quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O fim de 2010 e a inspiração do bardo

Sir Laurence Olivier como Henrique V: pequeno exército de irmãos na França
Não me lembro de um ano tão longo como esse 2010. Foi como se estivéssemos vivendo uma trama shakespeariana, com todos os componentes, o bufanismo, a tragédia e, claro, a perspectiva de futuro.
William Shakespeare é um destes fenômenos estranhos. Costumo dizer que ele se insere naquela galeria de seres de outro planeta que aportaram na terra, indiferente ao seu tempo e aos seus costumes. Na minha época de universidade, tínhamos o hábito de assumir uma de suas peças. Assim, um era Otelo, outro Hamlet, outro Romeu e assim por diante.
O bardo, como é chamado, desde os tempos elizabetinianos, até hoje, desafia a compreensão de tantos, e a cada reedição ou adaptação para o teatro ou para o cinema, provoca sempre uma polêmica acalorada e apaixonada. Eu tenho uma prima chamada Ofélia. Aliás, uma prima querida, professora e gestora educacional no interior de Minas Gerais. E, de longe, talvez a tragédia do príncipe dinamarquês seja a mais encenada e conhecida do peça do célebre autor inglês – ou quem sabe siriano.
Neste final de ano, com tanto frisson pelo que ele representa, saltou à minha lembrança um dos meus personagens preferidos entre tantos.
Não. Não é Julio César, embora considere a mais política de suas obras.
Trata-se de um rei pequeno, cercado por um pequeno grupo de seguidores, diante de uma cultura terrível de traições, que se dispôs a unificar os reinos da Inglaterra e da França. Me refiro a Henrique V, o monarca que reivindicou um trono e recebeu uma caixa de bolas de tênis em resposta.
Lembro-me pelo menos de duas versões no cinema. Uma por Sir Laurence Olivier e outra mais recente de Kenneth Branagh. As duas são excepcionais. Uma mais teatral e outra mais cinematográfica.

 Branagh : a vigília de São Crispim e São Crispiniano

Como em toda obra de Shakespeare há um pouco de verdade e um pouco de ficção. A batalha de Azincourt de fato existiu. Ela se insere entre os maiores equívocos militares de todos os tempos. Henrique estava subjugado por um exército e uma cavalaria pelo menos três vezes maior, em uma posição de defesa quase desesperada, enfiado em uma depressão. Ou seja: os soldados ingleses teriam que enfrentar uma carga francesa que desceria dos morros para atacá-los em um vale.
Ocorre que na vigília da batalha, na madrugada do dia de São Crispim e São Crispiniano, dois sapateiros martirizados na Gália no ano 287, choveu muito e o terreno de batalha transformou-se em um lodaçal. Um dos generais de Henrique, Glócester, propôs ao seu suserano que dispusesse seus soldados nos flancos, permitindo que os franceses descessem para o vale sem enfrentar obstáculos.
Foi o que aconteceu. A arrogância do Delfim ordenou um ataque maciço pelo centro. Os cavalos se atolaram no lamaçal e os soldados franceses foram presas fáceis dos ingleses, que caíram sobre eles, pelas laterais.
Naquela vigília terrível, Henrique cobriu-se para não ser identificado e percorreu o acampamento de suas tropas para medir o grau de lealdade e o espírito de seus soldados. Antes da batalha, proferiu uma oração brilhante, da qual reproduzo um dos trechos mais emblemáticos:

... “Hoje é o dia da festa de São Crispim; quem sobreviver a este dia voltará são e salvo para casa, ficará na ponta dos pés toda vez que falarem no dia de hoje e crescerá só com o nome de São Crispim. Quem sobreviver a este dia e chegar à velhice, anualmente, na vigília desta festa, convidará os amigos e dir-lhes-á: ‘Amanhã, é dia de São Crispim’. Então, arregaçará as mangas e, ao mostrar as cicatrizes, dirá: ‘Recebi estas feridas no dia de São Crispim’. Os velhos esquecem; entretanto, aquele que de tudo se tiver esquecido, lembrar-se-á, mesmo assim, com satisfação, das proezas que realizou naquele dia. E então, nossos nomes serão tão familiares em suas bocas quanto o nome de seus parentes; o rei Henrique, Bedford, Exeter, Warwick, Talbot, Salisbury e Glócester ressuscitarão na lembrança viva e saudável com taças espumantes. Esta história será ensinada pelo bom homem ao filho e, desde este dia até ao fim do mundo, a festa de São Crispim e São Crispiniano nunca passará sem que esteja associada à nossa recordação, de nosso pequeno exército, de nosso feliz pequeno exército, de nosso bando de irmãos; porque, aquele que hoje verter o sangue comigo será meu irmão; por muito vil que seja, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que agora permanecem na Inglaterra, deitados no leito, sentir-se-ão amaldiçoados pelo fato de não se encontrarem aqui e considerarão de baixo preço a própria nobreza, quando ouvir falar um daqueles que combatera conosco no dia de São Crispim!”....

Neste final de 2010, só posso repetir o rei Henrique: “...e os cavaleiros que permanecem na Inglaterra, deitados no leito, sentir-se-ão amaldiçoados pelo fato de não se encontrarem aqui....”

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Morte a Moby Dick!

