quinta-feira, 31 de março de 2011

Be italian!

Sandro Millo e Mastroianni: Guido e Carla na versão de 1963

Penelope Cruz: uma Carla tremendamente sensual
Um dos mais trepidantes e avassaladores personagens do universo felliniano, sem dúvida, é o diretor atormentado de 8 ½, Guido Contini. Ele não tem o glamour do jornalista de La Dolce Vita. Mas, é interessante notar como ele resume a angústia da criação, o confronto do processo com a indústria do cinema, e, sobretudo, o sentimento de perda nas relações interpessoais.
Fellini queria sir Laurence Olivier para o papel. Não deu certo. Sobrou para Marcelo Mastroianni. Recentemente Rob Marshall bateu o pé que queria Daniel Day-Lewis para o remake, de 2010, chamado Nine. O ator irlandês, aliás, excelente, relutou muito em aceitar.
As duas produções, separadas por 57 anos, buscam na essência “abrir a cabeça” da mesma pessoa. E aí é interessante fazer uma comparação que resulta evidentemente na constatação que o mundo mudou muito neste tempo. Diria que mudou até demais.
Michael Tolkin e Anthony Minghella reescreveram o original na forma de um musical. E, definitivamente, mesmo 57 anos e um avanço vertiginoso na técnica cinematográfica depois, Marshall leva uma surra descomunal de Fellini na condução da câmara.
Anouk Aimee: A Luisa original de 1963, menos ingênua 
Na versão original, Carla (interpretada por Sandra Millo) é apenas uma bobinha deslumbrada, a amante casada de Guido. Na versão de Marshall, Penélope Cruz é uma bombshell (incrível como ela ficou à vontade neste papel), mas com um poder impressionante de se contrapor não como alternativa, mas como a obsessão sexual que o perseguia.
Guido e Luisa: versão 2010
A Luisa de Marshall, Marion Cottilard, por outro lado, fica muito distante, quase uma galáxia inteira, da de Fellini, Anouk Aimeé. O Guido de Day-Lewis tenta desesperadamente convencer que ela é o esteio, a estrutura do seu talento. Repete isso tanto, sem a contraparte, que cansa.
Finalmente chegamos a Cláudia. Este personagem é interpretada por duas atrizes ícones, cada uma de sua geração: Cláudia Cardinale e Nicole Kidman. Na cabeça de Guido, Cláudia é a única certeza que ele tem. O Guido de Mastroianni se coloca de joelhos diante dela. E aqui também a fascinação fica limitada ao fato de que ele a considera a única capaz de interpretar uma personagem que ele ainda não havia concebido. O de Day-Lewis é claramente atraído pelos excepcionais dotes físicos da australiana e leva um fora um tanto quanto diferente: ela descarta o papel de resolver o binômio Carla-Luisa. Isso não está colocado no primeiro filme.
Mas, o melhor do confronto entre as duas produções está mesmo no resultado que emerge do Guido/Mastroianni e do Guido/Day-Lewis. O primeiro se resolve no set, iniciando a filmagem. E se resolve diante do mundo. Quando ele ordena, “gira!”, sabe que está de alguma forma interferindo na realidade do mundo. O outro ordena, “action!”, e nos deixa em uma situação bastante surreal: o que vai sair daqueles rolos? Invariavelmente um libelo sensual e egocêntrico.
E antes que me acusem de old fashioned, ou de saudosista, ou pior, de anacrônico, quero dizer que não tenho nada contra. Na essência gosto dos dois personagens.
Fellini tirou um subproduto interessante de seu 8 ½: Città delle Donne. E deu vida novamente a Guido Contini, com o mesmo Mastroianni, em uma situação bem diferente: envelhecido.
Curioso que neste pequeno universo – extraído de um sonho do seu Guido – Fellini esbanja uma sensualidade latente, mas politicamente correta e claramente mórbida. Não se vê mais a crise de criação, mas um confronto de valores. Como o Guido original é o alterego de Fellini, dá para dizer mesmo que ele não gostou da evolução que viu.
Mas, Fellini escreve certo por linhas tortas. Pena não poder ouvi-lo sobre este dilema sexual criativo do novo Guido.
Assistir aos dois filmes foi um exercício bem interessante, que eu recomendo. Juro que é melhor do que se entreter com a gagueira alheia.

domingo, 27 de março de 2011

O que os olhos não vêem o coração.......

