domingo, 26 de junho de 2011

Dormindo, deixe-nos dormindo!

Lancaster como príncipe de Salinas: mudar para tudo ficar como está



A despeito do estereótipo reconhecido em todo o mundo, os italianos são reconhecidos em qualquer parte do mundo por sinais muito claros: a expansividade, a franqueza, o jeito irreverente e a notável capacidade de não se levar a sério.
O cinema mostrou muitos estereótipos. Mastroianni, Gasmann, Nino Manfredi, Aldo Fabrizi, a lista é infindável. Mas, engana-se quem acha que os italianos são todos iguais. Que a irreverência romana e a mesma na Liguria ou no Piemonte. Que um veneto é igual a um toscano. E nessa cornocópia de personalidades, de modos de comportamento, preciso falar especificamente do mais enigmático, o de nós sicilianos.
E, curiosamente, foi um ator americano, Burt Lancaster, vivendo um personagem criado por Tomaso di Lampeduza, quem definiu perfeitamente o espírito siciliano. Lancaster vive o príncipe de Salinas, representante da velha ordem política, que recebe um emissário do rei Vittorio Emanuelle, com a proposta de nomeá-lo senador da nova ordem, da Itália unificada.
O príncipe de Salinas recebe o emissário em seu palácio e responde à proposta de Turim: “Desculpe. Mas, é melhor não. Agradeço o convite. Mas, nós sicilianos estamos dormindo e é melhor que continuemos assim”.
Lampedusa, ele também siciliano, é o autor do clássico político Il Gattopardo. É dele, quer dizer do príncipe de Salinas, a célebre afirmação de que as coisas devem mudar, para tudo continuar exatamente do jeito que está.
Sicilianos nunca são verdadeiramente o que aparentam. Aprenderam com o tempo. Certamente foi o território europeu mais ocupado ao longo de toda a história. Por isso mesmo, temos sinais árabes, celtas, romanos, normandos e gregos. Somos generosos, sábios e contemplativos. Nossas cidades, Messina e Taormina, por exemplo, são mais antigas que a própria Roma. Nossa civilização também. Mas, estamos sempre dormindo, aparentemente dormindo. Acordados, tanto podemos construir ou destruir.  
E tome estereótipos clássicos como De Niro ou Brando como gangasters, ou Giancarlo Giannini como Pasqualino Sette Belleza ou Mimi, o metalúrgico. Mas, há também os heróis como Salvatore Giuliano ou o Tancredi, lugar tenente de Garibaldi.
Giannini como Pasqualino: poder de construir ou destruir
Toda esta introdução apenas para dizer que conheci neste domingo um singelo, mas eficiente restaurante siciliano, em Brasilia. Parece inacreditável. Mas, o restaurante, na verdade uma trattoria, batizada Mediterrâneo, está lá na 408 Norte. O proprietário atende pelo nome de Luca, ainda que seja Gianluca, e se divide na atenção as mesas e o comando da cozinha.
Sua estratégia é bastante singela. Meia dúzia de pratos clássicos italianos, do tipo Amatriciana, Carbonara, Putanesca etc... para os menos exigentes, e uma série de iguarias sicilianas que ele importa diretamente, como ovas de atum, orégano, prosciutto,  queijos mascarpone ou grana padano. De quebra algumas receitas mágicas como a Zuppa de Pesce ou o Peixe Espada, em posta, com pesto siciliano; camarões crocantes, mexilhões cozidos no ponto certo, vegetais  frescos.
Enquanto saboreava estas  iguarias na tarde deste domingo e conversava com o Luca no nosso idioma, contemplava a força da cultura, do sangue rubro que circulava nas nossas veias e que espero esteja presente também nas nossas proles. Podemos estar machucados, feridos, traídos ou magoados. Mas, por favor, nos deixe dormir. É melhor assim. Acordados seremos sempre acometidos do imponderável.

