sexta-feira, 27 de maio de 2011

Aldrovando Cantagalo

Ricardo Salles

(reproduzido da edição de hoje de O Globo)
 

Assim se chamava o filho de um escrevente de cartório, em Itaoca, SP, personagem de "O colocador de pronomes", de Monteiro Lobato. Aldrovando nascera de um erro de gramática. O escrevente, ao mandar um bilhete apaixonado para a filha de um certo coronel Triburtino, escreveu "amo-lhe". Como o coronel, que interceptara a missiva, tinha duas filhas, uma - aquela cuja mão desejava o pai de Aldrovando - linda e elegante e outra muito feia e já tida como o encalhe da família, sua reação foi dar-lhe a mão da feia. Argumentava o astuto coronel que "lhe" é pronome de terceira pessoa e, assim, a amada não era a destinatária, mas outra moça que morava na mesma casa. Intimidado, o escrevente acabou se casando com a personificação da feiura e, como fruto dessa união, Aldrovando veio ao mundo.

Aldrovando, na falta de um objeto amado que, ao menos, respirasse, desde garoto se apaixonou por um livro de gramática. Aos 40 anos, sempre recluso, já tinha lido todos os clássicos da língua portuguesa, sabia de cor obras inteiras, mas nada sabia do mundo. Muito zeloso da boa norma gramatical, praguejava contra "regionalismos de má ressonância" e a "garabulha bordalenga que estampam os periódicos"; com energia invulgar, não deixava passar um galicismo, para ele, "um perene barbarizar com alienígenos arrevesos". Abrindo campanha contra os "ácaros do idioma", peticionou ao Congresso exigindo leis visando à repressão das formas impuras. "Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade", bradava o cioso beletrista. Com descortino de gênio, profetizava um futuro pouco risonho para a língua de Vera Cruz.

Parece que ultimamente foi exumado e levaram seus restos a algum feiticeiro que, a pedidos, vem tentando ressuscitá-lo.

O barulho que se tem feito em torno de umas poucas linhas de um capítulo de um livro didático de português para adultos, a ser utilizado em comunidades carentes, onde, com frequência, se fala fora da norma oficial da língua portuguesa, é digno do paladino da boa fala.

Condena-se, com muita energia (e, às vezes, com boa dose de leviandade), a autora do capítulo 1 do livro "Por uma vida melhor", distribuído pelo MEC a escolas públicas de todo o país. Mas a coisa é muito esquisita: a moça é acusada pelo que não fez!

Com efeito, a autora tece considerações a respeito de formas agramaticais empregadas em certos meios e diz que, embora se possa falar assim - e ser entendido, faltou ela dizer -, tais formas estão em desacordo com a norma gramatical que prevalece. Lembra a autora que, em certos meios e em determinadas circunstâncias, isso pode levar o falante a ser discriminado e a sofrer consequências desagradáveis na vida prática. Deveria ela fazer de conta que não existe esse falar para que a realidade mudasse? Algo como evitar de falar do diabo para que ele não apareça?

Enfatize-se que o livro se destina a pessoas que vivem em comunidades onde é comum falar variantes da língua portuguesa em que são abundantes as formas agramaticais, especialmente no que se refere a concordância nominal e verbal, sem qualquer prejuízo do perfeito entendimento, convém assinalar. Nos exemplos dados pela autora (como, por exemplo, "os menino pega os peixe"), não se pode dizer que a expressão é ilógica, obscura ou dúbia. A mensagem transmitida, mesmo em desacordo com a gramática, é clara. A variante, portanto, é válida e não pode ser ignorada. Nem se acuse a autora de fazer apologia do erro, pois ela mesma diz que as formas citadas não estão de acordo com as normas da gramática e, nos exercícios (4, 5 e 8, em especial), pede que o aluno faça as correções devidas, de modo a que a norma oficial seja entendida e aprendida. Tudo isso feito sem preconceitos e com naturalidade, de maneira a não constranger o adulto que pode estar acostumado a falar (e, claro, ouvir) desse jeito.

Não consiga, porém, o bruxo trazer Aldrovando de volta a este Vale de Lágrimas; que ele possa repousar eternamente no sono dos justos.

Afinal, o apóstolo , fruto de um erro de gramática, morreu por conta da má colocação de um pronome. Depois de abrir um "Consultório Gramatical" e uma "Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos", iniciativas empresariais que não lograram o esperado e devido êxito, nosso herói se debruçou com ímpeto apaixonado sobre o que veio a ser sua obra-prima: um tratado, em três volumes e 1.500 páginas, sobre a colocação de pronomes. Dedicou-a, com essas palavras, a Frei Luís de Souza: "À memória daquele que me sabe as dores"; o tipógrafo, no entanto, alterou a frase para fazê-la a seu modo: "À memória d"aquele que sabe-me as dores." Aldrovando, deparando com o novo texto, ao escrever um oferecimento do livro a Rui Barbosa, sofreu um infarto fulminante.

Coitado...


sábado, 21 de maio de 2011

Estávamos sós. Ainda estamos!


Bob, Carol, Ted and Alice: desvio ou tendência de comportamento?