Fim de caso: marido e ex-amante se juntam para investigar a vida de Sara



Quem não sofreu com as surpresas, com as revelações, com as descobertas, com aquilo que deve ficar escondido, que atire a primeira pedra.
Um dos romances que eu mais gosto de ler e reler e costumo propagandear para meus amigos é o célebre Fim de Caso, do genial escritor britânico Graham Greene, de cuja obra de resto sou notório apreciador.
Greene era um socialista católico e não esconde isso em nenhum momento de suas obras. Seus personagens são triturados pela culpa e a relação ética ou moral obedece sempre uma estrutura geométrica, muito característica dos cristãos de uma maneira geral. Isso não é uma crítica, por favor, é apenas uma constatação.
Em Fim de Caso, disponível também em versão cinematográfica, dirigida por Neil Jordan, o insólito sempre presente nas relações humanas ganha contornos reveladores. Estamos diante de um curioso triângulo amoroso, onde o amante descartado se junta ao marido com o objetivo de descobrir o que havia mudado na vida da mulher. A revelação é surpreendente, torna o relacionamento dos três transparente. Mas, ao final da história fica um gosto amargo, do tipo era melhor ter deixado tudo como estava.
Medium na cozinha: certas coisas é melhor deixar onde elas estão
Neste final de semana, assisti a uma cópia do filme Além da Vida, produzido e dirigido por Clint Eastwood e que, misteriosamente, passou como um raio pelo circuito comercial. Trata-se de um trabalho sensível, de uma dramaticidade comovente. Na verdade um inter-relacionamento de três histórias que acabam convergindo. Uma repórter francesa que sobrevive a um tsunami no Pacífico e ultrapassa os limites da vida e volta. Um menino inglês que não se conforma com a morte do irmão gêmeo e um médium americano que luta desesperadamente contra a Percepção Extra-Sensorial (PES) que lhe é latente.
Uma cena singela, entretanto, sintetiza todo o filme e salta como fogo para dentro dos corações da audiência. É quando, revelados os seus poderes, o médium tenta desesperadamente se livrar do assédio de uma colega de um curso de culinária italiana, que insiste em se comunicar com o além. A solidão é uma marca clara nos dois personagens. Ambos estão no apartamento dele, diante de um maço de aipos e de uma animada conversa que promete, ao final,  da refeição uma solução para a angústia de ambos.
Mas, ela tanto insiste, tanto insiste que ele concorda em estabelecer este contato:
- Tem um homem mais velho, parece ser o seu pai, e ele está pedindo desculpas pelo que fez quando você era criança.
A menina se desmonta em lágrimas. O jantar dança. O clima de romantismo e amizade se desfaz. Os dois terminam a cena em profunda angústia e solidão. O médium, interpretado com maestria impressionante por Matt Damon apenas sentencia:
- Há coisas que é melhor a gente deixar onde está sem revolver.
Cruise e Kidman, em De Olhos Bem Fechados: personagens que sobreviveram
Depois de ver o filme, madrugada alta, me assaltou a lembrança de outro filme. O último de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados. Quem viu o filme, sabe que se trata de uma viagem arrepiante. Lá também a fagulha que irrompe em um incêndio é disparada pela personagem interpretada por Nicole Kidman, depois que ela e o marido, Tom Cruise, voltam de uma festa, onde se divertiram provocando apetites alheios, e se entregam a um cigarro de maconha.
Kidman e Cruise se divertem rememorando os desejos que provocaram, até que ela diz para o marido que, no passado, houve um marinheiro que ela apenas havia visto, não sabia o seu nome, nem quem era. Vira de relance. Mas, que se ele fizesse um único singelo sinal, ela largaria a vida confortável, o marido, o filho, tudo, e se entregaria para o cara.
Esta revelação deflagra a viagem de Cruise. Destrói completamente a sua segurança. Provoca uma gigantesca confusão mental nos personagens. Kubrick alivia no final, quando os dois conversam sobre o assunto:
- E o que nós vamos fazer agora? – diz ele.
- Vamos acabar com isso e vamos transar. Nós sobrevivemos, responde ela.
No filme de Eastwood, os três personagens também aparentemente sobrevivem. Na vida real, entretanto, nem sempre é assim. Os limites da individualidade existem para serem respeitados. Cada um de nós vive a sua experiência, atribui valores maiores ou menores de acordo com a sua própria realidade. Mexer nisso, ou querer estabelecer padrões diferentes de avaliação costuma gerar muita confusão.
Neste caso, o refrão popular é sábio: “O que os olhos não veem o coração não sente!”

quarta-feira, 23 de março de 2011

Adeus Liz!

Liz querida, não precisava exagerar. Deixar este mundo no dia do meu aniversário foi demais. Agora, além de ser a data de aniversário do Moacyr Scliar, também será uma data lembrada pela sua grande e infinita viagem.
Tenho certeza que seus olhos violetas vão combinar perfeitamente com o azul do paraíso. Vai dar até um tom sobre tom.
Pouca gente sabe, mas eu sou um daqueles que se apaixonou por você, quando o resto da humanidade preferia um cão rough collie.
Na minha infância, você parecia um anjo andando naquelas pradarias britânicas. E me apontava aquelas montanhas nubladas.
Ai já na minha juventude, a mulher apaixonante. A Gata do Tenessee Williams. Só mesmo Paul Newman para fazer um tipo blasé com uma mulher como você. E a indignação legítima que Burl Ives praticamente joga na nossa cara. Concordo com ele. Você é irresistível até mesmo para um cara com desvios de comportamento. Qualquer tendência ao homossexualismo não resistiria aquele sorriso.
Pior foi o Marlon Brando em um Bonde. E que confusão. Não foi só o Richard Burton que acreditou que vocês tiveram um caso. O mundo todo acreditou.
Confesso que não babei tanto quando te vi na pele da rainha Cleópatra. Você vai me perdoar, mas neste personagem, a francesinha do Cecil B. de Mille está melhor (Claudette Colbert). Nunca teve a sua presença, nem a sua postura. Não tinha os seios que você tinha, nem a cintura fina. Mas, o olhar dela era muito mais transgressor – safado mesmo – que o seu.
É bem verdade que não há um perfume com o nome da Colbert.
Vai Liz. Vai para o palco do Paraíso.