domingo, 19 de junho de 2011

Uma resposta inusitada

A estonteante Jessica Rabbit: paixão pela capacidade de seu marido faze-la rir
Um dos meus maiores prazeres é surpreender o meu filho Enrico com respostas inusitadas, que o levam a gargalhadas deliciosas. Certa vez, ele me perguntou: "Pai, quem para você é o maior ator brasileiro da atualidade?"
Não sabia qual era a resposta que ele esperava. Mas, falei do fundo do coração: "Didi Mocó".
Acho que o Enrico herdou de mim a paixão pelo inesperado, as vezes consolidado, as vezes surpreendente. Um dos diálogos do cinema que mais me marcaram, estava num filme genial de Robert Zemicks, Uma Cilada para Roger Rabbit.
A estonteante Jessica Rabbit é confrontada pela pergunta incrédula de quem não acredita na possibilidade da sua paixão pelo coelho Roger: "O que você vê nele?"
- Ele me faz rir! - responde ela.
Colocado assim, de bobeira, parecia uma boa piada. Mas, ao final do impacto hilariante, veio a reflexão: não estará sintetizado ai de forma singela o segredo do amor?
Acho mais. Quando nos defrontamos com abismos insuperáveis, crises profissionais e emocionais, humilhações e auto-flagelos, é no humor que revelamos a superação. Rir de nós mesmos é uma forma eficiente de reconquistar a auto-estima.
E neste ponto eu tenho uma certeza: um dos atalhos da felicidade está justamente em não se levar a existência tão a sério.
Conversava outro dia sobre isso com a minha amiga Pilar Lacerda e ela me recomendou a leitura de um texto do Contardo Calligaris, publicado na Folha de S.Paulo da quinta passada, dia 16. Tomo, portanto, a liberdade de republicá-lo neste espaço.

CONTARDO CALLIGARIS

POR QUE ACABA UM CASAL?

Nossa cultura romanceia o namoro,
mas imagina o casamento como se fosse uma "tumba do amor"


NO DOMINGO passado, Dia dos Namorados, um amigo mandou flores para sua mulher com este bilhete: "Posso ser seu namorado ou continuo sendo apenas seu marido?".
A frase foi bem recebida. É que, para nós, "namorado e namorada" pode ser muito mais do que "marido e mulher". Em regra, nossa cultura romanceia o namoro, mas imagina o casamento como uma tragicômica "tumba do amor".
Na última sexta, na Academia de Ideias de Belo Horizonte, durante um bate-papo com João Gabriel de Lima sobre meu último livro, ao falar de amor e casais, eu propus o seguinte: 1) todos tendemos a amarelar diante de nosso próprio desejo; 2) o casamento nos permite acusar alguém de nossa própria covardia -assim: eu quero fazer isso ou aquilo, mas tenho preguiça e medo; por sorte, agora que me casei, posso dizer que desisto porque assim quer minha parceira; 3) um casal, para valer a pena, não deveria servir para justificar as desistências de nenhum de seus membros; ao contrário, ele deveria potencializar os sonhos e os desejos de cada um dos dois.
Uma mulher me lembrou, com razão, que até esse tal casal que vale a pena pode acabar. E perguntou: por quê?
Existe uma sabedoria popular resignada sobre a duração de um casal. Os sentimentos do namoro viveriam, no casamento, uma decadência progressiva inelutável. E os casais continuariam unidos mais por inércia do que por gosto.
Alguns dizem que a rotina e a proximidade desgastam os sentimentos. Ou seja, o apaixonamento sempre é fruto de alguma idealização, e de perto ninguém parece ideal por muito tempo. Será que o remédio seria manter a distância para não enxergar as falhas do outro?
Respondo: amar não significa não enxergar os defeitos do outro, mas achar graça neles. Uma amiga perde um celular por semana; ela sabe que uma relação amorosa está acabando no dia em que seu homem, em vez de achar graça na sua desatenção, irrita-se com seu descuido.
Outros acusam o tédio. A novidade (valor mor da modernidade industrial) seria o ingrediente essencial (e, por definição, efêmero) do casal feliz. Ou seja, felizes são só os recém-casados.
Respondo: todos nós, neuróticos, amamos a repetição e a praticamos com afinco. A rotina, portanto, não deveria nos afastar do amor.
Volto, portanto, à pergunta: por que um casal acaba? Levantei a questão no Twitter, e @M_Angela_ Jesus me escreveu que, segundo Anaïs Nin, os casais não morrem nunca de morte natural, mas por falta de cuidados, de atenções e de esforços.
A citação me levou a pensar nos meus próprios casamentos fracassados; não cheguei a resultado algum, salvo o fato de que não deveríamos chamar necessariamente de fracasso um amor que acaba; erigir a duração em valor é uma ideia perigosa, que pode transformar separações bem-vindas e necessárias em processos laboriosos e infinitos.
No meio dessas reflexões, no domingo, fui assistir a "Namorados para Sempre", de Derek Cianfrance, que me tocou fundo, por ser justamente a história de um amor que não é mais possível. Isso, sem que os protagonistas consigam saber por que "não dá mais": nenhum deles é o vilão da crise, e nenhum deles é capaz de dizer o que está errado e deveria mudar para que o casal tivesse uma chance.
A julgar pela idade aparente da filha, o casal do filme dura há mais ou menos cinco anos. Em cinco anos, os namorados que, no primeiro encontro, haviam dançado e cantado na rua, cheios de alegria e de encantamento, transformaram-se num casal de estranhos que se encaram antes de se enxergar.
O que aconteceu? Não há resposta. Essa é a força do filme, que acua cada espectador a se perguntar o que foi que aconteceu a cada vez que ele ou ela amou, e o amor se perdeu.
Não é preciso que haja discordância brutal, traição ou desamor para que um casal se perca. Claro, é sempre possível racionalizar e apontar causas: no caso do filme, ao longo dos cinco anos, talvez ela tenha "crescido" profissionalmente (como se diz) e alimente agora ambições que ele não pode compartilhar porque, para ele, o casamento e a filha continuam sendo as únicas coisas que importam. Pode ser.
Mas talvez o fim de um amor seja um fenômeno tão misterioso quanto o apaixonamento. Talvez existam duas mágicas opostas, igualmente incontroláveis, uma que faz e outra que desfaz.