Um dos refrãos mais batidos é aquele que diz respeito ao país em que imaginamos viver e aquele em que de fato vivemos. Esta discussão toda sobre o chamado kit homofobia do Ministério da Educação, elaborado pela ONG Pathfinder é um exemplo de que o confronto com a realidade nem sempre sopra ventos progressistas e pacificadores.
A intenção das autoridades educacionais brasileiras é dar formação aos professores das escolas públicas do ensino médio e torna-los capacitados para lidar com problemas relativos à homofobia. Todos nós já fomos jovens e sabemos que não faltam maldade e preconceito nos corações juvenis.  Mas, a simples menção do tema já provocou uma reação desmedida e inquisitorial.
É curioso que se fala tanto em bullying, principalmente depois do massacre de Realengo, mas, a sociedade tão consternada com o que aconteceu, é incapaz de discutir com um mínimo de racionalidade a questão da homofobia e das diferenças de comportamento.
O caso da professora que encaminhou à diretoria da escola e notificou os pais do comportamento do filho que estaria acariciando os cabelos do colega da carteira da frente, é bem ilustrativo. No comunicado chegou a falar em “comportamento ousado”.
O menino defendeu-se dizendo que na verdade estava tirando um chiclete do cabelo do amigo. Mas, e se tivesse mesmo acariciando o companheiro? Onde está a ousadia? Se ele tivesse dado uma porrada na cabeça do coitado, bem aí seria macho e estaria dentro dos cânones esperados.
A sociedade brasileira não consegue se colocar diante de temas relativos a comportamento com um mínimo de lucidez. E não é só a questão da homofobia. Tente conversar com alguém sobre eutanásia!
Esta discussão me trouxe à lembrança um dos episódios mais sórdidos que eu vivi em minha modesta carreira jornalística. Em 1995 eu era editor de Comportamento da revista IstoÉ, e me orgulhava muito de fazer parte de uma equipe progressista, arejada, livre de conceitos e preconceitos. Uma noite de fechamento passei no bom e velho Gigetto antes de ir para casa. Era uma madrugada alta e nada melhor do que uma boa salada corintiana e um copo de vinho para revigorar o espírito.
Aliás, o Gigetto era um dos points mais badalados da intelectualidade paulistana. Era frequentados por jornalistas, artistas de teatro, teatrólogos, cineastas, prostitutas de todos os níveis, um ambiente maravilhoso, principalmente lá pelas duas da madrugada. Eis que, não me lembro de quem, puxou um destes assuntos capazes de varar a madrugada. Comentava um texto do sempre genial Otávio Frias Filho, segundo o qual o bissexualismo era uma tendência de comportamento.
A conversa seguia animada com a relação de bissexuais assumidos, outros enrustidos, até que alguém disse com todas as letras: “Onde está escrito que eu não posso me apaixonar por um homem ou por uma mulher, pelos dois simultaneamente, ou em momentos diferentes da minha vida?”


Barbara Stanwick: lábios rubros, pernas torneadas e bisexualismo assumido



Fui para casa com a cabeça a mil. Que polêmica interessante! Seria mesmo o sexo do futuro, totalmente libertado de preconceitos? Liguei a televisão enquanto me despia e ainda adormeci vendo a grande Barbara Stanwick em Adorável Vagabundo, de Frank Capra.
Barbara, uma das mais lindas e expressivas atrizes de Hollywood, era bissexual juramentada. E eu confesso que esta condição nunca me impediu de sonhar com seus lábios rubros, ou com suas pernas maravilhosamente bem torneadas. Polêmica, corajosa, ela fazia dupla com a angelical Olivia de Havilland. Ambas eram exemplos de musas gauches no glamour hollywoodiano.
Na manhã do dia seguinte, reuni toda a minha equipe, a melhor equipe de repórteres com quem eu trabalhei formada pelas geniais Eliane Lobato, Carla Gullo, Cilene Pereira, Heloísa Reinert e Alessandra Nahra. Troquei duas palavras com meu adjunto, Peter Moon, e discutimos avidamente uma pauta ampla, capaz de provocar uma reflexão sadia entre nossos leitores.
Sabia que estava mexendo em um vespeiro. Por isso mesmo fui até o diretor de redação, Tão Gomes Pinto, mestre e amigo, e expus minha ideia. Ele acendeu um cigarro, jogou as baforadas para o teto e me disse: “Pode ser uma puta matéria. Toca. Mas, não defenda na reunião de pauta”.
Não perdi meu tempo com a recomendação que ele me deu. Distribui as pautas entre as repórteres e liguei para meu irmão e amigo, Osmar Freitas Júnior, nosso correspondente em Nova York.
Dizer que o Osmar é competente, é pouco. Ele é apenas um dos profissionais mais competentes que eu conheci em 40 anos de profissão. Sua excitação ao telefone foi imensa. Imediatamente ele começou a desenvolver ideias e mais ideias, personagens e mais personagens. (Ah Osmar amigo! Que saudade das nossas conversas da nossa convivência.)
A reportagem começou a ganhar forma. Peter Moon era um adjunto perfeito. Executava a perfeição aquilo que eu imaginava, sem que eu sequer precisasse falar. Enfim, veio a reunião de capa, na terça-feira. Todos os editores em volta da mesa e o Tão anuncia que a capa seria da editoria de comportamento com 16 páginas.
A Thais, editora de arte, uma das colegas mais lindas com quem eu trabalhei, me agarrou pelo braço e me arrastou para sua mesa.
- Italiano, de que se trata?
- Bissexualismo.
- Grande, sensacional, vamos fazer uma capa de arromba!
- Thais, o Tão está mantendo em segredo. Não sei por quê? Mas, é melhor trabalharmos como ele quer.
- Te prepara querido, o mundo vai cair na tua cabeça.
Caiu. Quando o tema da capa tornou-se conhecido, houve um levante dos editores. Gente moderna, culta, progressista, todos torceram o nariz. Ficamos sozinhos, eu, o editor assistente do Tão, Hélio Campos Mello, e a editora de arte, a Thais. Todos os demais vociferaram barbaridades que fariam o Jair Bolsonaro enrubescer.
No dia seguinte, chegamos cedo, íamos começar a editar a reportagem. Peter me deu um abraço forte:
- Estou com você para o que der e vier.
Uma assustada Terezinha, a secretária da redação, com o rosto envergonhado, me chama para comunicar que o secretário de redação, uma figura obscura e triste, que eu não vou citar o nome, queria um tête-à-tête comigo, na sala dele.
- Você vai cair. Falei com o Domingão (o dono da revista) e se o Tão insistir na sua reportagem ele cai também. Ninguém vai querer ser processado ou ver a revista recolhida das bancas. Diga-me, afinal, você é viado?
- Olha, a minha opção sexual só diz respeito a mim mesmo. Não lhe devo satisfação sobre isso. Mas, eu te devolvo a pergunta: Você é jornalista?
Voltei para minha mesa apreensivo. Sabia que o Tão estava em reunião com o Domingão.  A doce Carla Gullo foi atrás de uma xícara de chá para mim. Sabia que eu estava sob pressão. Aliás, nós todos estávamos. Os olhos azuis da Alessandra me fitavam como um farol. A Eliane tinha vindo do Rio, mais experiente postou-se ao meu lado e puxou uma conversa sobre delícias gastronômicas cariocas.
Foram longos e intermináveis minutos. Até que o Tão irrompeu pela redação. Bem ao seu estilo, atacou pelas bordas:
- Thais, capricha, porque vamos mesmo de Bissexualismo. Italiano, vamos começar a fechar esta merda logo.
A redação que estava em um estranho silêncio, voltou ao ritmo normal. Peter me piscou com um sorriso. Eliane e Carla assumiram sua posição ao meu lado.
- Vai Italiano, agora é com você. Bota para quebrar!
Os textos fluíam aos borbotões. Ninguém se mexia. Nem saímos para almoçar. Heloísa providenciou os sanduiches e os refrigerantes. Peter parecia uma máquina. Sóbrio e eficiente. Já era noite quando terminamos e o Tão começou a ler. Acendi o milionésimo cigarro e tomei pela enésima vez aquele café frio e fraco da garrafa térmica. Não nos olhávamos. Todos parecíamos ocupados com outros assuntos.
Finalmente o Tão saiu do aquário, veio em nossa direção:
- Excelente! Belo trabalho. Thais, baixaaaaaa!
Foi, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes da minha vida profissional. Eu sabia que não ia provocar nenhuma revolução, que não havia nenhuma revelação bombástica, mas com certeza os milhares de leitores da revista iriam poder refletir sobre o assunto. O resto seria com eles.
Na semana seguinte, quando me apresentei para a aula semanal daqueles pobres coitados da FIAM que eram meus alunos, no último ano de jornalismo, constatei que a maioria estava com a revista entre seu material. A capa de IstoÉ era o assunto da semana.
Não houve passeata, nem audiência pública. Não fizeram uma estátua para ninguém. A revista não foi recolhida, nem processada. Vendeu como água. Na verdade esgotou na banca na segunda-feira (ela circula aos sábados).
Da minha parte, sobraram inimizades, a insistente pecha de louco, e a convicção de que por mais avançados e progressistas que as pessoas podem ser em todos os temas, quando o assunto é comportamento, e comportamento sexual, a maioria era tremendamente conservadora. Eu já sabia, mas reafirmei minha convicção de que o Tão era o mais brilhante editor de revista da imprensa brasileira. Que a minha equipe era leal e competente. Estávamos sozinhos. E ainda estamos 16 anos depois.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Por conta de um debate inócuo




