terça-feira, 30 de novembro de 2010

O mitológico Octavio Ribeiro, o Pena Branca

A Casa de Detenção em São Paulo: cenário de muitas histórias policiais
Nestes tempos em que o noticiário policial passou a ser o principal assunto da mídia, me veio a saudade de um querido companheiro, talvez o mais competente e eficiente repórter policial que eu conheci: Octavio Ribeiro, o Pena Branca.
A primeira vez que eu falei com o Pena Branca, não tinha a menor idéia de quem era. Foi num sábado à tarde, em meio a um daqueles plantões insuportáveis. Muito calor. Nada por fazer. Era o ano de 1974 e eu havia trocado por algumas moedas um plantão de rádio-escuta no Estadão.
Rigorosamente sem ter o que fazer, passei a “corujar” aquele trambolho alemão de ondas curtas, até que me detive na Radio Globo, do Rio. Era o famoso informativo O Globo no Ar.
O locutor anunciou com estardalhaço que o famoso Lúcio Flávio, o Bandido da Luz Vermelha, havia conseguido uma fuga espetacular do Presídio da Rua Frei Caneca, deixando perplexos os policiais e o aparato de segurança. Sem saber muito bem o que fazer, liguei na sucursal do Rio e, claro, ninguém atendeu.
Liguei então para o secretário de redação, na casa dele. Quando relatei o ocorrido ele me disse: “Se vira! Quero uma matéria de 40 linhas. Estou a caminho”.
Liguei então para a redação do jornal O Dia. Uma simpática colega me disse:
- Acho melhor você falar com o repórter que cobriu.
- Quem?
- O Pena Branca.
Ao atender ao telefone, Pena Branca mostrou logo sua marca inconfundível:
-  Aí, malandro, o que eu posso ajudar?
Senti que ficamos amigos em dez palavras e ele me leu a matéria dele inteira. Todos os fatos estavam lá.
Quando o secretário de redação do Estadão chegou, as 40 linhas estavam perfeitamente redigidas, para surpresa dele, que desceu as oficinas e deu aquele célebre grito:
- Parem as máquinas!
As rotativas pararam e na segunda-feira eu fui promovido como repórter do Jornal da Tarde. Só isso.
Alguns anos depois voltei a encontrar Octavio Ribeiro na redação de Istoé. Ele era repórter especial e eu começava uma carreira que me levaria a secretário de redação da segunda revista mais importante do país.
Ainda outro dia, um coleguinha da geração Y, ou seja: imberbe e inexperiente, do alto da sua arrogância, me perguntou se eu havia conhecido Octavio Ribeiro.
- Conheci sim. Era um gigante da reportagem.
- Sei não; acho que ele não era isso tudo. Me disseram que ele não sabia escrever. Nunca havia frequentado uma banca universitária...
Por que fazem isso? Pena Branca escreveu vários livros-reportagem e estava sempre onde ninguém poderia imaginar. Sempre trazia uma versão diferente do que tinha acontecido, derrubava a arrogância policial, nunca enalteceu um tira ou um PM e estava sempre muito bem informado.
Vivi com ele um episódio inesquecível. Acho que foi em 1980. Um grupo de presos se amotinou na Casa de Detenção, em São Paulo, e fez refém um grupo de consultores, ligados a organismos internacionais. Foi uma barafunda danada!
Saímos os dois lépidos para a Detenção. No caminho, o Pena Branca me orientou:
- Menino, o diretor te adora, cola nele.
- E você? – perguntei.
- Me encontra na redação de noite.
Não entendi nada. De fato o Luisão, o diretor da Detenção, me adorava, tinha em comum a paixão pelo boxe e por histórias de velhos criminosos e suas relações com a cadeia.
Luisão era veterano da grande revolta do Presídio da Ilha Anchieta e um apaixonado pela cadeia.
Os amotinados queriam um helicóptero para sair da Detenção. A Polícia Militar queria invadir o presídio. Foi uma confusão dos diabos. Até que os reféns apareceram no alto do telhado, acompanhados pelos presos. E quem apareceu em seguida?
Pena Branca, claro!
No final, os reféns tomaram um baita susto, os amotinados foram todos eliminados, sem qualquer clemência. O Pena Branca tinha uma história genial. E a Istoé publicou uma matéria fantástica que começava com uma frase do editor, meu irmão Tão Gomes Pinto, que dizia mais ou menos assim: Enquanto a rebelião grassava na Casa de Detenção, o Metro não parava de circular pela avenida Cruzeiro do Sul.
Precisava escrever mais?
Eu, o Pena, o José Meirelles Passos e o Caco Barcellos escrevemos uma reportagem de 10 páginas. O Tão editou. Lindas.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Rio de Janeiro continua lindo!