Moby Dick, a baleia branca: o homem em busca de seu próprio destino

A primeira vez que eu li o romance Moby Dick, clássico da literatura norte-americana de Herman Melville, eu tinha uns 15 anos. Fiquei fascinado. A história de Ishmael e de Queequeg, o Pequod e seus três imediatos, o capitão Ahab e a sua obsessão pela baleia branca. O final trágico, a morte de todos e o caixão que serviu para apenas um sobrevivente, que afinal nos conta a história.
Naquele tempo não existia o discurso politicamente correto, nem o Greenpace, nem Marina Silva e a saga dos baleeiros ao redor do mundo não era vista como uma mortandade ou um morticínio.
Herman Melville: um clássico incorreto
Ainda não tinha me livrado do impacto que aquele livro de páginas amarelas e letras miúdas havia me provocado quando tive a felicidade de ver a versão cinematográfica de Moby Dick, pela leitura competente de um dos diretores americanos que, eu nem suspeitava naquela época, iria me marcar profundamente. Ao longo de sua obra anterior e posterior eu iria me identificar com a sua linguagem. John Huston iria se tornar o meu diretor predileto. Mas, naquela noite de uma terça-feira chuvosa na frente do cine Roma, na avenida Alcântara Machado, eu não tinha como saber disso.  Como também não sabia que a saga do Pequod, o baleeiro administrado por quakers, de propriedade de viúvas e órfãos do mar, também marcaria para sempre a minha vida.
Recentemente uma colega chegou a torcer o nariz para o filme. Não reconheceu nem a genial construção do sermão na igreja de New Bedford, onde um Orson Welles rigorosamente tomado,  transforma-se no pastor de marinheiros que conta a lenda de Jonas, com uma força interpretativa absolutamente genial. Huston cria um ambiente tremendo, onde o púlpito tem a forma da proa de um navio.
Teatral? Sem dúvida. Mas, absolutamente genial, uma das maiores sequências da história do cinema.
Welles como o pastor: genialidade de Huston
O Ahab de Huston era muito próximo da forma que eu imaginava. Um homem com um corpo e uma alma mutilados. A prótese branca de osso de baleia na perna esquerda e a obsessão da vingança. Inacreditável imaginar Gregory Peck neste papel.
O personagem mais inquietante da história, entretanto, é o primeiro imediato, Starbuck. Racional e temente a Deus, ele enxerga o pecado e a afronta a Deus na obsessão pela vingança de Ahab. Mas, quando o capitão enlouquecido se lança contra a baleia branca e sucumbe amarrado a ela, é ele que se dirige a um bando perplexo e apavorado de baleeiros e grita:
- Morte a Moby Dick!
Porque ele. Logo ele. Barreira racional a vingança de Ahab, agora incitava os companheiros a perseguir e caçar a baleia branca?
- Moby Dick é apenas uma baleia. Uma gigantesca baleia branca. Mas, uma baleia. E nós somos baleeiros e vivemos para caçar baleias.
O mar agitado ao largo de Madagascar serve de túmulo para os baleeiros e para o Pequod, que sucumbe a um redemoinho provocado pela baleia e naufraga.
 Ahab:morte à baleia que mutilara o seu corpo e sua alma
Esta determinação de Starbuck e o desfecho da história constituíram-se em um dos principais dilemas a animar a minha juventude e boa parte da minha vida adulta. Afinal, era apenas um grupo de baleeiros que cumpria seu destino inexorável de perseguir e tentar caçar uma baleia e desaparecia nesta tentativa.
Hoje, 50 anos depois, eu me descubro embarcado no Pequod. Descubro que sempre estive em busca da baleia branca. As vezes me sinto Starbuck, outras tantas me sinto como Ishmael, ou como Queeqeg, que manda o marceneiro do navio construir o caixão que servirá de salva vida para Ishmael.  
Talvez eu seja mesmo Ahab, o obcecado. O capitão ensandecido. E talvez as costas de Madagascar estejam mais próximas do que eu imagine.
Será que estou preparado para enfrentar a minha baleia branca? Será que enfim a perseguição chegará ao fim?
Enquanto isso, o Pequod seguirá navegando. Posso não  ser o seu capitão. E provavelmente não sou, mas certamente estou embarcado e conheço bem a tripulação que viaja comigo.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Papel aceita tudo, ou quase tudo


Sinclair com a vizinha de François: delírio de um escritor diante do quotidiano

Uma das coisas que mais fascinam jornalistas, romancistas e todos aqueles que têm o privilégio de transformar seus pensamentos em palavras escritas é o poder das pretinhas (atenção politicamente corretos, me refiro as teclas de uma antiga máquina de escrever, não precisam se ouriçar).
De fato, diante de um teclado de computador, qualquer um de nós se sente uma espécie de deus, com o poder de materializar em palavras nossas fantasias, nossos sonhos, nossas incompetências e nossas competências. Uma amiga minha muito querida e há muito sumida, Anita, dizia mesmo que eu me transfigurava diante da máquina de escrever.
Confesso que a manipulação das teclas e o desenvolvimento das idéias na tela me dão um certo prazer, as vezes mórbido, as vezes entusiasmante. Conheço muitos colegas e escritores competentíssimos que sofrem muito para escrever. Felizmente não padeço deste mal.
Mas, a arte de projetar a nossa mente na tela, não raro esconde o nosso eu verdadeiro. Um de meus personagens favoritos é um escritor de novelas ordinárias, que se projeta no personagem que ele cultua. Estou falando do filme O Magnífico (1973) de Philip de Broca.
Nele um escritor chamado François Merlin sobrevive nos subúrbios de Paris à custa de um herói fictício Bob Sinclair. Merlin, vivido por Jean Paul Belmondo, é um fracassado, tímido, cobiça com os olhos a vizinha vivida pela belíssima Jaqueline Bisset, certamente uma das atrizes mais lindas de todos os tempos.
Jaqueline Bisset: uma das maiores musas dos anos 70
O filme é uma bobajada. Diverte sem compromissos. O engraçado é que Merlin transforma os personagens do seu quotidiano nos vilões da história de espionagem, que tem Sinclair como seu alter-ego. Assim, os encanadores são agentes da Albânia, seu editor é um super-vilão e sua vizinha, claro, a heroína apaixonada por ele.
Uma das melhores piadas do cinema começa com o mergulho de Sinclair na piscina do Hotel Plaza em Acapulco. Quando ele sai da piscina se dá conta que sua pílula de cianureto escondida junto de seu maxilar ( que ele usaria para se matar, caso fosse necessário) havia desaparecido. Ao virar-se para a piscina, vê dezenas de corpos boiando.
Um outro caso de escritor que se projeta na própria realidade é o cultuado Ian Fleming, o cara que inventou o maior agente secreto do século XX, James Bond.
Fleming foi um repórter medíocre da Reuters na segunda guerra mundial. Sua família pertencia a aristocracia decadente britânica e ele então decidiu criar um personagem para se projetar. E cá entre nós, Bond, James Bond, era o máximo da elegância e da sofisticação. Quem viu os primeiros filmes da série, sabe do que estou falando.
Quando eu era adolescente, era fissurado num pocket-book muito popular àquela época chamado Brigite Montfort. Era uma agente da CIA, que barbarizava a guerra-fria com seu corpo escultural, moreno, seus olhos azuis e sua capacidade de seduzir os agentes russos.
O apelo ainda era mais chulo. Brigite era filha de Gisela, a espiã nua que abalou Paris. Na verdade, uma dançarina de Cabaré que seduzia os oficiais alemães e lhes arrancava informações que eram repassadas para a Resistência Francesa.