sábado, 19 de março de 2011

Yankees go home!

  
Obama: É do bem, mas já está na hora de dizer ao que veio
Barack Obama está entre nós brasileiros. Desembarcou em Brasília, depois vai ao Rio onde se imaginava até uma manifestação, uma aparição com direito a palanque e tudo, na Cinelândia. As relações Brasil-Estados Unidos estão frias há uma década e os americanos estão preocupados com o pré-sal, com a balança comercial (deixaram de nos vender bugigangas desde a guerra fria) e com esta súbita mania de independência brasileira.
Obama é do bem. Pelo menos aparentemente. A política externa americana não. Nunca foi. Herdou os conceitos coloniais dos séculos XVIII e XIX e, simplesmente fez da América Latina um grande quintal onde barbarizou, desde o desmembramento da Colômbia, com a construção do Canal do Panamá, até a sórdida campanha contra Hugo Chávez, na Venezuela.
Construção do Canal do Panama: divisão da Colômbia
É bem verdade que Obama não é Reagan, nem Bush, nem Truman, nem Eisenhower ou Roover. E o Brasil, de resto a América Latina, também não é mais uma república de bananas, a se colocar de “rodillas” diante do grande irmão do Norte. Não precisamos mais do FMI, nem do consenso de Washington, nem que nos indiquem o melhor caminho em nossa linha diplomática. Ainda bem.
Mas, um pequeno episódio, quase despercebido, foi suficiente para me tirar o sono nos últimos dias. Uma colega querida, pupila brilhante, voltou de um giro com estudantes de diversas partes do mundo pelo Pacífico e me contou que instada a definir a identidade cultural mais presente na sua formação e de resto na formação de seu país, não teve dúvidas em apontar Estados Unidos e Reino Unido.
Confesso que foi uma punhalada nas costas. Até porque ela é nissei, jovem, da geração pós-guerra-fria. Leu mais que um livro na vida. Viu mais do que as séries da Sony e do Sci-Fi.
Mas, o pior de tudo, que salta vigorosamente nos nossos olhos, é que ela tem razão. Apesar de toda uma geração, desde a baby-boomer, o yankee-go-home, mesmo com os nossos esforços para mostrar que o mundo é muito mais rico e colorido do que o american-way-of-life, nossa juventude cresce voltada para a Meca estadunidense.
Talvez a culpa seja do rock-and-roll, do hambúrguer, da Coca Cola, de Hollywood, da televisão, da Disney ou das ensolaradas praias da Califórnia.
Não se enganem. É tudo isso e muito mais. É uma lavagem cerebral constante, ruidosa, capaz de empolgar jovens a gastar seus dólares nos cassinos de Las Vegas, nas mega stores da Park Avenue, em Nova York, ou em Downtown, em Miami. É uma competição perdida. Entre os derrotados ficam os coloridos mágicos de uma África fascinante, as marcas extraordinárias da construção revolucionária de uma América Latina flamante, os acervos do conhecimento acumulados nas ruas da Europa, a sabedoria milenar dos povos da Arábia, da China e do Japão.
Estamos encrencados.
Não que os Estados Unidos produzam apenas este lixo medíocre que tanto empolga a nossa juventude e de resto a juventude do mundo inteiro. A literatura americana é riquíssima. Os museus americanos são extraordinários. E nada menos do que sete em dez das melhores universidades do mundo são americanas.
Miami: porto seguro para foragidos da América Latina
Algumas cidades americanas são mesmo fantásticas pela organização urbana e pela atividade cultural. Me refiro é claro a Boston, Chicago, São Francisco e Filadélfia, entre outras. Isso para não dizer que Nova York é ainda, como desde o início do século XX, a principal capital cultural do mundo.
Vamos combinar, a indústria do cinema americano é simplesmente perfeita. Além do que, certamente um dos maiores acervos históricos e civilizatórios que a humanidade conquistou. E nem se diga da indústria fonográfica, do jazz, de Elvis, das bandas, do Jack Daniels, do Marlboro, da indústria espacial, da Sears, do frango frito.
De Malcolm X, de Martin Luther King, de Larry Flint, de Mohammed Ali e Joe Louis, de Paul Robenson e dos irmãos Gershwin.
A lista parece infindável. Mas, não é desta influência que estamos falando. É na essência de um lixo consumista imprestável, que serve como bálsamo de uma dominação cruel, que vende até hoje Miami como porto seguro para fortunas extirpadas das entranhas da América Latina. E nós todos, cucarachos miseráveis, a prestar vassalagem a Mickey Mouse, Hanna Montana e outros modelos imprestáveis.
Truman e Dutra: How do you do, Dutra?
Para não ficar sem uma piada. Dizem que quando Harry Truman esteve no Brasil, foi recebido pelo presidente Eurico Gaspar Dutra.
- How do you do, Dutra? Teria saudado o americano.
- How tru you tru, Truman? Teria respondido o brasileiro.  
Seja bem-vindo Obama. Você é negro, de origem queniana, muçulmana e democrata. É bem verdade que ainda não disse ao que veio. Se seguir a trilha de seus antecessores, críticos da dominação americana no mundo, como Jimmy Carter e John Kennedy, pode até fracassar, como com certeza acontecerá, mas terá tentado. E a história vai registrar.  