sábado, 11 de junho de 2011

Por favor vamos ser educadores!

Assunção, capital do Paraguay: uma cidade muito charmosa e atraente

Fazia muito tempo que eu não visitava Assunção, a capital da República do Paraguay. A última vez foi quando o ERP mandou para o espaço o glorioso Augusto Somoza, ditador foragido da Nicarágua. Um justiciamento com um sabor agradabilíssimo. Ainda mais que a polícia do então ditador paraguaio, Stroessner, ficou completamente perdida. Tive que sair de lá, bem as pressas, o então embaixador brasileiro general Fernando Belfort Betlhem, me chamou na embaixada para dizer que não garantia minha segurança. Eu havia ridicularizado o ministro do Interior, um tipo que a história esqueceu chamado Pastor Coronel. Sai numa Kombi da falecida VARIG, coberto por um cobertor, até um 727 da companhia. Me ajudou bastante um engenheiro que respondia pelo consórcio que construía Itaipu e que vivia na capital guarani.
Hoje, Assunção é uma cidade moderna. Continua linda, com suas largas avenidas, suas praças bem cuidadas e seu comércio colorido. A visão soberana do rio Paraguay.
Lá fomos nós para a 40ª. Reunião de Ministros da Educação do Mercosul, que conclui a presidência rotativa do Paraguay.  Isso mesmo, 40ª. De concreto até agora? Bulhufas.
Gasta-se um dinheiro enorme, fala-se um monte de palavras bonitas, reitera-se a necessidade da integração regional, bla-bla-bla. E, no melhor estilo diplomático, não acontece nada.
Fiquei revoltado. E não me contive. Deitei falação no almoço. Fui apoiado por um simpático funcionário do Ministério da Educação do Equador e uma lindíssima assessora do Ministério da Colômbia. Argentinos e Uruguaios ficaram perplexos. Os primeiros porque ainda não entenderam que o passado fica no passado. É importante sim. Mas, fica lá. E os orientais, bem, os orientais ainda estão esperando a volta dos anos dourados, quando a carne e a lã catapultaram a revolução battlista dos anos 10.
Enquanto isso, nós brasileiros, paraguaios, colombianos e equatorianos damos um duro danado para tornar real a verdadeira revolução latino-americana, que se dará pela educação. Alguém tem dúvidas?
Mas, não vamos chegar a lugar nenhum enquanto estivermos submetidos a avaliações e estudos de organismos internacionais como OCDE, Unesco, Unicef e correlatos. Esta gente não está nem ai para a América Latina. 
Bela roba!
Vão querer me dizer que um menino de 10 anos acorda todas as manhãs em Helsinque ou em Seul  e encara a sala de aula com o mesmo propósito que um menino em Quito ou Medellin?
Meu amigo Luis Garibaldi, vice-ministro da Educação do Uruguay costuma dizer que eu sou ansioso. Combina com ele. Outro amigo, Gustavo Iaies, do Centro de Estudos de Políticas Públicas Latino-Americanas, de Buenos Aires, ao contrário, fica me colocando pilha.
Catsu, se não fizermos a integração e a revolução educacional agora, quando até o novo governo do Peru veio para o nosso lado, quando faremos?
Nunca as condições foram tão favoráveis. Exceção ao Chile que se bandeou, ou sempre esteve, recluso atrás da Cordilheira, podemos enfim falar a mesma língua da Patagônia ao Rio Grande e temos que começar logo com ações singelas. Querem ver?
1)   Um programa de intercâmbio de bolsas entre professores de português e de espanhol. No Brasil, o ensino de espanhol é obrigatório no ensino básico, e não há professores para isso.
2)   Criação e produção de livros didáticos que ensinem o português do Brasil para os vizinhos e o espanhol da América Latina para os brasileiros. Nada de Portugal e Espanha, o período da colonização acabou, faz 200 anos.
3)   Criação de um indicador de qualidade da educação nosso, que compare nossos países e nossas realidades. Não somos escandinavos, nem coreanos. Somos latino-americanos porra!
4)   Criação de uma escola de gestão educacional em Assunção, para formação de gestores latino-americanos, sem participação ou modelos de organismos estrangeiros.
5)   Criação de um fórum de universidades públicas latino-americanas  para coordenar as ações de pesquisa , intercâmbio de estudantes, pós-graduação, doutorados, reconhecimento de diplomas etc...
6)   Criação de um site com exposição perene das políticas públicas de educação nos países latino americanos, troca de informações, notícias, chats, etc...
Será que é tão difícil assim? Envolve tantos recursos que nossas economias não conseguem enfrentar?
Precisamos parar de ser diplomatas e assumir a posição de educadores. Já perdemos tempo demais. Se não, quando nossos netos nos cobrarem resultados, diremos que a integração foi ótima, mas nós perdemos tempo tomando umas “copas” .