É inacreditável o furor jornalístico contra o Ministério da Educação e a tentativa orquestrada de tentar fazer crer a opinião pública que tudo que se perpetra em seu interior é marcado por desmando, descontrole ou desconhecimento. Não bastasse as tentativas de se atribuir responsabilidade ao Governo Federal por desvios perpetrados com a merenda escolar por administrações municipais e eventuais irregularidades ou crimes de falsidade ideológica contra o Prouni agora se acusa o MEC de tentar revogar a norma culta da língua portuguesa.
O limite da sanidade é violentado por interpretações segundo as quais o Ministério da Educação ao se recusar a recolher um livro de Língua Portuguesa destinado a alunos de EJA estaria incitando a luta de classes, ou tratando as classes menos abastadas com paternalismo e demagogia. O mais grave é que a maioria dos jornalistas perpetrou suas críticas sem saber do que estava falando, sem ter lido o livro ou sequer ter se aprofundado no assunto. Instalaram uma polêmica sensacionalista baseados apenas no que ouviram dizer de outros jornalistas mal informados.  
As críticas atingem o ápice da virulência. Chegaram a propor uma faxina no ministério e a instalação de uma comissão de notáveis para analisar os conteúdos dos livros didáticos. Isso tudo por que a professora Heloísa Ramos em um capítulo de 30 linhas dentro de uma obra de quatro volumes com 107 páginas cada uma, “Viver, Aprender”, da Ação Educativa, qualificou a língua falada como inapropriada e alertou para os riscos de um preconceito lingüístico, para quem cometer a imprudência de não se expressar pela norma culta. O que a imprensa não revelou é que a professora, logo a seguir, propõe aos alunos que se exercitem escrevendo a forma culta para frases do cotidiano. Onde está a impropriedade?
Clique aqui para ver a íntegra do capítulo em discussão.
Deveria ter se instalado um debate muito mais abrangente. Afinal, quais são os principais fatores que provocam a fuga da norma culta do idioma, por que existem vários padrões de linguagem. Esta discussão foi, inclusive, objeto de uma exposição muito concorrida no Museu de Língua Portuguesa, em São Paulo, há dois anos, chamada “Menas”.
Clique aqui para ler o texto de apresentação nda exposição.
E para os mais puristas, como o senador Paulo Bauer (PMDB-SC) que chegou a dizer que José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, entre outros, estariam desconfortáveis em suas tumbas pelo debate estabelecido, convém esclarecê-lo que Mario e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato, e todos os modernistas, devem estar se divertindo. Afinal foi da ousadia deles que surgiu a verdadeira reforma ortográfica da Língua Portuguesa, em 1936, quando o pronome Vossa Mercê, transformou-se no singelo você, por força do hábito da linguagem falada.
Mas, as barbaridades que se perpetraram no afã de acuar as autoridades educacionais chegaram ao absurdo de Defensores Públicos e membros do Ministério Público, que em busca dos seus cinco minutos de fama, ameaçaram o MEC com ações em defesa do modo certo de se ensinar a língua ou em defesa de estudantes que se valerem da forma falada na redação do Enem.
O delírio não tem mesmo limites. Ou por outra, os limites das manifestações políticas transcendem o delírio e a barbaridade. E o alvo agora é o PNLD – Programa Nacional do Livro Didático, definido pelo decreto presidencial 7.084 de 27 de janeiro de 2010. Depois de dois anos em audiência pública e após intensos debates com a sociedade, chegou-se a uma fórmula capaz de tornar a escolha dos livros e dos conteúdos didáticos totalmente impessoal e apolítica, a partir da seleção por parte dos conselhos de conteúdo das editoras, a avaliação de uma comissão de pareceristas de uma universidade pública e da escolha livre por parte de professores e gestores das escolas para quem, afinal, o livro se destina.
Ainda que saudado unanimemente no parlamento como um avanço, o decreto agora é qualificado como liberal demais, por alguns senadores. Talvez porque alguns livros de história tenham abordado e analisado os governos do presidente Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva de forma pouco política. É bem verdade que o senador Cristóvão Buarque poderia ter se poupado: “História antiga se ensina. História atual se debate”. Mas, daí a se impor que o MEC recolha os livros que eventualmente uma comissão de notáveis julgue conveniente ou inconveniente, vai uma longa distância.
Na mesma linha, insiste o jornal O Globo, agora em editorial, na defesa da segregação de estudantes com deficiência auditiva e visual e contra a inserção destes alunos na rede oficial e regular da educação pública. Talvez o debate sobre este tema, como de resto o do confronto da linguagem oral com a norma escrita, merecesse um fórum mais adequado. Afinal, ninguém se considera dono de verdade nenhuma.
O problema é que no Brasil de hoje busca-se o sensacionalismo, a audiência, a qualquer preço. Por isso mesmo, temas tão interessantes são politizados e discutidos sem a menor profundidade. O país precisa aprimorar a Educação, precisa atingir os objetivos propostos de alcançar o mesmo nível de aprendizado dos países desenvolvidos. Precisa acabar com gargalos históricos como os do ensino médio. Resolver problemas aparentemente insolúveis como a formação adequada e a condução de professores para as salas de aulas. Aumentar e muito o número de vagas no ensino superior e no ensino técnico-profissionalizante, entre outras questões. Mas, isso ninguém quer discutir. Preferem mesmo pedir a cabeça do ministro por conta da utilização de um adjetivo em um livro de EJA.  