segunda-feira, 14 de março de 2011

Meu mestre e o túnel do tempo

Vieirinha: mestre querido e saudoso
Um dos meus mestres mais queridos, dos poucos que sobraram da minha experiência acadêmica, é o notável romancista, brilhante escritor e professor querido, José Geraldo Vieira.
Incrível ele era professor de cinema e foi ele que me apresentou ninguém menos do que Sergei Eisenstein.
Aliás, o Vieirinha era surdo como uma porta. Perdeu a audição no exercício de sua profissão: ele era médico radiologista. Nós tínhamos o hábito de escrever no quadro negro o tema que queríamos que ele abordasse naquelas aulas, que embora fossem programadas sempre para as noites de sexta-feira, das 19 e 30 até as 23 e 30, tinham audiência plena e dezenas de bicões.
Certa vez, tive a audácia de propor a ele um tema: a “belle epoque”!
Ele sorriu e começou a falar dos amigos que ele conhecera no período que viveu na Rive Gauche, em Paris, entre 1920 e 1935.
Vierinha conheceu Renoir, Claude e Jean. Conheceu Monet, Rodin, Picasso, Stravinsky, Nijinsky. Falava de Pigalle como uma colina sagrada. Nos considerava a todos um bando de estudantes pequeno-burgueses incapazes de entender o que éramos e para onde pretendíamos ir. Hoje, concordo com ele.
Um de seus temas preferidos era falar sobre Andrés Malraux, com quem ele convivera em um sótão de Paris, de Camille Claudel, que ele conheceu já internada, e do casal Frida Kahlo e Diego Rivera.
Li todos os livros do Vieirinha, dois me impressionaram demais: Ladeira da Memória e A Túnica e os Dados. Os dois talvez sejam encontrados ainda em algum sebo, quem sabe.
Ainda me lembro daquela aula que tive a petulância de propor. Ele explicou com uma proverbial facilidade que a “belle epoque” era um modo de vida. E que para destruí-lo foi preciso uma guerra, a primeira. Vieira dizia que uma das razões da agressão alemã a França, em 1914, foi a inveja de que Berlim, por mais atraente que fosse, jamais teria o charme e a beleza de Paris.
Não riam. Historiadores sérios concordam com ele.
Inspiração de Lautrec: Moulin Rouge
Na comparação com a virada do século XX para o século XXI, pode-se dizer que há um verdadeiro massacre. Toda a cultura ocidental que gravitava sobre a Paris daqueles anos nos deu o impressionismo, Debussy, Satie e Ravel; Zola e o naturalismo; se reescreveu o socialismo e o realismo. E nesse meio tempo, bebia-se absintho, cognac e champagne. O restaurante mais badalado do mundo era o Pré-Catalan, o Maxim’s e suas grisettes eram cultuados e o Moulin Rouge era o templo do Can Can, onde La Goulue inspirava Lautrec.
As vezes tinha a impressão que o Vieirinha podia me transportar pelo tempo. Adquiri o desejo de ter vivido na “belle epoque”. Quando voltei a Paris passei a ver o fantasma da cidade que ele descrevia, o frisson das novas idéias que surgiam pelas ruas como ventos frios a enregelar idéias conservadoras.
Infelizmente era apenas uma das não raras alucinações que freqüentam a minha cabeça e certamente freqüentavam a mente privilegiada do velho mestre.    