segunda-feira, 6 de junho de 2011

6 de junho de 1944

Prestes a desembarcar: soldados aliados pouco antes do massacre em Omaha


Há 67 anos, a Europa estava nos estertores da II Guerra Mundial. No dia 6 de junho de 1944, as tropas aliadas – mais exatamente britânicas, americanas, francesas, polonesas, tchecas e iugoslavas – deram o golpe fatal na Alemanha de Hitler.

Ao contrário do que Hollywood e a história americana contam, o poderio tedesco já se esvaía desde fevereiro de 1943, quando o general Von Paulus rendeu-se ao general Georg Zhukov  em Stalingrado.

Desde então, o Norte da África, o mar Egeu, e metade da Itália estavam perdidos. Os alemães, que até então eram ultra ofensivos na sua frente oriental, tendo constituído uma linha de suprimentos de cinco mil quilômetros, cercado Moscou e Leningrado, levaram uma surra nas margens do Volga, em pleno Cáucaso. E desde então, passaram mais a se defender do que atacar.

Stalin havia implorado por um front no ocidente para aliviar o Exército Vermelho, mas depois de Stalingrado passou a ser o aliviador das tensões no Canal da Mancha. Com efeito, quando os aliados desembarcaram nas praias frias da Normandia, encontraram apenas tropas de segunda classe, romenos, búlgaros e húngaros. O grosso da Wermacht estava na União Soviética. Hitler confiava no seu comandante do front ocidental, o marechal de campo, Von Rumstead, um oficial de estirpe do exército alemão que odiava aos nazistas e ao Führer, a quem chamava de “pintor de paredes austríaco”.

O comandante da defesa na Normandia era o general Erwin von Rommel, herói de El Alamein e da campanha do Afrika Korps, em 1941. Havia uma convicção na inteligência alemã de que a invasão se daria em Calais, na parte mais estreita do canal, e seria comandada pelo general americano George Patton.

O comandante supremo aliado na Inglaterra, o general Dwight Eisenhower, sabedor da convicção alemã, faz com que a contra-espionagem inglesa espalhe o que Berlim queria ouvir. Rumstead foi instruído pelo próprio Hitler a manter o melhor de suas tropas no Interior da França, à espera do ataque. Por isso mesmo, não levaram a sério quando os aviões C-47 lançaram milhares de paraquedistas atrás das linhas de defesa alemãs, nas primeiras horas da madrugada daquele 6 de junho.

Cenário de Stalingrado: vitória soviética e recuo dos alemães
A surpresa veio com a luz do sol, a maré baixa, e a maior frota de transporte naval já reunida em toda a história: três milhões de soldados, 11 mil aeronaves e quatro mil navios. Deu quase tudo certo para os aliados, com exceção do desembarque na famosa praia de Omaha, onde a maré manteve-se alta, reduzindo o espaço de combate na praia, o que permitiu que uma casamata e quatro ninhos de metralhadores, além de artilharia leve, impingissem um verdadeiro massacre às tropas americanas comandadas pelo general Norman Cota. A descrição cinematográfica mais realista pode ser vista em O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg.