Brigitte: espiã sexy criada por Benício

Meu Deus, viajei muito embalado por Brigite Montfort e Gisela, até descobrir que elas e suas histórias foram criadas por um escritor espanhol Antonio Vera Ramirez, que escrevia com o pseudônimo de Lou Carrigan. A imagem que ainda persiste na minha lembrança foi criada por José Luis Benício, o mestre das pin-ups brasileiras, seguidor de ninguém menos que Norman Rockwell.
O poder do papel é  tremendo. Merlin vira Sinclair, mas termina como Merlin apaixonado pela vizinha. James Bond já mudou de cara um sem número de vezes, mas será sempre o alter-ego de Fleming. E Brigitte, criação de um espanhol, viverá sempre pelos traços de Benício.


 
   

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Quando a realidade supera a ficção

O Grande Irmão: aquele que tudo vê, reescreve a história e determina o futuro
Diz-se que a boa ficção é aquela que se confirma. Confunde-se ficcionista com pitoniza, o que é um erro de essência. Afinal, ainda que a ciência humana não tenha conseguido desenvolver um computador como o Hal 9000, não dá para dizer que a obra de Arthur Clarke fracassou na visão do homem que busca o princípio criador.
Mas, é principalmente na ficção política, mais do que na científica, que as entrelinhas se afirmam como base de conteúdo. Para isso é preciso mergulhar nos anos 50, quando a geração baby-boomer se confrontou com o fantasma autoritário do futuro. Foi quando George Orwell concebeu 1984 e Ray Bradbury anteviu a tragédia de Farenheit 451.
Ao pé da letra as duas obras, excepcionais exercícios ficcionais, concebem regimes transnacionais, ultra-autoritários. No primeiro se relativiza a história, com a criação do Ministério da Verdade, onde todas as informações que se confrontassem com o sistema eram adulteradas ou apagadas. No segundo, pura e simplesmente se abole a escrita como forma de comunicação, com as implicâncias inerentes, qual seja a destruição de todo e qualquer documento ou obra literária impressa. Cria-se uma nova linguagem baseada apenas em imagens.
Montag e os incendiários de Farenheit 451: livros deveriam ser queimados
Nenhum dos dois autores teve o privilégio de antever a revolução digital, mas ambos atribuem um poder descomunal a um veículo que apenas engatinhava nos anos 50, a televisão. Em Bradbury, a tevê é a única forma de entretenimento permitida, com uma inimaginável, para a época, interatividade. Numa sociedade fria, formada por autômatos, era permitido participar da produção de espetáculos de televisão a partir da própria sala de estar. E chega a ser hilária a concepção do Teatro da Família, quando dois personagens discutem na tevê a disposição de visitantes em uma casa e perguntam a um terceiro personagem, que está assistindo, a sua opinião. Ela responde apenas “absolutamente”. E esta resposta lhe vale uma série de elogios ao final.
Em Orwell a televisão é mais sofisticada. Ela funciona como hipnotizadora e como controladora do comportamento dos cidadãos. Invade a privacidade de todos e simplesmente delata aqueles que não se enquadram nos ditames do Grande Irmão, ou se preferirem Big Brother. Quando Winston Smith descobre que há uma tela de televisão no refúgio onde mantém encontros secretos com sua amada, o desfecho da tragédia é evidente. Sabe-se que os amantes serão presos e reeducados.
Tanto Smith, criado por Orwell, como Montag, criado por Bradbury, emergem de dentro do sistema. O primeiro é funcionário do Ministério da Verdade e o segundo é um bombeiro em carreira ascendente, cuja função primordial e única é incinerar os livros encontrados. Os dois começam a se questionar pela contradição. Orwell mais pessimista condena Smith à reeducação e o dilui na massa de seguidores do Big Brother. Bradbury, mais otimista, leva Montag a uma comunidade subversiva, onde os sobreviventes do regime decoram seus títulos preferidos sob a perspectiva de um dia eles voltarem a ser impressos.
Curiosamente, Orwell nunca teve uma boa tradução para o cinema. Houve duas adaptações, ambas britânicas, que reduziram a ficção a um thriller e permitiram que a essência do drama ficasse diluída. Bradbury teve mais sorte. Seu Farenheit 451, sob a competente direção de François Truffaut, com Oskar Werner e Julie Christie (disponível em DVD), tornou-se um dos clássicos da filmografia do competente diretor francês.
Cerca de 50 anos depois de ambas as concepções, pode-se dizer que os dois erraram na profecia de que a humanidade seria dominada por um regime politicamente totalitário. Naqueles tempos quando a guerra-fria propunha a incerteza quanto ao amanhã, não poderiam imaginar que a dominação se daria por normas de comportamento e de consumo.  Acertaram na imbecilização através da cultura de mídia, onde as massas são levadas a consagrar preceitos globais e a propaganda torna o não-consumo insuportável.
Orwell faz com que os filhos entreguem os pais à inclemência do Grande Irmão. Bradbury faz com que a mulher de Montag denuncie que o marido escondia livros em sua casa. Nas duas obras, as relações pessoais são frias e objetivas. Os sentimentos humanos são substituídos por um carreirismo frio e sem objetivo. Smith se dá mal porque descobre a paixão que lhe desperta o questionamento. Montag pelo questionamento descobre um mundo que lhe era negado e que justificava a sua existência.  
Não dá para dizer que Bradbury e Orwell tiveram visões proféticas que se confirmaram nestes 50 anos. Mas, acertaram em cheio na involução do questionamento do enunciado básico do existencialismo: quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Aliás, ninguém mais parece preocupado com isso. A formulação atual é outra: quem mais tem, mais pode; quem não tem, não pode. Certamente este cenário, real nestes primeiros anos do século XXI, encheria os corações e as mentes dos dois autores de um terror muito maior que aquele antevisto no mundo do Big Brother, de Orwell, ou dos primos de Bradbury.




quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O novo primogênito dos Briguglio




Depois da bela Helena, veio ao mundo agora Andrei, o primogênito da terceira geração dos Briguglio no Brasil. Filho do meu sobrinho Arturo, neto do meu irmão André.
Helena e Andrei, nós que chegamos antes, vamos fazer o possível para legar para vocês um mundo melhor.



segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A execução perfeita


Este post é dedicado ao meu regente predileto, a doce maestrina Ligia Amadio, que neste momento dirige orquestras sinfônicas em Jerusalém.