Rio nos anos 50: as águas da Baia da Guanabara batiam na Praia do Flamengo
Confesso que o Rio de Janeiro é uma cidade que desafia a minha compreensão. E não é de hoje. Ainda pequeno não entendia porque antes de voltar para São Paulo, o velho Nunzio passava na rua da Alfândega para carregar o carro com caixas de White Horse. Também não entendia porque, invariavelmente, as calotas do velho Cadilac dançavam todas as vezes.
O velho Nunzio adorava o Rio. E eu aprendi a gostar com ele, pelas mãos dele. Ainda me lembro dos estúdios do Canal 6, na Urca, onde o velho dizia que tinha visto Carmem Miranda e o Anjo Azul, Marlene Dietrich, nos tempos do Cassino. Nós ficávamos no Hotel Novo Mundo, ao lado do Palácio do Catete, sede da República, de onde um presidente “havia deixado a vida para entrar na história”.
Me lembro da avenida Central, quer dizer, avenida Rio Branco (também não sou tão velho assim). Da Cinelândia, do Municipal, da Biblioteca Nacional, dos sabores exóticos do Adegão Português, em São Cristovão, e da sopa Leão Veloso, na praça Mauá.
Não sei dizer se naqueles anos 50, quando a água da Baia da Guanabara ainda se esborrachava na praia do Flamengo, a vida no Rio era tão insegura. Mas, quando comecei a frequentar a cidade 20 anos depois, a sensação era mesmo essa. Saltava aos olhos não só a tolerância como a cumplicidade. O que mais eu ouvia era: “Olha, o Rio tem os mesmos problemas que qualquer cidade grande, mas é lindo, tem as praias mais bonitas do mundo”.
De fato é lindo. Em minha opinião, modesta, a cidade mais bonita do mundo. Mas, definitivamente, já naquela época, não tinha os mesmos problemas que qualquer grande cidade do mundo. O Rio era diferente.
Um episódio inesquecível ocorreu em um final-de-semana em que estreei um Passat novinho, financiado em milhares de prestações mensais. Fiquei em um hotel na avenida Nossa Senhora de Copacabana e parei o carro em uma das transversais, menos de 50 metros da porta do hotel. Duas horas depois, quando saí para jantar, o carro desaparecera.
Fiquei meio perdido, sem saber o que fazer, e liguei para um grande amigo, advogado, Manoel Luís, relatando o ocorrido.
Ele calmamente tomou os dados do carro, cor, placa, etc... E me mandou de volta para o hotel.
- Pede um gin tônica que você adora e me aguarde aí.
Tomei um, dois, três, quatro, comi amendoins até me enjoar e nada do Manoel.
De repente, ele me aparece no bar do hotel, com aquela efusividade de sempre.
- E aí, vamos jantar?
- Porra, Manuel, e o meu carro?
- Calma italiano. Vamos jantar no seu carro.
Claro que eu não acreditei. Mas, o carro estava lá, no mesmo local, até o maço de cigarros que eu deixei no console estava intacto.
- Não pergunte nada, porque eu não vou responder.
Não perguntei.
Castor de Andrade: chefe do império da contravenção
Histórias do Rio? Tenho suficientes para escrever um livro. Mas, talvez a mais interessante foi quando o Dr. Castor de Andrade estava preso na Polinter, na zona portuária, por força da perseguição que as autoridades jurídicas lhe moviam, acusado de liderar o crime organizado na cidade.
Cheguei no Rio de manhã e antes das 10 horas estava na frente de um delegado de polícia, que já estava avisado que o Dr. Castor me receberia para uma entrevista. Ele acenou para um investigador sem camisa, suado, com uma tremenda pistola na cinta, que por sua vez, me entregou um pouco antes da porta da cela para o Haroldo, um crioulo de dois metros de altura por quatro de fundura, que era o guarda costa do rei de Bangu.
Castor de Andrade vestia um rob de chambre de seda, que combinava com um lenço no pescoço. Fazia um calor insuportável. Mas, dentro da cela, um poderoso aparelho de ar condicionado tornava a temperatura super agradável.
Conversamos muito, como sempre. Lá pelas tantas, bateu fome. Havia um garçom na cela que nos servia café e mais café.
- Sua visita me inspirou o desejo de comida mediterrânea, meu caro. O que acha de a gente pedir comida no Da Bambrina, do Leme?
Achei que o velho tinha enlouquecido. Mas, uns 40 minutos e muito papo à frente, o garçom começou a pôr a mesa, com louça inglesa, talheres de prata, copos de cristal, guardanapos de renda, e estávamos agora saboreando Ravióli di Zucca, come primo piato, e Arrosto de Cordeiro, com batatas, come secundo. O vinho? Uma deferência do Dr. Castor: um Luís Pato, reserva especial. Ele adorava este vinho.
Mas, o que ficou de horas e horas de conversa foi uma realidade que ele mesmo explicitou: “Olha, o Estado no Rio está falido. Não consegue firmar o pé. Sempre esteve. O que há hoje é um confronto entre a contravenção (o jogo do bicho) e o crime organizado (o narcotráfico). Se nós perdermos poder, a cidade vai cair na mão deles”.
- Mas, Dr. Castor, a Dra. Denise Frossard acusa o senhor de comandar os dois lados do crime.
- Me admira você, estudioso do crime organizado, não detonar esta neófita. É óbvio que não. Meu negócio é jogo. Meu poder está no jogo. Você sabe disso. E sabe que a base que sustenta o jogo é a confiança. Quem joga sabe que, se ganhar, vai receber, faça sol ou faca chuva. Um cara que passa droga não inspira esta confiança. Veja o que aconteceu com teus patrícios na América!
Havia uma lógica meridiana. E ele seguiu:
- Meu amigo, se um apontador de jogo passar droga também, ele morre. Capito?
Mocidade Independente: nunca mais foi a mesma
O jogo do bicho não acabou no Rio, mas o poder dele sim. Uma industria que empregava mais que a Volkswagen e faturava mais que a IBM, que tinha um livro de contribuição social para a burguesia carioca, incluindo muita gente que fazia discurso moralista, acabou de uma hora para outra.
O Bangu foi para a segunda divisão do campeonato carioca. A Padre Miguel nunca mais ganhou nada. O carnaval mudou. Surgiram as milícias, os confrontos de gangs, os arrastões, as balas perdidas. A situação ficou incontrolável. A corrupção das polícias atingiu o seu ponto máximo.
Já era noite quando o Dr. Castor deu ordens para o bom e velho Haroldo me levar até o carro que me levaria ao Santos Dummont para pegar a última ponte aérea.
- Não precisa, Dr. Castor – retruquei.
- Você me decepciona. Acha mesmo que pode passar o dia todo comigo aqui e vai sair assim, sem mais? Eles vão te apagar aqui na porta da Polinter.
O bom e velho frio na espinha correu rápido. Haroldão pegou um trabuco imenso e me levou até a porta. De repente apareceu uma daquelas caminhonetes Chevrolet, de onde saíram dois gigantes armados até os dentes.
- Boa noite, doutor!
- Boa noite. Obrigado por tudo Haroldão. Deixe minhas recomendações ao Dr. Castor.
É. O Rio continua lindo. Nunca mais vi o Haroldão. Depois da morte do Dr. Castor ele foi fuzilado em um cruzamento na Gávea.