Ainda que confusa, a estratégia de lançar paraquedistas por trás das linhas de defesa alemãs também confundiu bastante a defesa alemã. Com exceção dos soldados da 101, que erraram a zona de lançamento e acabaram caindo sobre a cidade de Le Port, Sainte-Mere-Eglise, onde um incêndio mantinha a população e as tropas alemãs acordadas. Foi um massacre. Esta cena está magnificamente retratada no clássico O Mais Longo dos Dias, de 1962, dirigido por Ken Annakin e Andrew Morton.

As cabeças de ponte na Normandia prenunciavam a libertação da França e colocavam um problema quase insolúvel para o Estado Maior Alemão: a partir de então os alemães teriam que dividir-se para enfrentar os ataques tanto dos soviéticos como dos britânicos, americanos e franceses. As tropas da Grécia, da Itália e da Croácia passaram a ficar isoladas.

Os generais alemães se dividiram. Boa parte deles acreditava que podia negociar um armistício em termos razoáveis. Mas, Hitler não queria repetir a desgraça de 1918 e passou a apostar tudo no que chamava de “nova geração de armamentos”. Na verdade, mísseis teleguiados e bombardeios impulsionados por jatos, além de artefatos nucleares que os alemães desenvolviam na Noruega ocupada.

A guerra na Europa terminou no dia 8 de maio do ano seguinte, 11 meses depois da invasão da Normandia. Poderia ter terminado antes, não fosse a insistência do marechal britânico Bernard Montgomery, que em novembro de 44 ordenou a fracassada invasão da Holanda, magnificamente retratada no clássico de  Richard Attenborough, Uma Ponte Longe Demais.

O fracasso na Holanda deixou americanos, argelinos e franceses expostos na floresta das Ardennes, em janeiro e fevereiro, e permitiu uma ligeira contra-ofensiva alemã que terminou tão logo o tempo se firmou e a RAF e a Força Aérea Americana deram conta dos panzers alemães. Contudo, este atraso permitiu que o Exército Vermelho chegasse em Berlim primeiro, o que agravou o pânico dos nazistas que temiam se render aos soviéticos.

O desembarque da Normandia e, antes, a vitória dos soviéticos em Stalingrado são as efemérides mais importantes da Segunda Guerra Mundial, na Europa. Um conflito que custou a vida de 25 milhões de seres humanos e manteve a humanidade por mais 40 anos em pânico temendo que a loucura de generais americanos ou soviéticos pudessem acabar com toda a humanidade.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Uma luz de bom senso na Câmara dos Deputados