Filarmônica de Berlim: abusou do direito de ser a melhor orquestra do mundo
Quem me conhece e conhece meu gosto musical sabe que neste quesito eu sou duro como uma rocha. Do tipo que escova os dentes com cândida e só se banha com sabão de coco. Culpa do meu tio Kiko e do meu primo Cláudio que me ensinaram a procurar sempre o melhor. Pois neste fim-de-semana chegou as minhas mãos o que pode se chamar de a execução perfeita: em termos técnicos e em termos de interpretação.
É claro que a música é um momento, uma feliz conjunção de leitura, compreensão e dissertação. Quando se trata de um conjunto musical com 140 músicos, mais maestro, ensaiador, copista, etc, o momento ideal é raro. Para não dizer raríssimo.
Mas, o que aconteceu nesta gravação ao vivo da 7ª. Sinfonia de Gustav Mahler, dirigida por Cláudio Abbado, à frente da Filarmônica de Berlim, transcende o racional.
Cláudio Abbado: rigor nos ensaios e clareza na leitura
A captação do som é perfeita, um dos problemas nas gravações mais antigas, a orquestra se revela toda perfeita, toda sonora. Ouve-se tudo como se os músicos estivessem na nossa sala. Abbado é, sem dúvida, um dos grandes maestros contemporâneos. Mas, se excedeu. Fez uma leitura perfeita, nem marcial nem pastoral demais, numa partitura dificílima. Deu ritmo, andamento e dinâmica perfeitos. É o que o Claudio me ensinou 40 anos e milhares de existências atrás, a virtude da fraseologia perfeita. O poder pictórico da escrita musical.
Gustav Mahler (1860-1911) era o que se chamaria hoje de uma alma perturbada. Nascido em uma família judia na Áustria, converteu-se ao cristianismo, foi rejeitado por ambos. Tinha horror ao pan-germanismo (ao contrário de Bruckner que era um entusiasta) tão em voga naquela época. Casou-se com outra alma perturbada, Alma, e jamais superou a perda das duas filhas, uma com sete e outra com nove anos.
Até hoje é considerado um dos mais completos regentes, tendo sido titular da Filarmônica de Viena por duas décadas, quando ela era considerada a maior e melhor orquestra do mundo.
Por ser um regente rigorosíssimo, capaz de liderar ensaios de mais de 12 horas, suas composições são de um rigor impressionante. Ele tira o máximo de cada um dos instrumentos e o efeito do conjunto é único. Mahler é Mahler. Não há nada antes dele, nem depois dele.
Gustav Mahler:gênio de alma perturbada
Sua obra se divide em nove sinfonias (mais uma inacabada). As cinco primeiras inspiradas em um ciclo de canções chamado Das Knaben Wunderhorn (A Trompa Mágica do Menino). As cinco últimas são as mais rebuscadas. Na primeira, quinta, sexta, sétima e nona ele usa apenas o aparato orquestral. Nas demais vale-se do concurso de coros, solistas vocais, ou os dois. A oitava, também chamada de Sinfonia dos Mil usa mais de 300 vozes, além de um conjunto orquestral de mais de 150 músicos. Na primeira parte trabalha sobre um hino Veni creator spirito. E no segundo, transcreve para a música a segunda parte do Fausto de Goethe.
Esta sétima sinfonia que Abbado rege tão bem é uma daquelas armadilhas tipicamente mahlerianas. Dois tempos gigantescos, o primeiro Adágio e Alegro Resoluto e o quinto, um Rondó, Allegro Ordinário. No meio, duas serenatas intermediadas por um Scherzo. Parece fácil, mas é aí que mora o perigo. Solos longuíssimos, expressivos silêncios, metais abafados. Como diria o tio Kiko, é música para ninguém botar defeito. Música, música, muita música. Cada detalhe é importante, cada nota, cada entonação.
Recomendo com entusiasmo para os iniciados e para quem quer se iniciar. Trata-se de uma gravação Deustche Grammophon, de 2002. Recentíssima portanto.
Em tempo: é bem verdade que a Filarmônica de Berlim desde há muito abusava do direito de ser a melhor orquestra do planeta. Se alguém tem ainda alguma dúvida, depois desta gravação, não terá mais.


  

domingo, 12 de dezembro de 2010

A indignação dominical dos coleguinhas

Educação no Brasil: despertou de um sono secular, agora é perseverar
Se há uma coisa na qual eu deixei de acreditar a algum tempo é a indignação de coleguinhas. E faz tempo. Cansei de ver gente brava e revoltada em um momento e doce e serena no instante seguinte, como num toque de mágica. Uma promoção, um aumento de salário, uma viagem, às vezes apenas uma salada no Gigetto.
Quando a indignação está expressa nas páginas, aí é preciso muito, mas muito mais cuidado. É sempre de bom tom analisar os aspectos pessoais, os envolvimentos comerciais, já aprendi faz tempo que não existe almoço de graça e que, a maioria dos coleguinhas não está mesmo nem aí para o andar da carruagem. É claro que há exceções. Gloriosas, é verdade.
A leitura de jornais e revistas aos domingos é uma das minhas tarefas obrigatórias, ademais como em todos os dias. E é nas edições dominicais tão pomposas quanto pretensiosas que o pessoal solta a franga e distila as abobrinhas que habitam seu pensamento.
Esta indignação por conta da avaliação da educação brasileira no PISA é de provocar urticária. Pois vejamos:
  1. Todos sabiam que o Brasil desde que aderiu ao exame internacional da OCDE no ano 2000 ocupa as últimas posições de um ranking que na verdade tem de cara 35 países sócios, ou seja, os países mais desenvolvidos do planeta, o que não é o nosso caso.
  2. Todos sabem que temos uma dívida secular na educação pública brasileira, acumulada pela conjunção de fatores tão próprios da brasilidade. A saber: escravidão, monarquia de escola de samba, república de soldadinhos de chumbo, igreja católica, senhores de engenho, elite vendida, classe média descerebrada e operariado desmobilizado, várias modalidades de ditadura, classe política fisiológica e por ai vamos....
  3. Todos também sabem que a educação pública brasileira nasceu com Gustavo Capanema no Estado Novo getulista. Mas, só ganhou status de política pública, para valer, depois da Constituinte de 88.
  4. Todos sabem também que até então nenhum governante tinha clareza sobre o que fazer com a Educação. Exemplo disso foram os Macieis, Tinocos e que tais que habitaram o Ministério a Educação em passagens efêmeras e desastrosas.
  5. Todos sabem, ou deveriam saber, que não existe salto em educação. Que uma reforma, ou revolução educacional, é geracional, ou seja, precisa de pelo menos 25 anos para assestar suas bases.