domingo, 21 de novembro de 2010

A cara do novo cinema argentino

Ricardo Darín: a expressão bem sucedida de um cinema eficiente
Em um fim de semana em que a imprensa nacional revela mais uma vez a sua incapacidade de ser proativa, reflexiva  e interpretativa, a entrevista do ator argentino Ricardo Darín ao repórter André Miranda, publicada em O Globo deste domingo, 21 de novembro, é um alento.
Darín não é um ator nos padrões de um Charles Laughton ou um Toshiro Mifune. Está naquela galeria de gênios capazes de emprestar sempre a mesma personalidade, a sua, aos personagens que interpreta. E o faz com imenso talento. Nesta entrevista, a parte mais emocionante é a resposta a pergunta Mas, não existe uma fórmula para que um filme seja atraente?
“Nós precisamos compreender nossas realidades.  As realidades da América Latina não são as mesmas da Europa ou dos Estados Unidos ou da Ásia ou da África. Temos uma identidade própria, que geralmente está relacionada a um grande drama do passado na História dos nossos povos, a uma dor acumulada por tantas injustiças. E a única forma de enfrentar este acúmulo de coisas é com o humor. Não falo sobre o humor de se fazer graça ou comédia. É um humor que surge de dentro de nossa cultura, de nossa ironia, de como nós rimos dos nossos próprios problemas. Foi importante que nossas cinematografias passassem décadas enfatizando os temas sociais de maneira séria, mas isso também acabou afastando muita gente das salas de cinema. As pessoas acabaram preferindo um cinema de efeitos especiais, sem conteúdo, um cinema que lhes era atraente porque não lhes fazia sair das salas com um peso nas costas. O diretor deve abordar temas sérios, mas precisa relaxar e deixar que esse tema flua com naturalidade, sem peso. E com humor.”
Perfeito. Darín conseguiu em poucas linhas explicitar a fórmula que tem feito o sucesso do cinema argentino: barato, bem escrito e bem interpretado.
O sucesso do atual cinema argentino começa com um inquietante filme de Fabian Bielinsky chamado Nueve Reinas. Na verdade, uma versão argentina para o clássico Golpe de Mestre, onde Darín interpreta um malandro, tão malandro, que acaba vítima da sua própria malandragem.
Mas, se é verdade que todo grande ator representa o alterego de um grande diretor, vide Mastroianni e Fellini, Mifune e Kurosawa, Brando e Coppola, Darín encontrou o seu espelho no talento impressionante de Juan Jose Campanella.
Quem viu Luar em Avellaneda sabe que Darín está interpretando Campanella. E ali está a essência do que os argentinos queriam dizer ao mundo. A cena da seleção do perfume é completamente emblemática. Sim, é possível rir da tragédia humana, ou pelo menos rir da reação que temos a esta tragédia.
Em O Filho da Noiva este estilo se torna ainda mais efetivo. O argumento é próprio de uma novela mexicana. Uma avó, um papel magistral de Norma Aleandro, sofre de Alzheimer e está internada em um asilo. O avo, vivido por Hector Alterio, um ateu convicto, vive o drama de consciência de não ter realizado o sonho da amada, de casar na igreja. O filho único, herdeiro de um restaurante decadente, travestido de tio Sukita, vive o dilema: usar ou não usar queijo mascarpone na produção de um tiramissu. De quebra tem um enfarte cardíaco e vive as voltas com o sonho de viver no México, porque seu herói infantil era o Zorro.
Darin me traz a lembrança Alberto Sordi ou Vitorio Gassman quando o cinema italiano transitava do neo-realismo para uma forma curiosa de fazer os italianos rirem dos seus problemas e partirem, ao seu estilo, para construir uma sociedade moderna e economicamente sólida.
Darin e Solledad:  irreverência em um filme noir
E no premiado O segredo dos seus olhos, uma mistura de film noir com trailer de aventura, Campanella aposta no talento e na irreverência de todos os seus atores, com destaque para Soledad Villamil. Darín na entrevista de O Globo ressalta que, provavelmente, foi o humor que contagiou a Academia e lhe convenceu a conferir o Oscar de filme estrangeiro em uma disputa acirradíssima. Realmente todos os filmes concorrentes eram muito bons.
Ainda me lembro quando liguei para meu amigo Gustavo Iaies para cumprimenta-lo pelo Oscar. E ele no melhor estilo portenho me respondeu: “Como este tenemos centenas”.
Impagável. Se for verdade mesmo que os argentinos aprenderam a rir da própria arrogância, estarão dando um passo seguro para o futuro. Não se levar a sério é um bom começo. Com certeza.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Uma visão romântica de Bach

Edwin Fischer: Bach romântico no teclado do piano
Impressionante a explicação do genial Itzhac Perlman quando perguntado por que decidiu dedicar-se à regência: “Como violinista tenho apenas um concerto de Beethoven, como regente tenho nove sinfonias”.
Perlman é o maior violinista vivo, sem dúvida. Eu o vi em um concerto na Sala São Paulo em 2005. Sua presença é impressionante. Um homem gigantesco que entra no palco apoiado em muletas (ele foi vítima de poliomielite aos cinco anos) e se apresenta sentado, o que é raro para um solista de violino. Mas, quando faz o arco soar as cordas do seu Stradivarius, que foi de Yehudi Menuhin, ninguém mais repara que ele está sentado.
Itzhac Perlman se apresenta em São Paulo neste domingo, segunda e terça-feira. Na mesma sala São Paulo e encerra a temporada anual de concertos da Sociedade de Cultura Artística. E aí, a saudade de São Paulo me mata.
Mas, o caminho de Perlman foi seguido antes dele por vários outros solistas e até cantores que abandonaram o solo e se dedicaram à regência. Ainda recentemente recebi uma coleção que comprei na Laserland, com a íntegra das gravações de um gênio absoluto do teclado, o suíço Edwin Fischer (1886-1960).
Coleção cara: R$ 277 na Laserland
Fischer já era um pianista famoso, quando em 1926 tornou-se regente da Lübeck Musikverein. Em 1932 ele formou sua própria orquestra de câmara e lançou-se a um desafio impensável. Passou a executar compositores barrocos de forma romântica, com a utilização de dinâmicas e de uma fraseologia impensável naquele período.
Como se sabe, o piano é um instrumento que só veio a luz no final do século XVIII, até mesmo boa parte das obras de Mozart foram escritas para o cravo.
Antes que algum apressadinho diga que a mudança foi apenas na sonoridade, é preciso levar em conta que o advento do pianoforte mudou completamente o conceito de teclado. O cravo é um instrumento de cordas. Na verdade, é uma engenhoca onda as cordas são beliscadas por uma espécie de ganchos. O piano é um instrumento de percussão. As cordas são percutidas por martelos de madeira e feltro.
Fischer executa Bach ao piano. E o faz maravilhosamente. Além disso rege e executa o solo ao mesmo tempo. Os concertos para cravo nos. 1, 4 e 5 são execuções que beiram o absurdo da perfeição.
Fischer com Fortwangler: encontro histórico
Dos chamados compositores românticos, a coleção me brindou com a execução dos concertos 3 e 4 para piano de Beethoven onde ele funciona como regente e solista e a execução dos concertos 5, de Beethoven e 2, de Brahms, com a Filarmônica de Berlim regida pelo mitológico Wilhelm Furtwängler.
Merece registro também a gravação da íntegra da coleção O Cravo Bem Temperado, de Bach, na leitura excepcional de Fischer. Foi a partir desta obra que a música ocidental teve sua harmonia codificada.
A coletânea de gravações de Edwin Fischer pelo selo britânico EMI é importada. São 12 cds que custam a bagatela de R$ 277, na Laserland (www.laserland.com.br). Mas, é um presente excepcional de natal. Melhor, por exemplo, que um pijama, uma lata de tinta ou assemelhados. É claro que o presenteado precisa ter ouvidos educados, ou nem tanto...

    