O SR. PRESIDENTE(Amauri Teixeira) - Segundo o art. 89 do Regimento Interno, Comunicações de Lideranças tem precedência na fala, o deputado Emiliano José pediu a precedência, pelo PT. S.Exa. dispõe de 10 minutos.
O SR. EMILIANO JOSÉ (PT. Como Líder. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, nos últimos dias uma onda crítica se levantou contra as políticas públicas do Ministério da Educação e contra o ministro Fernando Haddad, de modo particular, onda que seguramente beira a insensatez. O grau de politização que adquiriu o debate sobre o livro da coleção Viver, Aprender, da professora Heloísa Ramos, chega próximo ao absurdo. É efetivamente coisa de quem não quer sequer ler a obra ou apenas pretende pinçar partes para desenvolver a crítica. Isso vale para alguns parlamentares e para uma parte da nossa imprensa. Não quero dizer que seja um leitura desonesta; prefiro afirmar ser uma leitura desatenta.
Já ouvimos muitas manifestações enfáticas na crítica a esse livro dos defensores da norma culta da língua. Sugiro, convido, no entanto, a todos que acessem o portal do MEC, pois verão que vários integrantes da comunidade acadêmica brasileira também defendem com pertinência a postura do livro da ONG Ação Educativa, que, como explicaremos, não é contra a norma culta.
Outro convite que eu faço é que acessem o site da Ação Educativa e leiam o capítulo que tanta polêmica provocou.
Terão a oportunidade de constatar que, primeiro, o livro destina-se a estudantes do EJA — Educação de Jovens e Adultos — , ou seja, de alunos que, por qualquer razão, perderam o ciclo habitual e que buscam a escola com a formação peculiar da vida, com aquilo que a vida lhes ensinou. Segundo, ninguém está ensinando ninguém a falar ou escrever errado. Apenas se constata que, sim, há variação, como é óbvio, entre a linguagem oral e a norma culta. Tanto que no livro a professora propõe um exercício para a conversão da forma errada para a forma correta.
Trata-se, no livro, apenas de uma forma didática de tratar o confronto entre a forma de se falar e a de se escrever. Seria o caso de voltar a uma formulação antiga: A teoria é cinzenta, verde é a exuberante árvore da vida.
Quem quiser ler o livro verá que não há qualquer aconselhamento para que se desrespeite a norma culta ou estímulo para que ela seja contrariada. Apenas, insisto, se constata a diferença entre a fala de tantos brasileiros, a oralidade, e a norma culta.
Outra tentativa clara, Sr. Presidente, de atingir o Ministério da Educação e seu ministro é esta incompreensível ansiedade provocada pelo chamado kit anti-homofobia do Programa Escola sem Homofobia.
A origem de tudo é uma emenda Parlamentar da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que destinou 1,8 milhão de reais para um trabalho, cujo objetivo precípuo era formar professores de ensino médio para a discussão do comportamento de estudantes em relação àqueles que têm preferências sexuais diferentes da maioria.
Quero crer que ninguém seja favorável à violência. Era isso que o Ministério da Educação e as ONGs envolvidas na produção do kit queriam evitar. Evitar a violência. Educar para a paz, para a convivência solidária entre diferentes. Respeitar os diferentes, sempre.
Fez-se um tremendo escarcéu em cima do kit anti-homofobia. Tudo isso, na minha opinião, Sr. Presidente, é parte de uma onda direitista, e não há outra palavra possível, que cresceu desde a última campanha presidencial no Brasil, quando o candidato Serra cuidou de desenvolver ataques pesados contra a autonomia da mulher no Brasil. No caso do kit anti-homofobia, divulgou-se um material inapropriado e outro que sequer havia sido alvo de análise do próprio Ministério.
Esses equívocos, se foram equívocos, é o que fez gerar tanta celeuma e levou o ministro Fernando Haddad a se reunir com a bancada da Frente Parlamentar em Defesa da Família e esclarecer os objetivos da ação. O ministro chegou a convidar integrantes da bancada a participar da reunião do Comitê de Publicações do MEC que iria analisar e avaliar o material.
Não foi suficiente. O deputado Anthony Garotinho chegou ao absurdo de anunciar que o kit já havia chegado à Prefeitura de Campos, administrada por sua esposa, e que, diante da negativa em distribuir o material, ela teria sido ameaçada, deputado Assis, de não receber recursos do FUNDEB — as calúnias chegam a tanto. Essa afirmação, obviamente, não corresponde à verdade. Nunca o ministério ou ministro cometeriam tal indignidade. Não sei como o deputado Garotinho pôde dizer isso, não sei quem lhe passou essas inverdades.