Shangai: a mais desenvolvida cidade da China

Pois bem, o Brasil no Pisa 2009 está entre os países que mais melhoraram na década. Apenas Chile e Luxemburgo melhoraram mais. Convém lembrar que o Chile equivale a um estado médio brasileiro e Luxemburgo, como diria o general Moltke (comandante do estado-maior alemão na primeira guerra mundial) é pouco mais que uma estação ferroviária.
O Brasil ficou em 53º lugar em um ranking de 65 países. Não é uma posição honrosa, é verdade. Mas, a nossa frente apenas um país tem o PIB menor que o nosso, a Tailândia. E esta babação toda sobre os resultados da China tem a ver com uma estratégia diria no mínimo estranha. Os chineses não se permitiram ser avaliados como um todo. Deram para avaliação apenas as províncias de Shangai, Hong Kong e Macao.
Ora, será que os coleguinhas não sabem que Shangai é a província mais desenvolvida do país, Hong Kong era britânica até outro dia?
O que emerge da análise dos resultados do PISA é que o Brasil despertou. Como diria o presidente Lula, fugiu do rebaixamento. Estamos disputando uma vaga na sul-americana ( passamos Argentina e Colômbia, estamos atrás de Chile, Uruguay e México). Se persistirmos, poderemos disputar a Libertadores e em 10 anos o Mundial interclubes.
Os coleguinhas latino-americanos definiram o resultado brasileiro como “impressionante”. Mas, para os exigentes analistas da imprensa brasileira foi “uma vergonha”.
Nesta semana, o presidente Lula lança o Plano Nacional da Educação, documento que vai balizar a educação brasileira nos próximos dez anos. Nele está expresso, com clareza, o que precisa ser feito para o Brasil continuar e perseverar na busca de uma educação de qualidade: Mínimo de 7% do PIB; remuneração, formação e atualização adequadas de professores; visão sistêmica de todo o processo ( da creche a pós-graduação); atendimento garantido a todas as crianças dos 4 aos 17 anos; educação integral, entre outras metas.
Em outras palavras, é seguir o que estamos fazendo. Perseverar na avaliação e nos objetivos. E, sobretudo, manter o caráter republicano na aplicação da política da educação.
É isso, ou voltamos aos patamares anteriores, quando realmente éramos literalmente os últimos da escala.
Quanto a indignação dos coleguinhas, sempre me vem aquela pergunta: “Onde estavas quando as luzes se apagaram?”



sábado, 11 de dezembro de 2010

Uma viagem pela Irlanda

Fotografia premiada: história é ambientada na Costa Oeste da Irlanda
David Lean com Robert Mitchum e Sarah Miles: pele arrancada dos atores

Uma boa dica para quem não pretende passar o final de semana as voltas com compras de Natal e outras atividades tão comuns nesta época do ano. Vale a pena ver, ou rever, A Filha de Ryan, do cineasta inglês David Lean, produção britânica de 1970, vencedora do Oscar de Melhor Fotografia, para Freddie Young, e de ator coadjuvante para John Mills.
Trata-se de uma daquelas produções típicas de Lean, onde o dinheiro não faltou. Filmada em cenários reais da Costa Oeste da Irlanda, tem música de Maurice Jarre e uma fotografia que chega a arrepiar. Além de John Mills, que faz o retardado Michel, o elenco traz Sarah Miles, jovem e maravilhosa, Trevor Howard, Christopher Jones e um surpreendente Robert Mitchum, já sexagenário no papel de um singelo professor  de aldeia.
A história se desenvolve em 1916, quando o IRA decidiu aproveitar-se do conflito mundial no continente para apertar sua luta contra a dominação inglesa. Mas, na essência o que se conta é a história de uma menina mimada pelo pai, dono do pub da aldeia, que não se encaixa nos limites provinciais da aldeia, casa-se com o professor muito mais velho, mas acaba apaixonada pelo jovem capitão inglês, completamente neurótico, que policia a aldeia.
Apesar de ganhar dois oscars, mais que merecidos, A Filha de Ryan não fez um sucesso comercial tão retumbante como Doutor Jivago, Lawrence da Árabia ou a Ponte do rio Kwai, ou ainda o poderoso Passagem para a Índia, que viria depois. David Lean foi muito criticado e ficou mais de dez anos sem rodar outro filme. Ao receber a premiação da Academia, John Mills não pronunciou uma única palavra porque o seu personagem, Michel, era também surdo e mudo.
David Lean é um destes diretores de filmões. Usa e abusa de todos os recursos possíveis e faz com maestria. Diretor exigente, arranca a pele dos atores. É interessante por exemplo conferir a atuação de Barry Foster, o mesmo do Frenezy, de Alfred Hitchcock, no papel do mitológico líder irlandês Tim O’ Leary. Mas, é com Sarah Miles, que interpreta e doce e sonhadora Rosy Ryan, que o diretor inglês revela toda sua capacidade de fazer brotar um personagem, capaz de trazer a história até os dias de hoje.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Um café em Congonhas

