resistência ao filme. Segundo ele, muito desconfortável em relação à causa socialista. Fiquei meio perplexo com a resposta, mas não dei tratos à bola. Não vou perder uma amizade por conta de uma opinião.
Nestes tempos em que vivemos a ameaça de um retorno esdrúxulo de figurinhas carimbadas, me ocorreu que a recidiva do reacionarismo e do conservadorismo se dá sempre muito mais pela incompetência da vanguarda do que por méritos do adversário.
Me veio à mente um importante episódio histórico, prelúdio da Segunda Guerra Mundial: a guerra civil espanhola.
Com a abdicação do rei Afonso XIII, a Espanha experimentou sua proclamação da República. Com as eleições, uma ampla coligação de esquerda saiu-se vitoriosa e chegou ao poder, em fevereiro de 1936. O general Francisco Franco, comandante das tropas espanholas no Marrocos se rebelou e deu início ao confronto. De um lado a força nacionalista da direita, totalmente coesa, congregava centralistas e autoritários. Era apoiada pela Igreja Católica e pelos países fascistas Alemanha e Itália. De outro, os republicanos, um verdadeiro caldeirão de incompatibilidades, onde comunistas e anarquistas buscavam a convivência com regionalistas e libertários. Tinham o apoio declarado da União Soviética e do México e a simpatia de todo o pensamento livre da humanidade, enquanto o exército nacionalista era fortemente equipado, disciplinado e orientado por oficiais alemães e italianos. As forças republicanas eram formadas por milícias de trabalhadores, arregimentados pelos sindicatos e por voluntários espanhóis e de todo o mundo.
Madri: tumulo do fascismo
Foi um banho de sangue! Alguns dos principais jornalistas da época retrataram em reportagens e livros o que ocorreu: Graham Greene, George Orwell e Ernest Hemingway, entre os mais famosos. Mesmo assim, o mundo assistiu impassível ao massacre.
Um dos trabalhos mais notáveis feitos para o cinema sobre o assunto é de autoria do cineasta inglês Ken Louch, de 1997. Chama-se Terra e Liberdade - também disponível em locadoras, livrarias e até na internet para download. É impressionante como o recitativo da esquerda espanhola, quase um apelo desesperado pela manutenção da unidade republicana, ecoa em ouvidos surdos. Dói ver que 75 anos depois, o mesmo eco continua vazio.
- No pasaran! – bradava a Pasionaria, Dolores Ibaburri, em vão.
Pois passaram e continuam passando. E a maioria dos grupos da esquerda ideológica continua a se sentir fascinada pelo som da própria voz e pelo brilho de suas próprias ideias.

 -----------


E as novas gerações!


Guernica: célebre obra de Picasso descreve bombardeio em aldeia espanhola





É impressionante como as novas gerações desconhecem e não se interessam por estes episódios históricos tão ilustrativos e diria, reflexivos. Afinal, temos que aprender com os erros, com os fracassos. Celebrar as vitórias e as conquistas é uma ação efêmera. Enevoa a razão e oblitera a verdade.
Katyn revelou que as atrocidades de Stalin rivalizam com as de Hitler. Mas, isso não é suficiente para enterrar a experiência socialista na União Soviética. Um belíssimo trabalho do britânico Antony Beevor, publicado pela Record com o título A Batalha da Espanha, não pode ser incinerado apenas porque ele ousa dizer que se os nacionalistas, a direita, tivessem vencido as eleições a insurgência se daria no lado oposto. O socialista Largo Caballero gritou isso a plenos pulmões na campanha eleitoral. Se aconteceria ou não, é outro problema.
Quando cheguei no MEC fui abordado por dois repórteres da nova geração. Ambos recém formados por instituições de educação de ponta. Eu havia feito uma citação em que relacionava a obra Guernica, de Pablo Picasso, com a guerra civil espanhola. Nenhum dos dois tinha a menor idéia do que eu falava.
A guerra civil espanhola foi uma das páginas mais heróicas da história do século XX. Foi também um cenário onde as contradições do pensamento progressista se expuseram com brutal realismo. Antes, como agora, uma boa reflexão seria útil para olhar o futuro.