sábado, 12 de março de 2011

Meus mestres e os desvios do destino

Tão Gomes Pinto

Uma das poucas vantagens de se chegar à barreira dos sessenta é poder refletir sobre a existência sem a ansiedade da juventude ou a perspectiva do futuro. Daí para a constatação de que construímos um personagem grotesco e até quixotesco é um pulo. Ainda mais quando o confronto para a modernidade apresenta um resultado desastroso. Definitivamente não consigo me entusiasmar com os valores do século XXI. Não me entusiasmam suas manifestações culturais, suas perspectivas políticas, seu pensamento contemporâneo. E o pior é que aos 20, até os 30, eu era um crítico contumaz daqueles que falavam em valores do passado. Vá lá, eu era um otimista. Hoje perto de atingir os 40 anos como profissional de jornalismo, não posso me permitir estes arroubos.
Poucos sabem que minha formação original é em Física e que eu nunca tive vocação ou aptidão para as letras e a comunicação. Devo a minha carreira a um negro de nome Olavo, faxineiro da redação de O Estado de S.Paulo, que me encontrou no desvio da praça D.José Gaspar, a divagar sobre o futuro e me levou um pouco incrédulo para o prédio da rua Major Quedinho, onde minha habilidade como datilógrafo e teletipista surpreendeu a um obscuro funcionário de nome Alaor Martins.
Foi então que o destino me reservou uma surpresa. Colocou-me sempre em contato com pessoas de bem, generosas, que me permitiram não só desenvolver minha carreira profissional, como compartilharam e deram luz aos meus arroubos e meus ideais.
Duas pessoas foram fundamentais Raul Martins Bastos e Edimilson Cardial. Raul soube o momento certo para me levar a reportagem. E Edimilson, na época redator da seção de turfe do jornal, nunca me negou uma palavra de confiança e partilhou comigo as minguadas oportunidades que surgiam.
Vou dar um salto e me reportar a uma manhã de janeiro de 1976, quando instado por um amigo saudoso, Attila Wenserski, desembarquei na velha rodoviária de São Paulo, com uma reportagem que descrevia o poder político do clã do major Ney Braga no Paraná. Minha ousada ambição era vender a reportagem para a então nova revista IstoÉ.
Confesso que meu ceticismo era grande e que achava mais apropriado levar a reportagem ao jornal Movimento, um hebdomadário engajado, muito próximo do que eu pensava, do que para uma revista mensal, burguesa, escrita por ex-jornalistas de Veja, lideradas pelo jornalista Mino Carta.
Que diabos um filho de cortiço, foragido da ditadura poderia querer naquela redação?
Mino Carta
Eram 10 horas quando eu cheguei ao prédio da avenida Paulista e me informaram que o pessoal da revista só chegaria as 11 horas. Fiquei sentado na escada. O andar estava fechado.
O primeiro a chegar foi Fernando Sandoval, um sujeito musculoso e grosseiro, que se limitou a me dizer que eu deveria esperar o Mino e sequer me ofereceu uma cadeira. Continuei na escada. O segundo a chegar foi o esbaforido gordo Sílvio Lancellotti, que pouca atenção me deu. Mas, que olhou nos meus olhos quase com um apelo:
- Por favor, não vá embora, espere o Mino chegar.
Eram mais de duas horas quando o poderoso Mino Carta chegou. Impressionou-me como ele pisava firme. Seguro. O Lança informou a ele que eu estava desde as primeiras horas da manhã na escada interessado em vender uma reportagem.  
- Peça para ele esperar o Tão – disse sem sequer dirigir-me o olhar.
Finalmente o Tão chegou. Tão Gomes Pinto, a mais translúcida pérola do jornalismo brasileiro. Repórter e editor sem par. Gênio absoluto de uma geração.
Uma hora mais tarde, com uma paciência invejável, o Tão lia a minha reportagem como se estivesse lendo um original de George Orwell. Fazia observações no texto com um lápis vermelho. Às vezes ria com vontade. Não raro triscava os dentes.
Lá pela metade, sorriu amigável com a minha ansiedade, e me ofereceu um cigarro.
Finalmente acabou de ler. Durou uma eternidade. Olhou-me nos olhos e sentenciou:
- Esta muito boa. Eu quero comprar a reportagem e o autor. Você não quer trabalhar conosco?
Silvio Lancellotti
Daquele momento em diante, a minha vida profissional e pessoal ficou atrelada ao Tão, ao Lança e ao Mino. Os três me ensinaram muito. Tiveram uma paciência descomunal com a minha teimosia, com os meus arroubos e com a minha ignorância.
Com eles aprendi que a arte de ensinar a fazer é nobre. E hoje um dos meus maiores orgulhos é de ter ensinado também, ainda que um pouquinho, e ajudado na formação das carreiras de seus filhos, Guilherme, do Tão, e Manuela, do Mino.
Quanto ao Lança, meu patrício siciliano e amigo querido, tive o privilégio de prefaciar um par de suas geniais obras literárias, de ser seu discípulo também nas panelas, parceiro na vida e na história.
Olavo, que já está no céu, Raul, Edimilson, Mino, Tão e Lancellotti obrigado por tudo. Vocês cunharam meu destino e fizeram de mim um veterano capaz de olhar para o passado com orgulho. Para o presente com segurança e para o futuro, ainda, com alguma esperança.   

quinta-feira, 10 de março de 2011

Ho visto Guevara morto!