O jornalismo no Velho Oeste

Lee Marvin (a direita): o facínora a serviço dos criadores de gado
Ainda na linha do confronto entre jornalismo e verdade, uma das minhas aulas mais controvertidas do curso de jornalismo interpretativo é quando eu peço que os alunos assistam a um clássico do western americano: O Homem que Matou o Facínora, dirigido por John Ford, em 1962.
Os estudantes não entendem a princípio porque um bom e velho caubói, ainda que para alguns o melhor já feito em todos os tempos, sirva para uma aula de jornalismo.
Explico: a história se passa em flash back. O senador Ramson Stoddart volta à pequena cidade onde havia se tornado uma lenda, em um antigo território americano,  para enterrar o velho amigo Tom.
O território, como tantos nos Estados Unidos no século XIX, experimentava a corrida dos pioneiros, em sua maioria camponeses e lavradores que queriam conquistar seu direito à terra. Quando passaram a ocupar seus espaços, encontraram os grandes latifundiários, criadores de gado, que queriam manter os prados desimpedidos, sem cercas ou plantações que impedisse o ir e vir de bois e vacas.
Tom convence Stoddart: a verdade era outra
Para administrar o confronto, contrataram um pistoleiro cruel, Liberty Valance, que mantinha o terror e, consequentemente, a linha dura sobre os fazendeiros.
Ramson, um advogado do Leste não sabia lidar com armas de fogo. Mesmo assim, se apresenta para um duelo contra Valance  e mata o pistoleiro.
Ramson conta a história para um repórter e para o dono do jornal local. E esclarece que na verdade não fora ele que matara Valance, mas, justamente Tom, cujo corpo, na sala ao lado, esperava para ser enterrado.
Diz mais, convencido por Tom enfrentou a convenção política que o indicou como candidato e se elegeu como primeiro governador do Estado que surgiu daquele território.
O editor do jornal ao ouvir a história de Ramson, toma as anotações e rasga uma por uma. O senador perplexo pergunta: “Você não vai publicar a história?”
John Ford: através do Oeste ele via o mundo 
- Primeiro governador, senador, embaixador americano na Inglaterra, governador de novo e enfim reconduzido ao senado. Senador, no Oeste, quando a lenda supera os fatos, publica-se a lenda.
Mas, não termina ai. Ramson e sua esposa Ellen tomam o trem de volta para Washington e o chefe do trem, todo excitado pela presença de tão ilustre passageiro, arruma uma escarradeira nova e avisa que o maquinista iria estourar as caldeiras para que ele chegasse a tempo para a conexão em Kansas.
- Ellen, me lembre de telegrafar ao sindicato dos ferroviários para agradecer o empenho deles.
- Não é preciso Ramson – diz o condutor do trem. Nada é demais para agradar o homem que matou o facínora.
Para quem não suporta o Fantástico, o Gugu, o Faustão e quetais, O Homem que Matou o Facínora é uma boa opção de diversão e entretenimento, acima da média.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Um brinde a Hernandarias


Cenário triste: meninas sonhavam com a "vida fácil "no Porto de Santos

Esta foto aí de cima, aparentemente singela, na verdade é o ponto ápice de um site de reportagem que eu fiz com o João Bittar, 32 anos e muitas existências atrás. Despencamos de um avião da Vasp em Foz do Iguaçu com a incumbência nada singela de registrar o desvio do rio Paraná para a construção da barragem de Itaipu.
Foz do Iguaçu era algo muito parecido com Wichita ou Tombstone, ou seja, o Velho Oeste redivivo. Havia ainda o charme noir da tríplice fronteira. Os tipos mais exóticos e curiosos. O pau comia feio na Argentina. O contrabando corria solto em Puerto Stroessner, hoje Ciudad del Leste, no Paraguai.
Milhares de operários brasileiros e paraguaios trabalhavam avidamente na construção do que viria a ser a maior hidrelétrica do mundo. Mais precisamente no desvio de um rio, o Paraná, com um dos maiores fluxos de todo o planeta.
Era um burburinho danado e nós ficamos hospedados em um hotel, se não me engano chamado Sagres, instalado numa esquina de coisa alguma com lugar nenhum, provavelmente no limiar deste mundo com qualquer outra coisa. Lembro-me que no primeiro dia, lambemos os beiços quando divisamos na porta do restaurante um aviso apetitoso: “Hoje Bacalhau ao Forno”.
Esbaldamos-nos de tanto bacalhau. O problema é que no dia seguinte a mesma mensagem seguia afixada: “Hoje Bacalhau ao Forno”. E assim foi pelos 20 e tantos dias que ficamos por lá. Nunca mais confiei em sugestões afixadas nas portas de restaurantes de hotel.
Nossa aventura daria para escrever um livro. Mas, vou me ater a um episódio bastante divertido. Como havia seis mil operários solteiros nos acampamentos da obra, curiosamente nos interessamos em saber como este pessoal se divertia e o que a direção da binacional fazia para controlar estes divertimentos. Não é difícil imaginar, por exemplo, o que uma doença venérea poderia provocar em um ambiente desses.  
Uma fonte nos havia assegurado que as profissionais do prazer estavam confinadas em uma cidade paraguaia, onde médicos pagos pela binacional faziam regularmente os exames médicos e mantinham controle absoluto sobre todas.
Mas, que cidade era esta? Onde? Como chegar?
Rodamos e rodamos. Quando estávamos a ponto de desistir demos de cara com a pequena cidade de Hernandarias, alguns quilômetros ao Norte de Ciudad del Leste.
Era a hora da siesta, instituição sagrada entre os guaranis. Não havia viva alma pelas ruelas, sem pavimento e bastante esburacadas.
Será aqui? Como vamos saber?
Meretrício que se preza não fica na zona urbana. Mas, também não dá para esperar que anoiteça para que se divisem as luzes vermelhas.
De repente, uma menina de uns 16 anos, bobs na cabeça, sai não sei de onde e se lança sobre o capo do carro.
- Moço me leva para Santos! – disse em claro portunhol.
Achamos. O João desceu com a boa Nikon e desatou a disparar o que provocou uma verdadeira corrida de meninas. Sim, meninas. 15, 16, no máximo 17 anos. Todas, invariavelmente todas, fariam qualquer coisa para que as levássemos para Santos.
Como se eu não soubesse a razão, perguntei a uma delas:
- Por que Santos? Vocês querem ver o mar?
- Não moço, Santos tem dinheiro, marinheiros e porto. Boates sofisticadas. Lençóis limpos...
- Mas, vocês não estão bem aqui?
- Aqui nada acontece e não vai acontecer nada. A gente tem que transar por alguns trocados e uma vez por mês vem um doutor e examina todo mundo. Mas, ninguém vai sair desta vida: transar com pião não dá futuro.
Era uma realidade peculiar. Uma lógica difícil de compreender. E pobre de quem pretendesse racionalizar. Não seríamos nós.
Naquela noite, enquanto tomávamos uma cerveja na beira da piscina do Sagres, eu e o João conversamos pelo olhar. Viramos em direção a Hernandarias e brindamos envergonhados as cenas de degradação que havíamos testemunhado. Não falamos uma palavra. Nem precisava.



     
   

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Por que São Paulo é tão reacionário?