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Não estou só.

Artigo publicado no Folha.com na tarde de segunda, dia 17.




Uma defesa do "erro" de português

Hélio Schwartsman


O pessoal pegaram pesado. Da esquerda à direita, passando por vários amigos meus, a imprensa foi unânime em atacar o livro didático "Por uma Vida Melhor", de Heloísa Ramos. O suposto pecado da obra, que é distribuída pelo Programa do Livro Didático, do Ministério da Educação, é afirmar que construções do tipo "nós pega o peixe" ou "os livro ilustrado mais interessante estão emprestado" não constituem exatamente erros, sendo mais bem descritas como "inadequadas" em determinados "contextos".
Os mais espevitados já viram aí um plano maligno do governo do PT para pespegar a anarquia linguística e destruir a educação, pondo todas as crianças do Brasil para falar igualzinho ao Lula. Outros, mais comedidos, apontaram a temeridade pedagógica de dizer a um aluno que ignorar a concordância não constitui erro.
Eu mesmo faria coro aos moderados, não fosse o fato de que, do ponto de vista da linguística --e não o da pedagogia ou da gramática normativa--, a posição da professora Heloísa Ramos é corretíssima, ainda que a autora possa ter sido inábil ao expô-la.
Acredito mesmo que, excluídos os ataques politicamente motivados, tudo não passa de um grande mal-entendido. Para tentar compreender melhor o que está por trás dessa confusão, é importante ressaltar a diferença entre a perspectiva da linguística, ciência que tem por objeto a linguagem humana em seus múltiplos aspectos, e a da gramática normativa, que arrola as regras estilísticas abonadas por um determinado grupo de usuários do idioma numa determinada época (as elites brancas de olhos azuis, se é lícito utilizar a imagem consagrada pelo ex-governador de São Paulo Claúdio Lembo). Podemos dizer que a segunda está para a primeira assim como a pesquisa da etiqueta da corte bizantina está para o estudo da História. Daí não decorre, é claro, que devamos deixar de examinar a etiqueta ou ignorar suas prescrições, em especial se frequentarmos a corte do "basileus", mas é importante ter em mente que a diferença de escopo impõe duas lógicas muito diferentes.
Se, na visão da gramática normativa, deixar de fazer uma flexão plural ou apor uma vírgula entre o sujeito e o predicado constituem crimes inafiançáveis, na perspectiva da linguística nada disso faz muito sentido. Mas prossigamos com um pouco mais de vagar. Se os linguistas não lidam com concordâncias e ortografia o que eles fazem? Seria temerário responder por todo um ramo do saber que ainda por cima se divide em várias escolas rivais. Mas, assumindo o ônus de favorecer uma dessas correntes, eu diria que a linguística está preocupada em apontar os princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214 - 1294), o "pai" do empirismo e "avô" do método científico, mas foi modernamente desenvolvida e popularizada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky (1928 - ).
Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o adquira quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins (jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas) acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática completa para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.
O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo linguístico é o chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" ("poverty of the stimulus"). Em grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a contraexemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado linguístico. É a tal da Gramática Universal.
O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai algumas consequências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar outros animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de teclados de computador fracassaram. Os bichos não desenvolveram competência para, a partir de um número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de sentenças. Para Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da evolução para o problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.
Outro ponto importante e que é o que nos interessa aqui diz respeito ao domínio da gramática. Se ela é inata e todos a possuímos como um item de fábrica, não faz muito sentido classificar como "pobre" a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial, para não dizer aborrecido, no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz mesmo tanta diferença dizer "nós vai" ou "nós vamos". Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais "errada" do que uma ferisse as caprichosas regras de colocação pronominal, por exemplo.
Podemos ir ainda mais longe e, como o linguista Derek Bickerton (1925 - ), postular que existem situações em que é a gramática normativa que está "errada". Isso ocorre quando as regras estilísticas contrariam as normas inatas que nos são acessíveis através das gramáticas das línguas crioulas. No final acabamos nos acostumando e seguimos os prescricionistas, mas penamos um pouco na hora de aprender. Estruturas em que as crianças "erram" com maior frequência (verbos irregulares, dupla negação etc.) são muito provavelmente pontos em que estilo e conexões neuronais estão em desacordo.
Mais ainda, elidir flexões, substituindo-as por outros marcadores, como artigos, posição na frase etc., é um fenômeno arquiconhecido da evolução linguística. Foi, aliás, através dele que os cidadãos romanos das províncias foram deixando de dizer as declinações do latim clássico, num processo que acabou resultando no português e em todas as demais línguas românicas.
A depender do zelo idiomático de meus colegas da imprensa, ainda estaríamos todos falando o mais castiço protoindo-europeu.
Não sei se algum professor da rede pública aproveita o livro de Heloísa Ramos para levar os alunos a refletir sobre a linguagem, mas me parece uma covardia privá-los dessa possibilidade apenas para preservar nossas arbitrárias categorias de certo e errado.

Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.

sábado, 14 de maio de 2011

A norma culta e a comissão da verdade

Mao Tse Tung: estadista, onanista ou executor de milhares de opositores?

Longe de mim a pretensão de usar este modesto blog como veículo de defesa de uma política pública importante como a do livro didático. Na verdade, me dispus a escrever apenas como ilustração e por conta da provocação que me fez o amigo e companheiro Marco Aurélio Nunes Pereira, jornalista e comunicador competente, parceiro de mais de 30 anos.
Então, em primeiro lugar, é preciso que fique claro que o Programa Nacional do Livro Didático possui uma engenharia criativa que impede qualquer ingerência política ou doutrinária. Os livros são apresentados ao FNDE, respondendo a um edital, e apresentados sem qualquer sinal que identifique o autor ou a editora. Desta forma, são encaminhados a uma comissão de professores da área, nomeados por uma universidade pública, que também se apresenta voluntariamente para a análise do conteúdo.
Depois de analisado pela comissão, o livro retorna com um parecer técnico. Aprovado é encaminhado ao IPT-Instituto de Pesquisas Tecnológicas para ser chancelado quanto a durabilidade e resistência. Depois disso, figura em um catálogo distribuído para as escolas públicas, onde os professores selecionam entre as diversas opções por matéria, o livro que será distribuído a seus alunos.
Como se vê, é impossível haver qualquer ingerência com autores ou editores, ou ainda favorecimentos para esta ou aquela obra.
Frequentemente somos confrontados no Ministério da Educação com a inconformidade, notadamente de alguns pais e outras de colegas jornalistas, com o conteúdo expresso nestes livros. Uma das mais notáveis foi a implicância com um professor de história de Niterói, que definira Mao Tse Tung como estadista. Outra mais recente propunha a comparação entre a exibição dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que tirou do sério muita gente graúda, como o senador amazonense, perdão, ex-senador Arthur Virgílio, que chegou a acusar o ministério de fascista, entre outras bobagens. Na mídia eletrônica de ontem e na impressa de hoje ganhou espaço uma discussão, diria até salutar, envolvendo o confronto entre a língua falada e a língua escrita, entre norma culta e vulgar, por conta de um livro de EJA (Educação de Jovens e Adultos) maravilhosamente escrito pela professora Heloísa Ramos.
Às vezes tenho a impressão que alguns coleguinhas e outros acadêmicos gostariam que o Ministério da Educação se transforma-se no Ministério da Verdade, nos moldes daquele que o genialíssimo George Orwell, um dos maiores jornalistas do século XX, criou no seu romance de ficção política 1984. Gostariam que tivéssemos o poder de veto para dizer isso pode ou isso não pode.
Imaginam uma portaria ministerial com os seguintes dizeres: O ministro da Educação com base na portaria XPTO, amparada na lei K230, decide: Mao Tse Tung não pode figurar nos livros didáticos como estadista. O personagem, embora tenha liderado uma das maiores revoluções da história da humanidade e enfrentado uma guerra mundial, tinha dez concubinas e a ele se atribui o extermínio de milhões de opositores. Revoguem-se as disposições em contrário.
Ou outra ainda melhor: As citações correspondentes aos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, devem ser precedidas de uma análise obrigatória de 20 linhas, nem mais nem menos, respectivamente sobre a compra dos votos dos deputados e senadores que permitiram a emenda constitucional da reeleição e ao episódio político conhecido como “mensalão”, nos termos do processo que ainda tramita no Supremo Tribunal Federal.

Boris Fausto: os avanços do estado getulista 
Ora, a história é viva. Podemos discutir Heródoto até hoje. Todos os episódios da humanidade, da descoberta do fogo até a célebre aventura de Neil Armstrong na lua. No notável documentário em três partes de Eduardo Escorel, chamado a “Era Vargas”, disponível nas boas livrarias, o diretor contrapõe a visão história do período getulista na análise de dois monstros do pensamento brasileiro: de um lado o historiador Bóris Fausto, de outro o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro. O primeiro define o período que se seguiu a revolução de outubro de 1930, como o de organização do estado, de avanço social, etc... O segundo prefere ressaltar o caráter autoritário da ditadura getulista e o tutorialismo imposto na máquina sindical.
Como ficamos? Qual dos dois pensadores a Comissão da Verdade deve banir?
A discussão sobre o livro “Escrever é Diferente de Falar”, por sua vez, é fascinante. Trata-se de um livro de EJA (Educação de Jovens e Adultos), ou seja,  para estudantes que por alguma razão perderam o ciclo natural na escola, estão fora de idade, já tem uma formação na vida. E é claro que estas pessoas falam errado.

Paulo Sérgio Pinheiro: o autoritarismo da era Vargas
Ninguém está ensinando português errado. “Cabe à escola ensinar as convenções ortográficas e as características da variedade linguística de prestígio”, explica a professora Heloísa Ramos. “Se um indivíduo vai para a escola, é porque busca ascensão social. E isso demanda da escola que lhe ensine novas formas de pensar, agir e falar”, pondera o linguista Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras.
A língua e a história estão vivas. No século XXI o português falado no Brasil é muito diferente daquele falado nos anos 90. O debate e o confronto da língua falada e da língua escrita, da norma culta e da norma vulgar, são fascinantes! Isso não dá o direito, entretanto, de discriminar um aluno de EJA porque ele comete erros de concordância ao se expressar. Até porque, com erros ou não, ele se comunica. É preciso ensina-lo. E é justamente o que a professora Heloisa Ramos se propõe no seu livro.