Esta é uma manchete histórica do vetusto jornal milanês Corriere della Sera e foi assinada pelo jornalista Alessandro Porro, então correspondente na América do Sul. Detalhe: foi escrita da sede da Editora Abril, na avenida Marginal do rio Tietê, em São Paulo-Capital.
Sandro escrevia como poucos. Descreveu com detalhes impressionantes a armadilha do exército boliviano, orientada por agentes da CIA, a morte e os fatos que se seguiram à execução do mais importante e mitológico guerrilheiro latino-americano.
A célebre foto de Guevara morto: Sandro escreveu da Marginal
Aliás, se alguém não viu, não pode deixar de ver as duas versões da história do Che, na verdade Ernesto Guevara La Serna, magnificamente interpretado por Benício del Toro. São dois filmes: o primeiro conta a participação dele na revolução cubana e o segundo, a fatídica campanha boliviana, que culminou com a sua morte.
Mas, de volta ao Sandro, recentemente temos experimentado alguma insegurança, na cobertura sobretudo dos eventos do Norte da África e do mundo árabe. O Estadão outro dia publicou matéria claramente apurada em um hotel de Trípoli, garantindo que a Força Aérea de Muammar Gaddafi não bombardearia as posições de seus adversários. No mesmo dia, a Folha mostrava o bombardeio e as bombas espocando junto aos pés do seu repórter.
Agora, o correspondente do Estadão em Paris está desaparecido, provavelmente prisioneiro dos soldados de Gaddafi. Ele tentou entrar no país por terra pela fronteira com a Tunísia. Deus protege as crianças, os bêbados e os repórteres. Com certeza ele está bem e daqui a pouco vai contar a história toda.
Pior é o atrapalhado da TV Brasil/EBC que promete escrever um livro sobre uma reportagem que ele não conseguiu fazer no Egito. Mas, não vou falar mais nisso.


O correspondente de  "O Estado de S.Paulo", Andrei Netto, está preso a oeste da capital líbia Trípoli, segundo o jornal.
Em nota publicada hoje, o jornal diz que a embaixada brasileira na Líbia está tomando providências para libertar o jornalista.
O jornal havia informado ontem (9) que um de seus jornalistas enviados para a cobertura dos confrontos na Líbia estava sem contato direto com a redação há uma semana.
Segundo informações recebidas pelo jornal, o repórter Andrei Netto teria sido preso  pelo governo líbio, junto com outro jornalista e um guia líbio, na região da cidade de Zawiya, palco de violentos confrontos entre opositores e forças de Muammar Gaddafi.


   
Uma coisa é certa, Andrei você é um baleeiro. Aconteça o que acontecer, você dignifica a profissão de repórter.
A maioria das pessoas desconhece o que acontece em uma redação, notadamente em um conflito armado. É quando os especialistas, os jornalistas cuja vivência maior é a redação, se sobrepõe aqueles que estão na linha de frente.
Um dos casos mais impressionantes aconteceu no mesmo episódio do assassinato de Guevara. Um repórter argentino que estava na Bolívia recebeu a informação passou a redação em Buenos Aires, mas o editor não acreditou e jogou a reportagem no lixo.
Desacorçoado o repórter mandou a mesma reportagem para a Gazeta de Antofagasta, que acabou sendo o primeiro jornal do planeta a publicar a morte do célebre guerrilheiro argentino.
Afundamento do Belgrano: mil marinheiros mortos
Pessoalmente, vivi uma experiência muito parecida, com um desfecho diferente. Depois de minhas andanças na Base da Marinha Argentina, em Baia Blanca, tive a informação do próprio comandante da arma, o almirante Juan Lombardo, de que os argentinos, durante a campanha das Malvinas, tinham finalmente conseguido o engate dos mísseis Exocet nos ultra-recentes aviões Super-Etandart.
Por que diabos o almirante Lombardo me deu esta informação? Não sei. Acho que ele queria impressionar os militares brasileiros. Ou foi com a minha cara. Sei lá.
Foi preciso uma boa meia garrafa de Jack Daniels para que eu conseguisse colocar todas as informações no papel, depois perfurar a fita, enviar por telex. Na redação, o editor da revista Istoé, Tão Gomes Pinto, queria uma capa. O editor de internacional, João Vitor Strauss, apoiado pelo correspondente em Londres, Fernando Pacheco Jordão, havia decidido que a minha informação não era crível.
Jornalista escolado, apaixonado pelos repórteres e pelas reportagens, o Tão decidiu peitar o staff da redação. Istoé saiu naquele sábado com uma revelação bombástica: os argentinos não só tinham os temíveis mísseis franceses, como estavam prestes a torná-los operacionais.
O Super Etandart da Marinha Argentina: engate do Exocet
A Sheffield em chamas: obra do impossível
A revelação levou os jornalistas do mundo inteiro a pressionar o Estado Maior Conjunto Argentino a confirmar a informação. Ninguém abriu o bico, o que me fez sorver a outra metade da garrafa de Jack Daniels. Ainda mais que no domingo, um submarino da Armada Real Britânica pôs a pique o encouraçado General Belgrano e levou a morte mais de mil marinheiros argentinos.
Na terça-feira, em represália, um Super Etandart decolou do velho porta aviões 25 de Mayo e detonou uma moderníssima fragata britânica de nome Sheffield. Um Exocet fez o serviço.
Deus me perdoe! Mas, foi a glória total.
Naquela tarde em Buenos Aires, cercado pelos colegas da imprensa internacional, na confeitaria El Reloj, brindei com todas as forças do meu pulmão:
- Ai putada. Hoje é meu dia. Ho visto Guevara morto!