Vale do Anhangabau: festejos do IV Centenário de fundação da cidade

Esta é uma questão cruel que desafia a história e o bom senso. Por que a maior cidade da América Latina, com as maiores universidades brasileiras, certamente uma das mais importantes expressões culturais do continente, a mais cosmopolita das formações humanas, é tão conservadora?
Alguém dirá que a culpa é dos jesuítas, Manoel de Nóbrega e José de Anchieta, que fundaram o colégio em 1554. Nada a ver.
Ou dos bandeirantes que desde o século XVII se aventuraram pelo Interior do Brasil a escravizar índios e pilhar riquezas. Também não creio.
Ou ainda dos fazendeiros que desde o século XVIII acumularam riquezas à custa do trabalho escravo africano. Aí talvez esteja o gérmen de todo este reacionarismo.
Quando por uma dádiva de um amigo da família, o santo Olavo, faxineiro da redação de O Estado de S.Paulo, eu fui trabalhar no Estadão como recepcionista de noticiário, emprego conquistado pelos meus dotes como exímio datilógrafo e depois teletipista, não tinha nenhuma vontade de ser jornalista. Eu sonhava muito mais alto, queria trabalhar na indústria espacial. Ainda era marcante na mente de todos os feitos de Neil Armstrong e Buzz Aldridge.
Foi o desafio descompromissado de um superior, o professor Sebastião José Pena, então responsável técnico pelos telefones que me fez pegar nos brios. “É melhor você seguir outra carreira. Com o sobrenome que você tem, só se for trabalhar no Fanfulla”.
Alguns anos depois, ainda trabalhava no Estadão e fiz um concurso para redator de uma revista de criadores de cavalos de corrida no Jockey Club de São Paulo, então prestes a completar 100 anos. Passei em primeiro lugar e fui chamado pelo presidente João Adhemar de Almeida Prado para uma entrevista. Depois de muita conversa rigorosamente non sense, recebi a sentença com enorme perplexidade: “Você não será contratado. Preciso de alguém que tenha sobrenome”.
Isso me intimidou? Não. Mas, me revoltou bastante.
São Paulo recebeu os imigrantes italianos de braços abertos. Isso é apenas uma meia verdade. Acolheu sim no seu seio os peninsulares ricos como os Matarazzo, os Menotti Gambá e todos aqueles que possuíam posses. Aqueles que dependiam do trabalho e do improviso na vida eram chamados de porcos ou de carcamanos.
Aliás, esta designação carcamano, para quem não sabe, quer dizer ladrão. Referia-se aos comerciantes italianos do mercado público, que segundo os quatrocentões, “carcavam” a mão na balança para roubar os fregueses.
Não era fácil ser italiano nos anos 50 ou 60. A Itália era um monte de escombros. Alberto Sordi comia espagueti com as mãos. O neo-realismo de De Sica mostrava uma Itália que despertava. Mas, convenientemente, tudo era levado ao pé da letra.
Mas, nós peninsulares não éramos privilegiados pelo preconceito. Espanhóis, japoneses, nordestinos, todos estávamos no mesmo saco. Parece que São Paulo não se conformava com aqueles que trabalhavam e que, por isso, tinham que receber um salário justo. O problema era esse.
Preciso falar dos meus amigos que vieram do Oriente Médio. Todos eram chamados preconceituosamente de turcos, ainda que a geografia ensine que a Turquia fica na Europa. É claro que podemos nos conformar com a explicação que o Império Turco-Otomano tomou toda a região até a margem direita do Suez e que, portanto, os imigrantes chegaram aqui com documentos emitidos em Ancara.
Mas, não era só isso. Turco era sinônimo de oportunista, de safado, de caixeiro viajante. Ninguém queria saber se a família tinha origens na Síria secular, no Líbano, na Palestina, ou na Jordânia. Todos eram turcos e ponto.
São Paulo cresceu no século XX. Virou a cidade que mais cresce no mundo, fruto do trabalho do que Dante Alighieri chamava de “a gente nova”. Enriqueceu.
Veio a presunção e o absurdo. “São Paulo é uma locomotiva que puxa 21 vagões vazios”, em referência a federação. Reagiu à revolução de 30, quando percebeu que Getúlio Vargas iniciaria o processo de industrialização do país, do qual tanto se locupletaria. Imaginou que deporia o presidente em 32, no Catete, com a desculpa que lutava por uma constituição, mas na verdade queria de volta o poder para os fazendeiros paulistas.
Reagiu as leis trabalhistas, que proibiam crianças de trabalhar nas fábricas e nas fazendas. Reagiu à folga dominical, ao direito de férias, a previdência social. Pressionou e mandou soldados para a Itália, quando a guerra já estava decidida. Ficou inconformado com a vitória de Getúlio em 50, conspirou com Lacerda em 54, contra Juscelino, contra Jango. Apoiou o golpe de 64, com a célebre Marcha com Deus pela Liberdade.
São Paulo não tem jeito mesmo. Foram empresários de São Paulo que patrocinaram a Operação Bandeirante, que prendia, torturava, seqüestrava e matava. Onde surgiu o Esquadrão da Morte e a Rota 66.
Nada mais antipático que frases do tipo: porque nós em São Paulo fazemos isso ou fazemos aquilo. Como se por lá não existissem favelas, problemas na saúde, na educação, políticos corruptos e empresários corruptores.
Por mais que doa a elite paulista, São Paulo fica no Brasil. E não adianta repetir a exaustão o mantra da bandeira de 13 listas, o Brasil é maior que São Paulo, culturalmente mais rico, mais diverso, mais moderno.
Olhar o Brasil com a ótica de São Paulo é perverso. Como de resto em todo o país, os quatrocentões se esvaíram no próprio reacionarismo. Luis Inácio Lula da Silva é a prova cabal de que os rincões elitistas, que ainda persistem, são rigorosa minoria. Não há mais condições para que as elites assaltem o poder como em 64. Os trabalhadores de São Paulo sabem disso.
Tanto sabem que não negam seu trabalho e seu esforço por um país melhor, mais homogêneo, mais justo e democrático.

sábado, 13 de novembro de 2010

Missão cumprida no Recife

Recife: da junção de dois rios nasce o Oceano Atlântico
“Pernambuco falando para o mundo. Tem o mundo a voz de ouro, meu cantar é meu tesouro”.