Inauguração em 1936: Vista aérea do remoto Aeroporto de Congonhas
Algumas horas em São Paulo e um café sempre gostoso, em minutos, com minha amiga Ana Laura Haddad, competentíssima chefe da comunicação do Aeroporto de Congonhas. Aninha é uma das boas amigas que me sobraram do período de quatro anos em que trabalhei como superintendente de comunicação social da Infraero, a falecida estatal que cuida dos 65 principais aeroportos brasileiros.
Ana Laura me diz que tem muita gente com saudades e outros tantos que até hoje jogam sal pelo ombro a menção da minha passagem pela estatal. É sempre assim, em todos os lugares por onde eu passei, desde que me apresentei para trabalhar como estafeta na velha Arno, da avenida do Estado, ainda no final da década de 60.
Reconheço que meu temperamento é difícil e que nem todos tem estrutura para agüentar meu jeito meridional, obstinado e muitas vezes exigente.
Mas, a minha passagem pela Infraero, com o saudoso senador Carlos Wilson à frente da empresa, ainda tem o poder de me deprimir. Não por conta da relação com os profissionais com quem eu trabalhei. Foram os descaminhos de um projeto que tinha tudo para dar certo e que agora coloca o novo governo da presidente Dilma em confronto com uma realidade dura: vai faltar aeroporto no Brasil, nem para a Copa, nem para a Olimpíada, vai faltar mesmo no dia-a-dia. E isso é uma verdade inconteste.
Tive o privilégio de redigir o primeiro paper que o governo do presidente Lula recebeu sobre a situação dos aeroportos em 2003. Se bem me lembro, os fatos eram os seguintes:
  1. O movimento de passageiros era de 75 milhões/ano, o equivalente a um único aeroporto americano, o O’Hare, em Chicago.
  2. A grade de vôos domésticos estava toda viciada com uma superlotação absurda no Santos Dumont, no Rio, na Pampulha, em Belo Horizonte, e, claro, em Congonhas, em São Paulo.
  3. Os aeroportos de Viracopos, em Campinas, Confins e Galeão estavam subaproveitados e praticamente abandonados.
  4. A grade internacional estava toda centrada em Guarulhos. Havia apenas vôos esparsos em outros aeroportos.
  5. Um passageiro havia sido atropelado. Isso mesmo atropelado por um ônibus na pista de Congonhas.
  6. Moradores da Favela da Maré haviam invadido a pista 35, a maior do pais, no aeroporto do Galeão.
  7. A Transbrasil tinha falido deixando um rombo considerável e a carcaça de vários aviões espalhada. A VASP estava às portas da falência e a VARIG depois de 75 anos de bons serviços prestados, estava quebrada, mas mantinha a força de um lobby monumental, controlava o transporte de cargas, os vôos internacionais, etc...
  8. Ninguém sabia direito qual era a função da Infraero. Tudo era muito confuso. Ela se misturava com a Força Aérea, com as companhias de aviação e até com o DAC, Departamento de Aviação Civil do Comando da Aeronáutica.
  9. Os funcionários em sua maioria eram despreparados e 60% deles de alguma maneira tinham um relacionamento familiar com algum parente da Aeronáutica.

Embarque: um Fokker recebe passageiros em 36
Carlos Wilson sabia que os tempos de recessão econômica do governo anterior iam ficar na história e que, na esteira do desenvolvimento, o movimento aéreo iria crescer e crescer muito, como aliás cresceu.
O resgate de Confins e do Galeão infelizmente não colocou Congonhas e Santos Dumont nos padrões que deveriam. O super aeroporto de Viracopos não saiu do papel. E o desastrado aeroporto de Guarulhos, que rigorosamente não tem para onde crescer, virou uma lata de sardinha confusa e apertada.
Claro, nestes últimos anos tivemos o apagão aéreo 1,2 e 3. O acidente da Gol. O acidente da TAM. A quebra da VARIG, o estabelecimento do duopólio Gol-TAM. O surgimento da ANAC. E até alguns malucos que ressuscitaram o projeto do aeroporto de Caieiras, na Grande São Paulo, uma obra faraônica inimaginável, que só poderia ter surgido das entranhas do malufismo nos anos 80. A pobre da Infraero derreteu-se como manteiga ao sol. 
O conturbado cenário da aviação civil brasileira se resolve de uma maneira singela. Basta construir o super aeroporto de Viracopos, tornar operativo o Aeroporto de São José dos Campos. Iniciar a operação do expresso aeroporto entre São José e Campinas, com trens velozes de até 150 quilômetros. Reforma ampla e geral do Aeroporto do Galeão. A construção dos novos aeroportos de Florianópolis, Vitória e Goiânia. Uma malha aérea mais eficiente. Não tem como inventar a roda.
Nestes oito anos o movimento aéreo brasileiro passou de 75 para 150 milhões de passageiros. E nesta década deve dobrar de novo.
Podem jogar quanto sal quiserem pelo ombro, mas não será uma empresa paramilitarizada, que servia para aconchegar parentes de brigadeiros e atender estranhos e convenientes interesses, que vai dar conta deste desafio.
Profissionais como a Ana Laura, a Fernanda Lima, a Claudinha, o André e outros tantos, que se dedicaram a ela durante décadas, deveriam ser mais ouvidos. Eles estiveram no balcão em contato com o público usuário, conhecem todos os meandros da empresa. Não estão nem ai para as efemérides ou para as festinhas.  


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A marca da maldade

Ulysses Guimarães: morto pela Talis muito antes do helicoptero que se perdeu
Uma das coisas que eu aprendi ao longo de 40 anos de profissão é que o meio jornalístico é mau. Malvado mesmo. Um ofidário como diria Elio Gaspari. A competição é uma das marcas registradas desta profissão: quem consegue a notícia mais sensacional, quem consegue agradar o seu editor, ou o dono do jornal. E nesta corrida, vale tudo: dedo no olho, rasteira, voadora no peito e assim por diante.
Jornalistas competem com jornalistas, muito mais que jornais e revistas competem entre si. E isso se explica pelo motor da atividade: a vaidade.
Neste cenário as maldades são comuns. Algumas singelas como informações desencontradas ou confusões propositais. Outro dia me ligou um repórter flamante, daqueles que imagina vencer o Pullitzer naquela manhã. A arrogância dele era tal que eu não me contive. Na décima vez que ele perguntou o meu nome, não tive dúvidas:
- Gustavo Capanema.
- Pois é senhor Capanema eu queria conversar com o ministro Paulo Haddad sobre.....
Um dos mais brilhantes jornalistas que eu conheci foi o repórter e editor José Carlos Bardawill.
Erudito como poucos. Apreciador de bons textos, Bardawill era a competição em pessoa. Ele competia com a própria sombra, não confiava em ninguém. Tinha lá o jeito dele de trabalhar e era extremamente competente, ainda que a sua marca registrada fosse o folclore. As pessoas sempre se lembram que ele caiu no túmulo do Juscelino tal a ansiedade em estar presente no enterro do ex-presidente.
Um dos divertimentos mais cruéis do grande Mino Carta, na antiga IstoÉ era receber o telefonema de Bardawill, então chefe da sucursal de Brasília, as quatro horas da manhã, em meio ao fechamento da edição e desopilar o fígado:
- E aí Mino? Tudo bem? Posso fechar a sucursal?
- Bardawill, como fechar a sucursal? Você me apunhalou pelas costas. Estamos com um buraco enorme aqui porque a reportagem que você mandou não se sustenta. Deste jeito será impossível mantê-lo no cargo.
- Mas, Mino, como isso é possível, as informações foram checadas e rechecadas?
- Naaaaaaaaaao Bardawill, você me apunhalou pelas costas!
O pobre Bardawill ia dormir certo que havia perdido o emprego e, ainda que o Mino pregasse esta peça nele toda madrugada de sexta-feira, nem a publicação da reportagem na edição de sábado o convencia de que se tratava de uma maldade pura.
Mas, a maior sacanagem com o Bardawill rolou assim meio que sem querer, quando ele vivia em São Paulo e era o editor de política do Jornal da República.
O cabeçalho de um jornal revolucionário: Bardawill era editor de politica
O chefe da produção do jornal, Talis de Aquino, decidiu forjar um despacho da antiga Agência Jornal do Brasil informando a morte do então deputado Tancredo Neves. Era algo mais ou menos assim:


Brasília, 6 (AJB) – URGENTE --- Acaba de falecer no plenário da Câmara dos Deputados o deputado Ulysses Guimarães. (SEGUE).