sexta-feira, 4 de março de 2011

Os terráqueos me aborrecem

Quentin Tarantino: não entendo nada 
O pai do meu compadre, Laerte Rimoli, cunhou uma frase memorável no final da vida. Como ele andava acabrunhado, sem muito ânimo para nada, perguntaram para ele as razões. O velho coçou o queixo e saiu-se com essa:
- Os terráqueos me aborrecem.
Trata-se, sem dúvida, de uma afirmação transcendental. Filosófica e premonitória. Afinal, há que se concordar que nada mais atordoa um reles mortal terráqueo, do que outro reles mortal terráqueo.
Mas, há uma vertente ainda mais poderosa: quando um grupo destas criaturas decide se reunir em torno de uma idéia, torná-la absoluta, e exigir que todos passem a se comportar de acordo.
É um porre!
E pobre de quem se aventura contrariar o senso comum.
Por exemplo, conheço a obra de Monteiro Lobato, por inteiro, e aprecio muito. Considero um dos melhores trabalhos da literatura brasileira no século XX. Agora, se ele é racista, eugenista, ou o diabo, lamento dizer que nunca percebi, nem fui influenciado por isso.
Não gosto e não entendo Woody Allen e Quentin Tarantino. Respeito muito quem gosta, mas eu decididamente não compreendo. Falha minha, com certeza.
Hebe Camargo, Luciana Gimenez, Ana Maria Braga são criaturas, para mim, insuportáveis.
Novelas da TV Globo me agridem pela nulidade.
Woody Allen: neuroses judaicas e urbanas
O técnico Tite do Corinthians e suas citações de auto-ajuda, aparentemente elaboradas, beiram ao non-sense.
Pode existir algo mais chato do que uma partida de tênis, ou de vôlei, ou uma corrida da Formula Nascar?
Claro que pode. Desfile de escola de samba.
O desfile em si até que é tolerável. Mas quando os especialistas começam a mostrar as nuances de uma escola, o tal envolvimento da comunidade, torna-se rigorosamente insuportável. E falam com uma autoridade impressionante.
Outra coisa completamente insuportável: tomar uma cerveja com um ex-comunista convertido ao neoliberalismo.
Conheço uma pessoa que migrou do trotskismo ativo para o candomblé. Juro que na época limitei-me a dizer: “Por favor, não me explique. Eu não suportaria.”
Isso vale para uma centena de situações.
Ah! E tem os caipiras redundantes que soltam preciosidades do tipo:
- O melhor restaurante do mundo está na minha cidade, Pato Branco.
Ou esta pérola:
- O mais belo pôr-do-sol do planeta é no rio Guaíba.
Certa vez dediquei uma tarde de sábado a visitar uma colega, que passou o tempo todo tentando me seduzir para sua obsessão: o canto gregoriano.
Às vezes eu acho que atrás de todo terráqueo se esconde um grande pentelho. Eu, por exemplo, sou fumante contumaz, apreciador de westerns, de bons espíritos, de filmes japoneses e argentinos, de boa comida, de histórias da primeira e da segunda guerra. Revejo um bom filme uma centena de vezes e me emociono a cada vez. Gosto de óperas, de música sinfônica, de música de câmara, de um bom romance. Minha filha mais nova me considera um chato. E ela tem razão.
Certa vez, eu era então editor da revista Gourmet e preparava uma edição sobre gastronomia húngara. Fui jantar com um notório conhecedor em sua mansão em Interlagos. Depois de experimentar os acepipes e já reconfortado por goles e mais goles de Borosck Polinkol (um eau de vie de abricots), abre-se uma cortina da sala e surge a mulher do meu anfitrião, ladeada pelos dois filhos, que me surpreenderam com uma exibição de um sapateado ao som de Fred Astaire.
Outra situação inesquecível compartilhei com meu compadre Hélio Campos Mello na cidade de Orleans em Santa Catarina. Estávamos em um churrasco na casa de um alemão nazista, que era o gerente da mina de carvão da cidade, e fomos apresentados para um anão que, durante horas, para deleite de toda a audiência, contou histórias e mais histórias de escotismo.
Ritual de ocaso solar: o guru de Cabedelo com o sax na proa do bote
Há alguns anos, em João Pessoa, me arrastaram para um ritual de ocaso solar as margens do rio Cabedelo. Além da situação de imbecilidade contemplativa total, de repente me surge uma criatura de branco, de barba enorme, a bordo de um bote com um temível saxofone tenor, arranhando notas esquálidas do Bolero de Ravel.
Adoro Ravel, mas nunca poderia imaginar que um guru do meio das águas barrentas do rio Cabedelo poderia me aborrecer com as notas do Bolero. Mas, ele conseguiu. Como diz o grande Mino Carta, rompeu meu saco com ruído de lataria.
Bem! A não ser que alguém se disponha a migrar para um planeta aqui perto, não há como não conviver com os terráqueos. Há ainda ficcionistas como H.C.Wells que garantem que marcianos também são insuportáveis e venusianos são obcecados por limpeza. Ou seja, não há solução. A existência é mesmo um porre. Em sociedade, pior ainda.