Então, foi uma sexta-feira épica daquelas que como diria William Shakespeare: Malditos aqueles que ficaram em Brasilia e que não lutarão comigo no dia de São Crispim e São Crispiniano.
Duro mesmo foi ter que tomar uma aula: “Nós temos que ver o interesse da imprensa e não o dos ministros”.
A culpa é minha. Com certeza. Sempre é. Me lembrei do Steinbeck e do Kapa na União Soviética. Era madrugada e os dois chegaram para tomar um avião para Moscou. Estavam no Mar Morto. Era um daqueles cargueiros americanos que tinham perdido sangue na II Guerra.
Um soldado postado na frente do avião dirigiu-se aos dois e pontificou: Ninguém embarca.
Nada demoveria aquele soldado. Ordem é ordem. Nem o próprio Stalin embarcaria naquele avião. Os dois jornalistas dirigiram-se ao comandante da base aérea, que ao ouvir o relato, limitou-se a olhar para o relógio.
- Dêem mais 15 minutos e se apresentem para embarcar.
No prazo acertado, outra sentinela permitiu que eles acomodassem suas malas no porão e se refestelassem nas poltronas improvisadas da lata velha americana. O comandante ainda foi se despedir dos dois e explicou:
- Era mais fácil trocar a guarda do que mudar o comando dado a um soldado soviético. Dois comandos poderiam obrigá-lo a raciocinar, o que seria absolutamente indesejável.
Pois é, se o comando era para a entrevista coletiva ser realizada no escritório regional da Advocacia Geral da União, em Boa Viagem, por que diabos mudar? Para agradar a imprensa? Ou para tumultuar?
Resultado: uma entrevista conturbadíssima, confusa, em ambiente inapropriado. Melhor trocar o soldado, não acham?
Mas, deu tudo certo. A liminar caiu. O meu emprego se manteve. O ministro Luis Ignácio Adams, da AGU, é uma figuraça. Haddad comeu um camarão a grega, que deveria se chamar camarão a toda Grécia, tal o volume de camarões. O dr. Mauro comeu uma cioba recheada, por força de alergia a crustáceos, eu e o Ary comemos uma moqueca de camarões e lagostas. Almoçamos no Bargaço  do Pina.
A comadre Beatriz Castro gravou a entrevista que queria com o ministro para o Hoje. A Renata Cafardo dançou na sua pretensão de gravar sua entrevista para o Fantástico.
Aliás, Fernando Haddad realmente não existe. Mais de 90% da esplanada daria o braço para aparecer na mais xarope das revistas televisivas. Ele simplesmente esnoba. “Não estou a fim e tenho dito”.
Hehehehehe. O soldadinho soviético não entendeu nada. Não vai entender nunca. Acho que com 40 anos de experiência na imprensa, não preciso tomar lições de um burocrata. Então, vai aprender na segunda divisão.
Minha proposta de mandar um caminhão de melancias para a juíza de Fortaleza não foi bem recebida. Ela teria dificuldade para compreender. Quanto ao procurador, quem ele pensa que engana?
Foi bom estar em Recife de novo, ainda que por poucas horas. Dar um beijo bem gostoso na nora de Lulinha. Fazer uma prece para que a Margarida tenha uma boa hora no parto. Ouvir aquele sotaque gostoso, de gente bonita. Sentir o sol no rosto e o calor na camisa. Que saudades do Alcyr, Bruno, Pedro Henrique, do Duda, de Martinha, da outra Martinha, de Márcio Makmann!
Que pena! Foi tão rápido. Deu tempo apenas de beber um suco correndo na base aérea. Suco de cajá. Verdadeiro. Não polpa.
Até outro dia Recife querido. Nossa missão foi cumprida. Obrigado.


   

terça-feira, 9 de novembro de 2010

E Deus apareceu em Boston

Diego Armando Maradona: Deus contra a Grécia no Foxboro Stadium, em Boston
Conheci Diego Maradona no Japão em dezembro de 1978. Era um menino franzino de pernas grossas, que jogava com desenvoltura na seleção under 21 da Argentina com uma perna esquerda impressionante.
Quando voltei, comentei com colegas e amigos que Mario Kempes logo, logo, iria abrir mão da camisa 10 daquela seleção. Não posso esconder que muita gente tirou uma da minha cara. Ainda mais porque havia um ressentimento muito grande com o campeonato mundial daquele ano, vencido pelos hermanos no Monumental de Nuñez.
Não se pode cobrar dos colegas lembranças de momentos passados em um bar. Mas, o grande – se não o maior – repórter Osmar de Freitas Júnior, muitos anos depois lembrou: “Bem que você avisou que o menino era fera. E nós, imbecis, preferimos rir da sua profecia”.
Claro que nem sempre eu acertei minhas profecias. Mas, aquela tinha um componente diferente. Diego Armando Maradona era o anjo do arrabal, o pibe de ouro, tinha um brilho especial nos olhos, um controle de bola e uma visão de jogo que eu jamais havia visto.
Antes que alguém me pergunte se ele era melhor que Pelé, já respondo: Não era e não se compara. Seria o mesmo que perguntar quem era melhor, Picasso ou Modigliani?
Maradona saiu do Argentino Júniors, foi para o Napoli, e de lá para o topo. Vice em Milão em 1990, campeão em 1986, no México, à frente de uma seleção medíocre, e assim por diante.
Encontrei com ele em Recife no dia 23 de março de 1994, despedida das duas seleções que iniciavam preparativos para a Copa do Mundo nos Estados Unidos. Conversei longamente com ele no Mar Hotel e fiquei assustado. Ele estava enorme de gordo. Inchado mesmo. Seus olhos já não brilhavam.
- Te prometo que nos Estados Unidos vou estar pronto. Devo isso as minhas filhas – foi o que ele me disse quando nos despedimos antes do jogo.
Contra o no Mundão do Arruda, Maradona ficou no banco, com a camisa de fora para não mostrar o quanto estava decaído.
Em julho, depois de assustir a insuportável abertura da Copa, no Soldier Field, em Chicago, tomei um avião e fui para Boston para ver Argentina e Grécia. Com muita, mas muita dificuldade consegui entrar na concentração da seleção argentina e encontrei um Maradona magro, olhos brilhantes, que me recebeu com um abraço carinhoso e se despediu com uma promessa: “Vou arrebentar!”
Era o mesmo Maradona de Tóquio. Passeava no campo. Deixava Caniggia e Batistuta na cara do gol. Levava a defesa grega ao desespero.
Escrevi e o Tão publicou uma matéria entusiasmada na Istoé: “Deus existe!”
Dias depois, quando cheguei a Dallas, Ilia Júnior, âncora esportivo da TV Bandeirantes me contou no estúdio que havia um caso de dopping positivo. Ele escondia uma satisfação cruel e eu logo percebi que o sonho do Pibe iria se transformar em pesadelo.
Não deu outra. Nem sei se a pseudo-ephedrina é um poderoso estimulante como disseram. O próprio Maradona jurou que não sabia nada sobre isso. Mas, o sonho morreu ali, na mesma cidade onde JFK foi baleado.
Tinha certeza que Maradona não sobreviveria aqueles acontecimentos. Torci muito por ele. E acompanhei o noticiário do calvário em que sua vida se transformou: Diego era e continua sendo um menino que gostava muito de jogar bola. Nada mais. Pena que ele, como eu, pensava que era Deus e acabou no inferno como anjo caído.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Los periodistas brasileños son todos mentirosos!