Também é um absurdo culpar-se o ministro Fernando Haddad pelo vazamento dos vídeos pelo You Tube, como se o Ministério da Educação tivesse este poder. Queremos lembrar aqui que o ministro Haddad não esconde suas posições. Por isso, afirmou, de modo claro: Nós continuaremos nossa política de combate ao preconceito, combate a qualquer forma de preconceito.
Essa é uma posição de qualquer educador sério, posição que vigora em qualquer sociedade democrática, fundada em princípios da solidariedade, da fraternidade, da boa convivência entre as pessoas.
Quero dizer, Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sras. Deputadas, que devemos partir de uma base comum quanto a isso. Primeiro, todos reconhecemos que há preconceito nas escolas. Segundo, todos somos contra a violência e contra a homofobia. E, terceiro, que, por isso, trata-se apenas de uma questão de forma, não de conteúdo ou de necessidade. Estamos, imagino, todos unidos contra o preconceito, contra a violência, contra a homofobia. É necessário educar contra a homofobia. Educar a favor da diversidade.
Finalmente, alguns deputados e senadores estão inconformados porque alguns livros didáticos registraram o que todos já sabem. Que o presidente Lula saiu da Presidência da República com o maior indicador de aprovação da história do Brasil, ao contrário de seu antecessor, e ainda tendo elegido a sua sucessora. O que há de errado no fato de os livros registrarem isso? Nada. É da história, do ensino da história, e não há como contrariar a história.
O Programa Nacional do Livro Didático, como já foi explicado inúmeras vezes, é apolítico e impessoal. Não se consegue entender porque tanta indignação diante do fato de o Presidente Lula aparecer, como de fato é, como o maior presidente da nossa história, pelas políticas públicas que levou a cabo à frente da Presidência da República.
Destaco ainda que muitos dos livros de história publicados pelo MEC foram elaborados pela Editora Attica Cipione, do Grupo Abril, e não me consta que esse grupo, em algum momento, tenha revelado qualquer simpatia política pelo governo ou pela pessoa do presidente Lula. Os editores apenas não têm como negar a história.
Não consigo entender por que o ministro Fernando Haddad tem sido objeto de tantas críticas. Talvez tenhamos de lembrar aqui que a gestão do Ministério da Educação é uma das mais extraordinárias da história do Brasil, com o ministro Fernando Haddad à sua frente.
Os programas bem sucedidos das bolsas para estudantes pobres e negros do Brasil; a reformulação do financiamento estudantil; a valorização do professor; o piso salarial; a educação sendo levada a sério, longe da tentação privatista, tão forte, que existia no governo tucano; o crescimento do ensino tecnológico, cujos institutos cresceram em oito anos quase duas vezes o que havia crescido em um século; as 14 novas universidades federais; e o fato de as universidades terem dobrado o número de vagas. É importante lembrar tudo isso.
Sr. Presidente, é importante lembrar também, face a esses ataques, que não podemos esquecer a natureza laica do Estado. Nenhum Estado Democrático pode se submeter a qualquer religião. Deve respeitar todas as religiões, todas, e ao mesmo tempo ser um Estado laico que contempla os interesses das maiorias e não os interesses desta ou daquela religião, cuidando sempre de protegê-las e dar liberdade ao culto de cada uma dessas religiões.
O ministro Fernando Haddad vai continuar seu trabalho, sempre disposto ao diálogo, disposto a seguir o caminho não só da ampliação do acesso, como, agora, sobretudo, o de perseguir a qualidade da educação brasileira, com o objetivo, sempre, de continuar a caminhada rumo a uma sociedade cada vez mais igual, cada vez mais democrática, combatendo a miséria, elevando a cidadania, lutando contra o preconceito, a discriminação, a homofobia, que são tarefas de qualquer educador, além dos objetivos de uma nação que pretende ser um modelo de convivência entre os diferentes.
Vamos continuar com nosso trabalho. Com a melhoria permanente da educação, perseguindo esse objetivo, como vem fazendo o ministro Fernando Haddad e o Governo da Presidenta Dilma, nós seguiremos construindo uma Nação que não tenha medo de ser feliz, alegrando-se com suas diferenças e não fazendo delas motivo para tanto ódio. Vamos continuar construindo uma Nação de igualdade na diversidade, respeitando e valorizando a diversidade em todas as áreas da existência humana.
Muito obrigado, Sr. Presidente.