O malvado do Talis misturou o despacho da AJB no meio de outros despachos e colocou-se em posição privilegiada para acompanhar a reação do editor.
Bardawill soltou um longo Ohhhhhhhh! Mas, não deu sinal de maiores reações. Não pegou o telefone, não ligou para ninguém.

O malvado partiu para o segundo telegrama:


Brasília, 6(AJB) – URGENTE --- Um ataque cardíaco fulminante tirou a vida agora há pouco do deputado Ulysses Guimarães, no plenário da Câmara dos Deputados. O parlamentar paulista chegou a receber respiração boca-a-boca do senador Tancredo Neves, mas seu coração não resistiu. (SEGUE)


Desta vez, a emoção foi forte demais. Bardawill praticamente invadiu o aquário do Mino não só para comunicar a tragédia, como para receber orientações do editor.
Não foi muito difícil para o Mino perceber que se tratava de uma das muitas maldades que se perpetrava com o ingênuo Bardawill e disparou a instrução mortal:
- Façamos o seguinte. Você fecha a edição que vai para o Interior e aí se concentra em uma grande reportagem, coisa de seis páginas: “O Ulysses que eu conheci, por José Carlos Bardawill”.
Vaidade? Auto-suficiência? Ninguém nunca vai saber o que passou na cabeça dele. Mas, o certo é que Bardawill fechou a seção de Política do Jornal da República em velocidade recorde. O Talis, por sua vez, produziu mais de uma dezena de telegramas dando conta da decretação do luto oficial, da reação dos militares, do mundo político e assim por diante.
Bardawill deu uns três telefonemas e se contentou em ser o informante da pretensa desgraça que havia ocorrido em Brasília. Nada, nem mesmo a verdade, iria impedi-lo de escrever o texto da sua vida.
Era pouco mais de nove horas quando ele voltou ao aquário com o calhamaço de laudas. Coisa de mais de duas mil linhas. Ali estava competentemente registrada a vida do lendário deputado Ulysses Guimarães.
Deu dó!
No domingo seguinte, Bardawill estava de plantão quando chegou as suas mãos um novo telegrama da Agência Jornal do Brasil:


Florianópolis, 10(AJB) – URGENTE --- O ex-senador Petrônio Portella, ministro da Justiça, sofre um enfarte em hotel de luxo na cidade de Laguna.


- Ah! Não! Vocês querem me aplicar de novo? Desta vez eu não caio.
Portella faleceu naquele domingo.
Que maldade!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Por que o brasileiro é tão conservador?

Carnaval: marca registrada de um pais que respira sensualidade e conservadorismo 
Não chegou a ser uma surpresa uma recente pesquisa do Datafolha, relativa a postura ideológica dos brasileiros. Nada menos do que 47% se dizem de direita, 23% de centro e apenas 30% de esquerda. O levantamento teve ainda o cuidado de auscultar a postura nacional em relação a temas polêmicos como descriminalização da maconha, aborto ou maioridade penal. E o resultado foi ainda mais acachapante. A maioria 79% ainda entende que a cannabis é muito mais nociva que o álcool; 63% condenam a interrupção da gravidez e 84% defendem que a barreira etária legal dos 18 anos deveria ser reduzida.
Não faz muito tempo que, em consulta popular, a maioria dos brasileiros votou contra o desarmamento em massa da população. Entenderam que a posse de uma pistola é fundamental para sua defesa. Isso, em pleno século XXI.
O que a pesquisa do Datafolha buscou consolidar é o anacronismo e o corolário de contradições que ainda emergem da sociedade. E uma constatação difícil de ser engolida: os brasileiros são, em sua maioria, conservadores, quase ao nível do reacionarismo, menos no nível político e, principalmente, nas questões comportamentais.
Nos anos 80, na vigília da eleição municipal que confrontou Eduardo Suplicy com Paulo Maluf, consultei os coletores de lixo que passavam pela porta da minha casa sobre a opção eleitoral que seria exercida na manhã seguinte. Todos os cinco, sem exceção, confirmaram que votariam em Paulo Maluf. Motivo: Eduardo Suplicy era comunista.
Provavelmente aqueles senhores estavam preocupados com o capital que acumularam, ou com as imensas glebas de terras que possuíam e, portanto, estavam apavorados com a possibilidade de um seguidor de Karl Marx chegar à Prefeitura e socializar seus pertences.
Algum ser que desembarcasse em Guarulhos proveniente de um planeta solar, ficaria perplexo com o grau de licenciosidade da sociedade brasileira. Não precisaria de uma pesquisa muito alentada. Bastaria analisar a propaganda, as novelas, o carnaval. No Brasil se respira sexo, em tudo. E não é apenas uma insinuação singela.
Mas, é um equívoco monstro imaginar que a sociedade brasileira absorve esta, digamos, licenciosidade. Além disso, toda esta sexualidade tapuia ainda vem carregada de uma dose extremada de machismo. Ou seja, aos rapazes tudo, as moças... Pois vejamos, a figura do Ricardão, o testicocéfalo, versão tropical de D.Juan, que arrebata corações e arremata paixões, é até cultuada nos meios sociais com certo orgulho. Uma brasileira desprendida, que tenha o mesmo comportamento, é execrada e discriminada pelos piores adjetivos.
Na essência, os brasileiros são conservadores porque não aprofundam. Culturalmente preferem acreditar em conceitos pré-elaborados. Frases fáceis que emergem da auto-ajuda ou de um extemporâneo enunciado de sabedoria popular. Consagram a oportunidade. Atribuem importância ao conjuntural e deixam de discutir a essência.
A estrutura do pensamento brasileiro ainda é rural, no sentido mais anacrônico que o termo pode trazer. Quem pensa é o dono da fazenda. Tudo que emana da Casa Grande é rigorosamente tolerado. A senzala... Bem a senzala é uma senzala.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Salvem a humanidade!