Ônibus na rota de Caaguazu: vigilância contra camponeses sediciosos

Nestes tempos em que se voltou a discutir o direito dos jornalões dizerem o que bem entendem, me veio à lembrança um episódio que tem a ver com o direito dos repórteres de apurarem os fatos.
Um camponês paraguaio da cidade de Caaguazú, revoltado com a arrogância dos tecnocratas de Itaipu e pressionado pela realidade agrícola do país, decidiu sequestrar um ônibus com outros 30 companheiros, para se dirigir a Assunção e protestar ao presidente Stroessner, aquela figura meiga, democrática e honesta.
O ônibus foi sequestrado na saída da cidade fronteiriça de Presidente Stroessner, hoje Ciudad del Leste, e jamais chegou a Assunção. Na verdade, escafedeu-se em alguma curva da Rodovia Panamericana.
Chegamos a fronteira eu e o companheiro Hélio Campos Mello pouco mais de 24 horas depois do seqüestro. Decidimos que iríamos chegar a Caagazú de ônibus e tomamos o primeiro com destino a Assunção, com o cuidado de solicitar ao motorista que nos avisasse no momento em que ele passasse pelo nosso destino.
O ônibus merece uma descrição. Era um velho coletivo inglês, provavelmente construído pelo esforço de guerra, com os pneus carecas e um motor dentro da cabine que reproduzia com perfeição o que imagino ser o som do inferno. Além disso, dezenas e dezenas de cucarachas, como astronautas da primeira viagem a Vênus, habitavam alegremente as paredes.
Pode-se dizer que entrava tudo naquele ônibus. Não entrava gado bovino porque não passava pela porta. Porcos e galinhas havia pelo menos seis de cada. Inclusive um galináceo, cuja proprietária tomou o cuidado de equipar com uma fralda descartável.
Logo na saída da cidade, uma barreira do exército vistoriou o ônibus, sabe deus em busca do quê. Implicaram com o volume de filmes que o Hélio levava. Mas, se satisfizeram com a explicação de que nós éramos representantes, vendedores, da Kodak.
Amparados por uma daquelas pocket bottles de White Horse, empreendemos a viagem ao som imaginário de uma guarânia. Finalmente, no meio da madrugada, o velho ônibus parou no meio do nada e o motorista nos apontou a porta.
Descemos em um escuro profundo. O Hélio explodiu um flash para que conseguíssemos ver a placa que apontava Caagazú: 5 kms. Sem qualquer alternativa, começamos a caminhada por uma estrada de terra, guiados apenas, eventualmente, pelos nossos Zippos.
No meio da caminhada, enquanto ríamos da condição em que estávamos, fomos abordados por uma patrulha do exército paraguaio. Meninos de rosto pintado, armados com fuzis veteranos da Guerra do Chaco, grunhindo em guarani:
- Aonde vão?
Estava tão escuro e a dificuldade de comunicação foi tão grande, o aparato da patrulha era tão ostensivo, que emergiu uma conclusão óbvia: estávamos na pista certa.
Fomos revistados, minuciosamente. Implicaram de novo com a quantidade de filmes. Mas, enfim, nos liberaram.
Quando chegamos à cidade, não havia uma só lâmpada acesa. Havia um único hotel, se é que poderíamos chamar aquele estabelecimento assim. Quase derrubei a porta, até que apareceu um sujeito vestido em uma camisola, barrete, e um lampião de querosene nas mãos.
- O que vocês querem?
- Dormir, tomar um banho, essas coisas do mundo civilizado.
- Estamos completamente lotados. O máximo que eu posso fazer é deixar vocês dormirem nos sofás da recepção.
Eram uns sofás surrados, forrados com courvin. A criatura ainda nos arrumou uns lençóis, cobertores e travesseiros.
Dormimos em instantes. Acordei ouvindo a voz do Ricardo Kostcho e um burburinho. A cidade também despertara. As pessoas cuidavam dos seus afazeres normalmente, como se nada tivesse acontecido.
Igreja de Caaguazu: padre apavorado. "Nao vi nada!"
A bordo de uma xícara de café com leite, pão com manteiga, nossa equipe agora era formada por quatro profissionais, Ricardo Kostcho e Ubirajara Dettmar, pela Folha, eu e o Hélio, pela Istoé. Nossos amigos tinham alugado uma Brasília, em Foz, e por esta razão haviam chegado a tempo de conquistar uma cama. Por onde vamos começar? Não dá para sair pela rua perguntando: “Vocês viram um ônibus com camponeses revoltados por aí?”. Não dá para ir à delegacia de polícia.
Igrejeiro como ninguém, Ricardo teve uma idéia brilhante: o padre!
E lá fomos nós para a paróquia local. O padre rezava uma missa para umas 15 almas piedosas. Estava dando a comunhão. Esperamos um pouco e literalmente invadimos a sacristia.
- Sim, meus irmãos, o que posso fazer por vocês?
O piedoso pastor ficou literalmente em pânico quando lhe perguntamos sobre o ônibus.
- Não sei de nada. Não vi nada.
Insistimos e insistimos. E com as mãos no rosto, coberto de vergonha, o jovem padre praticamente murmurou entre os dentes.
- Estão todos mortos. Passaram por aqui, foram levados a um acampamento do exército, e foram executados.
- Mas, onde é este acampamento?
- Sigam por trás da igreja, sempre em linha reta. Mas, tenham em mente que vocês podem ter o mesmo destino dos camponeses.
Nós quatro engolimos em seco, mas saímos em desabalada carreira, estrada a dentro, com algumas precauções. O melhor volante de nós era o Hélio. Mas, decidimos que tanto ele como o Dettmar deveriam ir no banco de trás, com as máquinas prontas para disparar. Assim, me coube o papel de piloto.
Imprimi uma velocidade segura, evitando sobressaltos – as populares costelas de cabrito – e, de repente, estávamos cercados por um verdadeiro teatro de operações. Helicópteros, blindados, a soldadesca em movimento.
Fomos presos em minutos. Mãos na cabeça. Revistados à exaustão e encaminhados a um certo coronel Pastor, o comandante da operação. No percurso até a barraca do coronel, ainda vimos os 30 corpos cobertos com aquele plástico preto, e o que parecia ser a estrutura de um ônibus incendiado.
- O que vocês estão fazendo aqui? Quem são vocês?
- Nós somos jornalistas brasileiros e estamos procurando um ônibus com camponeses que se dirigia a Assunção.
- Não existe nada disso. Estamos aqui apenas fazendo manobras.
- Mas, coronel, temos informações que eles foram trazidos para cá. O que são estes corpos e este ônibus incendiado?
Nesse momento, tinha absoluta convicção de que estávamos diante do Rio Rubicão. Ou teríamos as informações e não sairíamos de lá vivos, ou nem teríamos as informações.
- Eram subversivos. E nós aqui tratamos esta gente deste jeito.
E aí coroou com a frase cabal:
- Los periodistas brasileños son todos mentirosos!
Disse com ironia, alto e claro, e complementou ordenando que nos prendessem.
No caminho, sabe deus para onde, um tenente com cara de fuinha começou a desenhar um cenário de horror.
- Acho que vocês não têm saída. Comecem a se despedir da vida.
Falou isso no mesmo momento em que passávamos pela Brasília alugada. Dettmar, safo como ninguém, enfiou a mão no bolso, tirou um monte de cédulas, pôs na mão do tenente e gritou.
- Vamos gente!
O recado foi entendido num segundo. Acho que nunca dirigi com tanta rapidez! Ainda ouvimos tiros quando saímos. O tenente, tentando livrar a cara, com certeza. Aliás, uma das balas, conferimos depois, ficou cravada no pára-lama da Brasília!
No asfalto, voando em direção à fronteira, correu um frio na espinha de todos. Como diabos nós vamos atravessar a ponte? Será que o tal coronel deu o alarme? E se nos pegarem lá?
Alguém sugeriu que procurássemos o cônsul brasileiro em Puerto Stroessner.
- Esquece.