With Dady and Mammy standin by

Alguém poderia me dizer em que língua está escrito o texto a seguir:

Summertime and the livin is easy. Fish are jumpin, and the cottom is high. Oh yo daddy’s rich, and yo ma is good lookin. So hush little baby, don yo cry. One of these mornin’s you goin to rise up singin. Then you’ll spread yo wings an you’ll take the sky. But till that morning, there’s-a-nothin can harm you. With Daddy and Mammy standin by.

Cuidado! Se você acha que a Comissão da Verdade deveria banir estes versos, porque mal escritos, ainda que em inglês, saiba que se trata de uma das canções mais belas do cancioneiro americano, criada pelo talento inegável de Ira Gershwin e DuBose Heyward para a ópera Porgy and Bess, de George Gershwin. Uma das jóias da criação humana.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Cortés, as caravelas e o jabuti

Herança ibérica: o jabuti se inscrustou de tal forma que
nem um incêndionas caravelas é capaz de deslocá-los

Diz a lenda que dois colonos andavam por um capão quando um deles, mais esperto, divisou um jabuti comodamente instalado no galho de uma árvore.
- Oi, cumpadre, ói um jabuti naquele galho. Vamo tira ele de lá?
O outro, mais velho e precavido, coçou o queixo:
- Mai cumpadre, desde quando jabuti sobe em árvore? Tira não, a gente num sabe quem pôs ele lá.
A história do jabuti é rigorosamente emblemática na administração pública e, lamento, privada no Brasil. O pobre quelônio não tem culpa de nada. Mas, desde que Cabral trombou com a Bahia, um dos mais fortes instrumentos da política brasileira é a nomeação de parentes, apaniguados, cupinxas e correlatos.
Trabalhar no governo é muito difícil. Os salários são aviltantes. As condições, mínimas. A instabilidade, uma constante. Mas, um carguinho, por menor que seja, é disputado a tapas. E, certamente, não é pelo desprendimento, pelo espírito público que brota na essência de todos os brasileiros.
Brota nada. Este é o país da fraude e do blefe. Da espuma e do faz de conta. Sempre foi.
Hernán Cortés, um dos maiores conquistadores espanhóis do século XVI, recebeu a incumbência de colonizar o México. Às voltas com as intrigas políticas e a ambição desmedida dos jabutis plantados em sua expedição, tão logo aportou, ele queimou a própria frota. Em seguida, amparado por uma nativa, Marina de Viluta, por quem era apaixonado, destruiu completamente a armada enviada contra ele e comandada por Pánfilo de Narváez.

Cortés: conquistador derrotado pelos jabutis
Cortés foi hábil. Juntou os inimigos dos astecas e, literalmente, conquistou El Dorado, o paraíso de ouro e prata. Em 1522, ele destruiu a cidade imperial de Tenochtitlán. Em 1525, presidiu a execução do último rei asteca Cuauhtémoc.
A dominação das Índias Ocidentais só se tornou efetiva depois da incursão de Cortés pelo continente. Antes disso, os espanhóis se debatiam como idiotas em busca das riquezas do novo mundo nas ilhas de Hispaniola (República Dominicana) e Cuba. O rei Carlos I confirmou o seu posto de capitão-general, fez uma festa danada, mas lhe arrebatou o poder político, nomeando como vice-rei o jabuti-mór, Antonio de Mendoza.
Pode-se dizer que a partir da conquista do México, um reinadozinho de merda na Península Ibérica, que até 1492 tinha sua economia na mão dos árabes, e depois disso foi dominado inteiramente pela Inquisição, tornou-se uma, se não a maior potência do mundo. Se não tinha a rota para as Índias, tinha todo o ouro do Novo Mundo, enquanto os portugueses ainda se viravam com o açúcar brasileiro e o pau-brasil que não servia rigorosamente nem para lenha de lareira.


As principais características

Este tipo específico de jabuti nos foi trazido por espanhóis e portugueses. E possui características muito próprias:

O jabuti adora ouvir o som da própria voz. Acredita que repetindo uma bobagem à exaustão vai transformá-la em verdade.

O jabuti se acha a bala que matou Kennedy. Fica o tempo todo repetindo o seu papel de importância no desempenho da repartição.

O jabuti precisa muito prestigiar as origens. Por isso mesmo, fica o tempo todo falando das suas bases e de como a vida que ele deixou lhe faz falta.

O jabuti adora tênis e futebol principalmente no horário do expediente.

O jabuti marca médicos e outros compromissos pessoais sempre na hora do expediente.

O jabuti nunca assume nada. Não tem responsabilidade ou comprometimento com coisa nenhuma, a não ser com o poder que o colocou na árvore.

O jabuti é sempre generoso. Adora propor enforcar um feriado (para ele poder viajar até a sua base). Como não tem compromisso com nada, também não cobra nada de ninguém. Mas, se alguma coisa der errado, distribui as culpas entre aqueles que estão mais próximos.

Como não faz nada, o jabuti é de longe o mais bem remunerado entre todos.



Histórias de jabutis


Me lembro de algumas histórias inesquecíveis. Uma delas de quando eu trabalhava no Senado. Certa vez, precisava saber onde estavam arquivadas algumas informações a respeito da atuação do senador Carlos Wilson no plenário.
- Ah! Isso. Só a Joana (nome fictício) sabe onde está.
Muito bem e onde está a Joana? Perguntei meio constrangido.
- A Joana só trabalha as terças-feiras à tarde.
Em tempo, Joana ganhava, no contra-cheque, o mesmo que eu.
Outra inesquecível de jabuti foi aqui no MEC. Em plena crise de informação, procurei por uma das minhas coordenadoras.
- Ah! A Paula (nome fictício)??? Teve que sair. O cachorrinho dela não está bem.
Da Infraero, verdadeiro paraíso de jabutis, poderia escrever um livro inteiro. Mas, a mais impressionante foi de um jabuti baiano. Quinta-feira que antecedia o carnaval, o chefe da comunicação do aeroporto de Salvador me liga:
- Oi chefe, estou ligando para te desejar um bom carnaval e avisar que só estarei aqui de volta na quinta-feira.
Como assim? Quem vai cuidar da comunicação no aeroporto?
- Não tenho idéia. A gente vai se mandar hoje porque a partir de amanhã isso aqui vai virar uma loucura.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Atende ao telefone. Atende!