Cena importante do filme Obrigado por Fumar: o que é politicamente conveniente?
O que quer dizer um comportamento politicamente correto? Os idiotas da objetividade, como diria Nelson Rodrigues, imediatamente se apressarão em responder que se trata de um elenco de medidas e posturas contra causas impopulares, que atentam contra os direitos da maioria ou de determinada minoria, que contam com a simpatia dos formadores de opinião e dos veículos de comunicação. Estes preceitos, entretanto, não são pétreos, podem migrar, mudar, aprofundar ou tornar-se invisível, de acordo com o interesse comum. Leia-se um grupo de pessoas e interesses.
Nos anos 70, por exemplo, o consumo do café, o principal produto de exportação brasileiro, era considerado politicamente incorreto. O açúcar de cana, refinado, também.
Com a explosão das causas ecológicas, o clássico romance americano de Hermann Melville, Moby Dick, foi guindado a posição de politicamente incorreto. Afinal era preciso salvar as baleias.
Depois, passada a era de Marcelus Cassius Clay ou Mohammed Ali, foi a vez de se considerar o boxe um esporte maldito. E, neste espectro, Ernest Hemingway e Norman Mailer, verdadeiros ideólogos da sua prática, caíram em desgraça. O que dizer então de Joe Louis, Rock Marciano, Sugar Ray Leonard.
Surgiu então a indústria do aspartame e logo o politicamente correto passou a ser o consumo daquelas gotinhas. Não importa se o café arremata uma feijoada, açúcar branco passou a ser veneno.
Manteiga! Credo. Pode haver veneno maior? E dá-lhe margarina, de preferência light.
Mas, o grande papel de algoz da humanidade, já há 20 ou 30 anos, sem dúvida, é do tabaco. Pobre de quem tenha a petulância de acender um cigarro em público. Invariavelmente é execrado, sem nenhuma clemência. Afinal, o tabaco mata.
E mata mesmo. É responsável por uma série de doenças, da impotência às mais diversas formas de câncer. Pior, onera brutalmente o sistema público de saúde e obriga os governos impolutos, principalmente do terceiro mundo, a investir mais do que poderiam para compensar a tragédia provocada por hordas e hordas de fumantes inveterados que agonizam em leitos de hospitais públicos.
Um dos melhores filmes, críticos destes comportamentos politicamente corretos tem o sugestivo nome de Obrigado por Fumar. É uma produção barata, cinematograficamente sem novidades, a não ser pelo roteiro, que nestes tempos de efeitos especiais, tem o agravante supremo de ser bem escrito. E está disponível em livrarias e lojas especializadas.
Não se trata de um libelo a favor do tabaco. Na verdade, o que se discute, através da ação de um bem humorado lobista americano, é a estranha compulsão de se implantar normas de comportamento à sociedade, como se fôssemos todos imbecis, sem nenhuma capacidade de entendimento.
O tabaco mata. Mas, o colesterol mata mais. Nem por isso há uma caveira na entrada das diversas lanchonetes McDonalds espalhadas pelo planeta. Ou a foto de uma criança obesa, hospitalizada, na embalagem de um Big Mac.
O filme é mais do que uma polêmica sobre comportamentos corretos ou incorretos. E leva a algumas reflexões. Ainda outro dia encontrei um amigo de velhas batalhas na trincheira de democracia e, por um instante descobri-me chocado ante a revelação de que ele emprestava sua força de trabalho para um notável senador do PFL. Ex-esbirro da ditadura.
Mais surpreso ainda fiquei quando o colega desatou a entoar loas ao comportamento de seu assessorado como se ele falasse de Winston Churchill. Ante a minha incredulidade, ele me fuzilou: “Olha, tenho duas ex-mulheres e quatro filhos adolescentes. Tenho pensão para pagar todos os meses e ainda preciso me sustentar. Preciso muito acreditar na competência do senador”.
O lobista da indústria do tabaco, em Obrigado por Fumar é mais feliz na justificativa das razões pela qual defende a indústria do tabaco: “Tenho uma hipoteca para pagar”.
Luisa Altenhoffen: ninguem vendeu tanta cerveja
Ainda recentemente o Congresso Nacional e o Ministério da Saúde envolveram-se em uma discussão sobre a propaganda da cerveja. Afinal, se tabaco não pode, álcool também não pode. Pode existir alguma coisa mais politicamente incorreta do que passar a idéia de que ao abrir uma lata de Skol, você pode se deliciar com os atributos físicos de uma Luísa Altenhoffen?
Alguém regiamente pago pela indústria da cerveja conseguiu convencer nossos vetustos parlamentares de que seria suficiente indicar a moderação no consumo para que todos pudessem colocar a cabeça no travesseiro. Não explicaram se no consumo da dita cerveja ou nos atributos da bela Luísa.
E, por falar nisso, o culto a estas senhoras de belas formas e cérebro de ameba, também não é um comportamento politicamente incorreto? O que fazer então com as revistas masculinas e/ou femininas? Ora, se um convite para um almoço pode ser considerado uma forma de assédio sexual...
Li num jornal popular de São Paulo há algum tempo que um cidadão, morador da periferia da cidade, desempregado há muito, decidiu pescar em uma lagoa razoavelmente próxima a sua casa. Mal sabia ele que rompia o resguardo de um criadouro de tilápias. Foi preso. A mulher desesperada no périplo para localizá-lo, acabou assaltada. O assaltante também foi preso. O pescador ficou detido por crime inafiançável, o assaltante foi solto e espera o julgamento na rua.
Salvem as tilápias!
Esta eu li em um anuário ecológico europeu. Uma ONG preocupada com uma tribo do coração da África, que ocupava uma floresta tropical há dois mil anos, decidiu introduzir o consumo do gás engarrafado como forma de preservar a madeira nativa que servia de fonte de energia para aqueles pobres coitados. Em seis meses, o grupo se dispersou, em busca de outra floresta e acabou dizimado pela guerra civil entre hutus e tutsis.
O cinismo de Obrigado por Fumar nos remete, sem dúvida, a uma série de contradições na postura politicamente correta de uma sociedade pós-moderna que se alimenta de penduricalhos. Faz pensar seriamente na hipoteca que todos temos que pagar, mas não justifica que sejamos todos tratados como uma matilha de cães a uivar sem nenhuma razão para isso.