    
   
  

quinta-feira, 3 de março de 2011

O carnaval, as polacas e a caminhonete cromada

Vista da aprazivel cidade do Balneário Camboriu: carnaval iensquecível
Na véspera dos festejos momescos que empolgam uma parte da nação, cumpre aqui ressaltar uma reflexão:  nem todos os brasileiros gostam de carnaval. E decididamente nem todas as pessoas que vivem neste paraíso tropical se empolgam com o som dos tamborins ou o repicar das frigideiras. E, ainda que corra nas minhas veias uma gloriosa mistura ítalo-lusitana, nunca fui um entusiasta deste fenômeno que torna a sociedade tão permissiva durante três dias e totalmente penitente e reflexiva na manhã de quarta-feira.
Aliás, o carnaval é rigorosamente o liberou geral. Lembro-me de uma história maravilhosa, nos tempos em que me escondia em Curitiba. Lá se vão 35 anos. Pois meus vizinhos se constituíam no que podemos chamar de uma família rigorosa. O casal, acho que de poloneses, e três filhas lindíssimas, todas loiras, de olhos claros. Sempre elegantes. Charmosas e atraentes. Mas, de uma antipatia inacreditável.
Tão antipáticas que viravam o rosto se surpreendidas com um singelo bom dia.
E a coisa parecia de família pois aos domingos recebiam primos e primas. E todos tinham o hábito grotesco de virar o rosto ou de silenciar a qualquer sinal de simpatia. Passávamos fome naquele tempo, nós três rapazes idealistas com um sonho de futuro e de mudar a sociedade. Nos finais de semana, tínhamos também fome de convivência. A solidão era tremenda.
Pois nem as sobras do regabofe dominical sobravam por cima do muro. Uma tarde destas, o Etinho que já não aguentava mais o perfume da carne assando e o crepitar das brasas, decidiu pendurar-se no muro para pedir um pouco de comida. Deselegante, sem dúvida. Mas, a fome era tanta, que nós torcíamos por um gesto, um que fosse, de solidariedade.
O Etinho falava pendurado no muro e todos viravam os rostos constrangidos. Alguns se riam, mas as meninas sequer esboçavam qualquer movimento em suas faces rosadas.
Bem! Humilhação tem limite. Depois daquele vexame, nunca mais sequer olhamos para o nosso lado esquerdo.
Vieram as festas de fim de ano e pouco antes do carnaval, recebemos a visita do primo do Sílvio. Um projeto de agroboy que enriquecera junto com a família no nobre negócio de engordar porcos. Protótipo do caipira paranaense, novo rico, queria se exibir no novo apartamento em Balneário Camboriu.
E lá fomos nós a bordo de uma caminhonete F-100, com roda de magnésio e cromo para todo lado.  Na noite de domingo quando o tédio carnavalesco atingia um ponto quase insuportável, apareceu um louco com um trombone que começou a tocar velhas marchas na praia.
Nós, os três ogros foragidos, abrigados com humildade no meio de um grupo de classe média que se divertia com Máscara Negra e outros hits. Todo mundo foi se enturmando e nós sobrando na areia fria da praia escura.
Fomos resgatados por três anjos de cabelos dourados. Não sei se o Silvio e o Etinho se deram conta. Mas, eu só percebi na manhã de segunda-feira, quando descemos em busca de um pão com manteiga e uma média de café com leite. Eram elas. As irmãs polacas.
Foi um grande carnaval aquele, ainda que a gente pouco tenha sambado ou colocado a cara para fora do apartamento de nosso mecenas, que aliás só apareceu de volta na manhã de quarta-feira de Cinzas com a caminhonete cromada, a cara inchada de tudo o que se pode imaginar e uma certeza, ainda que o carnaval durasse o ano todo, ele dificilmente sairia do zero-a-zero.
Enquanto subíamos a serra com o motor da caminhonete gritando pelo esforço, ele lembrou-se de perguntar:  E ai? Divertiram-se. Leram muito?
- Lemos sim. Hagel!
Rimos muito, entre nós, até chegarmos  ao sobrado onde vivíamos e constatar que nada havia mudado. As polacas continuaram a nos ignorar solenemente. Quem sabe no próximo carnaval, que aliás nunca chegou. Até porque o agroboy desapareceu e nunca mais fomos para Balneário Camboriu.