Ponte na fronteira"Por que vocês querem me enganar?"
A antiga Ciudad del Leste regurgitava de turistas, ávidos pelas compras. A ponte estava bem movimentada, com as velhas sacoleiras, ônibus de turismo, etc... Mas, só havia movimento no lado brasileiro.
Passamos na aduana paraguaia sem emitir um som, devargazinho... Quando chegamos no lado brasileiro, um funcionário da Polícia Federal nos obrigou a descer do carro. Ficou enlouquecido com os equipamentos do Dettmar e do Hélio.
- Vocês querem me enganar que este equipamento é do jornal e que vocês não compraram nada no Paraguai?
- Não compramos. E não queremos te enganar.
- Por quê? Todo mundo aqui quer nos enganar.
Porque somos jornalistas. Y los periodistas brasileños son todos mentirosos!
A ditadura do general Stroessner não se dignou nem responder a matéria do Ricardo e do Dettmar na Folha e nem a minha e do Hélio na Istoé.
Os camponeses foram enterrados. Suas famílias, expulsas do país. E ficou por isso mesmo. .


terça-feira, 2 de novembro de 2010

O som do holocausto


Auschwitz, na Polônia: judeus eram executados ao som da música de Mozart
No início dos anos 80 eu vivia em um confortável apartamento no bairro de Moema, em São Paulo, e tinha o hábito de mensalmente reunir alguns amigos no sábado para verdadeiras maratonas musicais. Escolhíamos um compositor, cada um de nós levava o seu disco predileto ou a mais recente novidade do mercado fonográfico. E passávamos horas ouvindo e discutindo a história, a interpretação ou a gravação.
Numa destas tardes havíamos escolhido Mozart. Lembro-me da excitação porque recém havia voltado de Buenos Aires com uma gravação extraordinária de O Rapto do Serralho, regida por sir Thomas Beecham.
Wagner: genio de personalidade conturbada
Excepcionalmente naquela tarde, para minha surpresa, fomos diversas vezes interrompidos pelo interfone e uma insistente reclamação quanto ao volume da audição. A insistência tornou-se mais freqüente quando nos dedicamos a ouvir uma gravação da Sinfonia 41, que meu amigo Antonio Carlos, competente baixo-barítono, havia trazido de sua viagem a Europa. Se não me engano, era uma versão de Rudolf Kempe à frente da Orquestra Filarmônica de Viena. Uma raridade!
Naquela manhã de domingo acordei com o cheiro do pão crocante da padaria da esquina e desci lépido para degustá-lo com manteiga. Mas, ao sair do elevador fui abordado por uma jovem muito simpática, em roupas casuais, que certamente me aguardava por algum tempo lendo a gigantesca edição dominical do Estadão.
- O senhor me desculpe por ontem, mas é que minha avó veio morar conosco e ela é sobrevivente de Auschwitz. Não sei se o senhor sabe, mas quando os judeus eram encaminhados para as câmaras de extermínio, os nazistas colocavam Mozart no sistema de som do campo. Foi assim que ela viu seus pais e seus irmãos serem assassinados. Infelizmente quando ela ouve Mozart, todas estas lembranças lhe vêm à mente e ela sofre muito.
Nazistas filhos da puta! Não bastasse terem provocado a morte de 50 milhões de pessoas ainda ousaram manchar a música divina de Wolfgang Amadeus Mozart, um dos mais queridos e amados compositores de todos os tempos.

Bayreuth: o templo wagneriano dos festivais anuais de ópera
 Enquanto vivi naquele apartamento, nunca mais ouvi Mozart, a não ser através dos fones de ouvido.
Lembrei-me desta história ao ler a competente reportagem de Graça Magalhães-Ruether, correspondente de O Globo, em Berlim, a respeito do convite da bisneta do compositor alemão Richard Wagner, Katharina, para que uma orquestra de Israel se apresente no Festival de Bayreuth.
Para quem não sabe, Bayreuth é um templo wagneriano erigido na Bavária, graças a “generosidade” de Ludwig II, em 1876. Desde então, todos os anos no verão, são apresentadas óperas de Wagner e para lá acorrem os mais privilegiados aficionados.
Richard Wagner tinha uma personalidade forte e um caráter bem duvidoso. Mas, era um gênio. Influenciou todas as gerações que se seguiram a ele. Seus seguidores como Mahler e Bruckner e seus opositores como Debussy e Stravinsky.
Ele fez a transição entre o bel canto da escola verista para o drama lírico e influenciou até mesmo o gênio de Busseto, Giuseppe Verdi, em suas últimas óperas, notadamente em Otelo.
Nossa presidente, Dilma Roussef é admiradora de Wagner e apaixonada pelo Tristão e Isolda, o ápice do romantismo. Eu prefiro o humor hermético de Os Mestres Cantores de Nuremberg.
Filarmônica de Israel: choro e abandono por conta de Wagner
Wagner morreu em 1883, cinco décadas antes que os nazistas chegassem ao poder na Alemanha. Não tem nada a ver com aquela imbecilidade coletiva patrocinada por Adolf Hitler. Era anti-semita, o que na Europa do século XIX não se constituía em uma distinção. O Beckmesser de Os Mestres Cantores é a prova disso. Mas, ninguém discriminou Shakespeare mesmo ele tendo escrito uma das obras mais anti-semitas que eu conheço, O Mercador de Veneza.
Ocorre que Hitler e seus animais nazistas valeram-se de Wagner e de Bayreuth para afirmar aquela bobajada de raça pura, supremacia teutônica, etc...E só quem viveu na Europa nos anos 30 e 40 pode dizer o quanto esta operação publicitária foi traumática.
Em 1981, o maestro indiano Zubin Mehta, então regente titular da Filarmônica de Israel provocou uma enorme polêmica ao reger o prelúdio do I Ato de Tristão e Isolda. Muita gente chorava na platéia e houve protestos marcantes.
O maestro argentino Daniel Baremboim, filho de judeus russos, regeu a orquestra da ópera estatal de Berlim, em Tel-Aviv, e tocou nada menos que o prelúdio do III Ato de As Valquírias. Foi uma barafunda, com muita gente abandonando a sala de concertos.
Desta vez, entretanto, parece que vai dar certo. A Orquestra de Câmara de Israel, regida por Roberto Paternostro, deve mesmo se apresentar em Bayreuth, como parte do programa do jubileu do bi-centenário do compositor húngaro Franz Liszt, sogro de Wagner, que morreu em 1886. Vai executar obras de Wagner, Liszt, Mahler e Mendelssohn. Dificilmente se apresentará no palco do teatro do festival.
Mas, isso não tem nenhuma importância. Como explicou o maestro Paternostro na reportagem da Graça: “A nova geração de músicos sabe diferenciar o significado musical da obra de Wagner”.
Tomara que, como disse o prefeito Michael Hobl, de Bayreuth, a apresentação da orquestra de Israel sirva para mostrar,65 anos depois, que a tolerância da arte e da cultura se sobrepõe a um dos mais estúpidos episódios da história do homem.