Uma coisa é certa, desde que Graham Bell inventou esta máquina infernal chamada telefone, o jornalismo ganhou um up-grade e uma velocidade inimagináveis. Como pensar em apurar, transmitir ou checar uma informação sem os préstimos deste instrumento.
E não há redação que se preze sem um montão de telefones tocando ao mesmo tempo. E um bando de pessoas atordoadas sem saber qual atender ou atendendo todas simultaneamente.
É bem verdade que os tempos mudaram. O telefone não é mais preto e pesado. O toque também não é mais tão estridente. A internet veio para aliviar e o telefone celular para simplesmente arrebentar tudo, com a estranha e inimaginável capacidade de juntar telefone e computador móvel. Um assombro!
Mas, esta história que eu vou contar é do tempo em que os telefones tocavam estridentes e os fios se emaranhavam, os repórteres se engalfinhavam e se fazia jornalismo de verdade. Me foi contada por ninguém menos que o genialíssimo Elio Gaspari.
Uma bela tarde de 1962, os telefones na redação do Dallas Daily News, tocavam e tocavam, em meio a uma balburdia descomunal e ninguém atendia nem entendia nada do que estava acontecendo. Até que um dos estafetas decidiu atender um deles. Do outro lado da linha, uma senhora muito calma fez um pedido:
- Meu filho, será que o jornal poderia me pagar uma passagem de Huston para Dallas? Pode ser de ônibus mesmo.
- Minha senhora – disse o estafeta com o peito estufado – isso aqui é o Dallas Daily News. Não é uma agência de viagens.
A velhinha ainda insistiu:
- Mas, eu precisava tanto ir para Dallas.
- Olha minha senhora, a coisa aqui ta bem confusa, porque a senhora quer vir para cá?
- Porque acabaram de matar o presidente da República e eu acho que o assassino foi o meu filho.
A velhinha veio de avião, ainda naquela tarde.
Moral da história: atende, porra! Atenda sempre ao telefone. Nunca se sabe.


A genial Zezé


Outra genial foi uma daquelas minhas aventuras na Guerra das Malvinas, em 1982. Eu estava em Bahia Blanca, tinha uma matéria extraordinária e precisava avisar a redação em São Paulo. Naquele tempo, falar da Argentina, ainda mais do Interior, para qualquer lugar do planeta, era muito difícil.
Pedi a ligação com urgência para a operadora argentina, que me pediu três horas de prazo para concluir a ligação.
Finalmente ela me retornou e me passou a operadora brasileira da Embratel.
Passei o número em São Paulo e fiquei esperando a conexão por 20 minutos com o telefone na orelha.
Na redação da Istoé havia uma instituição chamada Zezé. Sempre eficiente, pronta a acompanhar o ritmo e o trabalho daqueles malucos que se diziam jornalistas.
Pois bem, o telefone tocou e eu ouvi a voz da Zezé:
- Revista Istoé, boa noite!
E a operadora:
- De Bahia Blanca, o senhor Nunzio está chamando a cobrar.
E a gloriosa Zezé do alto do seu discernimento:
- Nunzio, não! Ele está cobrindo a guerra na Argentina.
E desligou o telefone.


Outra famosa.


Revista fechada, nos finalmentes, madrugada de quinta-feira. O Tão anuncia que vai para casa e passa o fechamento da revista para este idiota aqui. Me lembro que chovia e muito.
- Só me chame em caso de extrema, extrema necessidade. Está tudo desenhado, tudo fechado. Só coloque as legendas e revise a edição.
Era uma quinta rara. Três horas da manhã, tudo encaminhado.
Eis que toca o telefone direto.
- Tão?
- Não. Nunzio. Tão já foi. Quem fala?
- Aqui é o Conde de Oeiras. Poderia me dizer que dia fecha a redação?
- Ué! Hoje, quinta, estamos fechando.
- Que pena!
E desligou.
Conde de Oeiras era uma das fontes que o Tão tinha no Palácio do Planalto. Ele estava careca de saber que a revista fechava as quintas-feiras. Não era grave! Era gravíssimo. Alguma coisa de muito sério estava para acontecer.
Respirei fundo, acendi o cigarro e liguei para o Tão.
- Chefe?
- Nunzio, espero em Deus que seja algo muito, mas muito grave mesmo.
Gelei.
- Olha ligou aqui o Conde de Oeiras e perguntou que dia fechava a revista.
Silêncio de alguns segundos.
- Estou a caminho.
No dia seguinte, o general Golbery do Couto e Silva demitiu-se por conta do atentado da OAB. Um quilombo sensacional. Passamos a noite em claro e saímos na madrugada de sábado. Tudo por culpa do telefone.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Sus ojos se cerraron y el mundo sigue andando


Aitana Sánchez, a Juanita: criou um Gardel para ela e ficou com o verdadeiro

Depois de uma ansiedade enorme finalmente consegui assistir a uma cópia em DVD do filme argentino-espanhol de Jaime Chávarri, Sus Ojos se Cerraron y El Mundo Sigue Andando, de 1997, com a bela atriz ibérica Aitana Sánchez-Gijón e um surpreendente Darío Grandinetti.
O filme tornou-se uma obsessão porque o João Bittar, meu irmão, a quem esta semana não pude dar a menor atenção (ainda que estivesse trabalhando na sala ao lado da minha) havia me relatado o primor do roteiro original escrito por Óscar Plasencia e Raúl Brambilla.
Dizer que os roteiristas argentinos são brilhantes e que o cinema portenho é maravilhosamente bem escrito é chover no molhado. Na verdade, este é o pulo do gato, o diferencial que faz os “hermanos” com pouco dinheiro se sobressaírem tanto no mercado audiovisual. Mas, este Sus Ojos se Cerraron... transcende a qualquer expectativa.
É uma desgraça que o filme não tenha sido exibido nas salas brasileiras. Se o foi, ficou tão escondido, que certamente não molestou a grandeza dos cineastas patrícios, tão ciosos de suas competências.
A história é contada por uma imigrante espanhola, que vive no bairro da Boca, em Buenos Aires, em 1933, e que, como todo o resto do país, é apaixonada por Carlos Gardel. A paixão é tanta que ela transforma o amante, um mundano ser portenho, cantor de arrabalde, sósia perfeita do famoso, no seu Gardel particular.

Duo perfeito: Gardel com seu letrista brasileiro Alfredo Le Pera

A história se desenvolve em um crescendo portentoso, até que o sósia, Renzo Franchi, se encontra em Medellín, pronto para substituir o verdadeiro Gardel, que havia abandonado a turnê colombiana.
Franchi leva a audiência em Bogotá à loucura e é instado pelos empresários a repetir o feito em Cali. No translado, o avião, como todos sabem, se choca com outro na própria pista. E Gardel/Franchi morre junto com o brasileiro Alfredo Le Pera, letrista dos tangos imortais, e dos músicos que os acompanhavam.
Gardel, o verdadeiro, por sua vez, está em Buenos Aires tomando café com a mãe, quando lê pelos jornais sobre o acidente aéreo. Em um de seus arroubos e diante da perplexidade da genitora, comemora o fato de estar vivo. Mas, a mãe pondera que de fato ele morreu. “Se descobrirem que qualquer um pode cantar como você, o seu mito termina”.
Trata-se, pois, de um dilema grandiloquente, genial. Vivo e morto. Gardel se permite acompanhar o cortejo fúnebre de si mesmo até o Cemitério de La Chacarita. E assume o perfil de um cantor de arrabalde, até que encontra Juanita, que descobre o que aconteceu, e, frustrada, o batiza como Renzo Franchi.
Claro que nada disso aconteceu. E que importa? O filme é brilhante. Ponteado pelos tangos imortais. Começa com Tomo y obligo e termina com Mi Buenos Aires Querido.

Ouça o tango que emprestou o nome para o filme, na voz inigualável de Carlos Gardel clicando aqui

O mito e o pombo sem asa!

Certa vez estava com meu compadre José “Pepe” Meirelles em Buenos Aires, quando um destes “pombos sem asas” tão comuns no jornalismo pátrio desembarcou em solo portenho. (Pombo sem asa é aquele repórter que, de repente, fala duas frases inteligentes que o editor pensava, mas não tinha coragem de dizer, e vira gênio da raça. Desaparece do mesmo jeito que aparece, graças a Deus!)
Este era um fenômeno, vinha de uma dinastia comunista, mas era o símbolo do yuppie. Chegou über metido e nos convocou para um jantar, onde pretendia distribuir pautas para nós dois, que culminassem com alguma tese tão importante que eu nem me lembro.
O jantar foi no tradicionalíssimo Palacio de las Papas Fritas, na calle Lavalle, numa noite de terça-feira. O pombo falava sem parar. Eu e o Pepe nos entreolhávamos assustados. Eis que uma loja de discos ao lado começa a tocar Estudante, com Gardel a plenos pulmões. Todos começaram a cantar no restaurante.
O pombo, sem entender nada, nos perguntou: “De que se trata?”
- Quer um conselho, amigo? – disse o Pepe.
- Pega o avião amanhã e volta para casa. Deste país você não entende un carajo – completei eu.
Levantamos e deixamos o “pombo” imobilizado. Fomos ao Union Bar terminar a noite.
A matéria nunca foi apurada e a criatura nunca mais nos dirigiu a palavra. Desapareceu e surge vez ou outra como gênio temporário.



O mito ainda vive!


Gardel com las rubias de Nova York: foxtrote de sucesso

“Tinha uma presença superior na voz e na figura, uma enorme simpatia pessoal que fazia com que ganhasse imediatamente o afeto de todos. Foi tão profunda a simpatia que inspirava que recordo claramente que estivemos reunidos até a primeira luz da manhã (no Palácio do Mediterrâneo, em Nice, França) em uma noite memorável. Disse-lhe que teria um futuro brilhante e o aconselhei a se dedicar ao cinema. Quando foi aos Estados Unidos veio a visitar-me em casa e me deu a oportunidade de voltar a escutar suas canções memoráveis. Uns dias antes de sua última turnê veio se despedir. Falava um inglês correto e me disse que empreenderia uma viagem pela América Central, idéia que aplaudi. Posso dizer publicamente que com a morte de Gardel perdi um dos meus melhores amigos e os países da América do Sul deveriam saber que não poderiam ter um melhor representante que Gardel. No que concerne ao cinema, perdeu uma figura colossal que nunca poderá ser substituída”.
O texto acima é de ninguém menos do que Charles Chaplin. Acrescentar alguma coisa seria de uma pretensão absurda.
Gardel nasceu em Toulouse, na França, em 11 de dezembro de 1890. Veio para Buenos Aires com três anos de idade, em companhia de sua mãe.
Em 1913 formou uma dupla com o cantor uruguaio José Razzano. Só em 1925 começou sua carreira solo. Em 1928, em Paris, realizou uma série de apresentações fantásticas e vendeu nada menos do que 70 mil cópias de seu disco.
Com o cinema falado, Gardel se encaixou a perfeição. Rodou 10 filmes para a Paramount.
Morreu em 1935. Já são quase 76 anos. Mas, o espírito da sua personalidade e sua voz permanecem vivos. Há infinitas edições de seus discos, centenas de portais dedicados a ele. E para qualquer argentino que se encontre na rua e se pergunte sobre Gardel, a resposta é automática: “Aun canta cada vez mejor!” Com certeza.

Ouça o famoso Foxtrote que Gardel gravou em Nova York, em 1917, em uma versão de julho de 1934.