Quem é Emiliano José?

Professor aposentado da Faculdade de Comunicação (FACOM), da Universidade Federal da Bahia; Jornalista da Tribuna da Bahia, Jornal da Bahia, O Estado de São Paulo, O Globo, Alternativo Baiano Invasão, e revistas Afinal e Visão; Colaborador dos jornais Opinião e Movimento; Um dos fundadores do jornal Em Tempo; Atualmente , escreve artigos, resenhas e ensaios para a revista Caros Amigos, A Tarde e Carta Capital.



quarta-feira, 1 de junho de 2011

Vozes do Além

 
Transcrito da  IstoÉ número 1285 de 18 de maio de 1994 
Nascido na França, foi no Brasil que o espiritismo  conquistou o maior número de adeptos
 

Candomblé, umbanda, quimbanda, espiritismo, mediunismo, mediunidade, esoterismos, pentecostalismos, catolicismo, orientalismos de uma maneira geral, nenhum povo, como o brasileiro, gosta tanto de lidar com o sobrenatural, ou com o desconhecido. Não há uma família que não conheça pelo menos uma benzedeira, um padre mágico capaz, por exemplo, de desfazer um  quebranto (aquela horrível sensação de sonolência e torpor,  invariavelmente relacionada a  mau-olhado) ou um pai-de-santo. O brasileiro é, sobretudo, um crente.
Dados da FEB - Federação Espírita Brasileira - estimam que um quinto da população – cerca de 30 milhões de brasileiros – acredita nos atributos  da  alma, na  sobrevivência  do espírito e na comunicação entre os vivos e os mortos. Deste total, entretanto, apenas sete milhões são propriamente espíritas, ou seja: seguidores de Allan Kardec, o codificador da doutrina. Os números são surpreendentes, ainda mais quando relacionados com cerca de 5,6 mil associações espíritas em todo o país, apenas para citar as que são filiadas a FEB.  
Allan Kardec, na verdade Hippolyte Leon Denizard Rivail, um pedagogo nascido em Lyon, em 1804, discípulo de Pestalozzi, jamais saiu da Europa. Mas é em solo brasileiro que a sua doutrina – substanciada em três dos cinco livros que escreveu – é mais praticada e suas teorias têm o maior número de seguidores do mundo. A primeira tradução de um livro de Kardec para o português foi feita em 1875 por Joaquim Carlos Travassos. A FEB recebeu os direitos de tradução e publicação de toda a obra em 1897 e se transformou na maior editora espírita do mundo. Hoje são mais de
400 títulos em edição permanente. Alguns em inglês, francês, espanhol e esperanto. Apenas o Evangelho Segundo o Espiritismo já teve 109 edições, perfazendo um total de 2,65 milhões de exemplares. O Livro dos Espíritos, até 1992, teve mais de 72 edições, um total de 1,15 milhão de exemplares, enquanto que o Livro dos Médiuns teve 59 edições, somando 784 mil exemplares.
Kardec não é, entretanto, a única estrela da FEB. Um humilde funcionário público do Ministério da Agricultura, hoje aposentado, com 84 anos, Francisco Cândido Xavier tem mais de 80 títulos publicados, todos psicografados, quer dizer, ditados por espíritos desencarnados. Desde Parnaso além Túmulo, uma coletânea de poesias parnasianas publicada em 1931, Xavier nunca deixou de escrever. Até 1992, ele havia psicografado 59.2% de toda a literatura espírita deste século, juntamente com Waldo Vieira, mais 11,2%. Apenas um de seus livros, Nosso Lar, ditado pelo espírito desencarnado do médico André Luiz, e que relata a vida após a morte, vendeu mais de 880 mil exemplares em 40 edições – a primeira em 1944. Ao todo, ele supera os 12 milhões de exemplares vendidos apenas nos títulos publicados pela FEB.
Francisco Cândido Xavier - "Apenas Chico" - é considerado o mais perfeito médium da doutrina do mundo. Apesar disso, ele vive em uma casa simples na periferia da cidade mineira de Uberaba. Está doente. Sofre de angina. Recentemente, quebrou a perna e, desde então, deixou de frequentar o Centro Espírita da Prece. Lá, ele recebia centenas de pessoas, que vinham de todo o país, todos os sábados. 
Foi assim com Lisle Lucena, a ex-namorada do presidente Itamar Franco e primeira filha do presidente do Senado, Humberto Lucena. Ela foi a Uberaba com a irmã Iraê em busca de consolo. O sobrinho de Lisle, Renato, de dois anos, morrera afogado na piscina da casa de seu avô, em agosto de 1987.
Chico Xavier recebeu três mensagens que psicografou e cuja autoria se atribui a Renato. Numa delas, o menino conta que na vida espiritual está sob os cuidados da tetravó Carolina. "Para nós foi uma surpresa essa informação. Nem sequer lembrávamos do verdadeiro nome dela, conhecida apenas como vovó Quiquita", relata Lisle. 
Na mesma mensagem, Renato revela aos familiares como aconteceu o acidente. Tranquiliza o pai, Laerte, e o avô Humberto, dizendo que o ocorrido não havia sido provocado por ninguém. "Eu estava com muita sede e, vendo a piscina com tanta fartura de água, estirei-me na beira, na esperança de conseguir beber água com a minha própria boca. No esforço que fazia o corpo pesou muito e caí de ponta cabeça. Queria gritar, mas não consegui. Debati-me até que me apanhassem".
Com uma experiência tão pessoal com o espiritismo, Lisle aprofundou-se ainda mais nos ensinamentos de Allan Kardec. Passou a devorar todos os livros e depois presenteá-los. Ao presidente Itamar Franco, quando namoravam, deu o clássico Há 2.000 anos, cuja autoria se atribui ao espírito de Emmanuel. Trata-se de uma reflexão sobre o orgulho e a vaidade por meio da historia do senador romano Publio Lentulus, na verdade uma encarnação passada do próprio autor. 
Em outra mensagem de Renato, ele se refere ao namoro dos dois: "Quero dizer que também gosto muito da tia Lisle, junto daquele que chamarei por tio Itamar, e que estarei feliz se Jesus permitir que eles dois se unam em casamento". 
Toda a família Lucena acabou se convertendo ao espiritismo. Lisle, evidentemente, é a mais ativa. É assídua frequentadora da Comunhão Espírita cristã de Brasília e integra um grupo de cura, onde descobriu sua mediunidade, assunto do qual prefere não falar.
Hoje, Chico Xavier recebe apenas umas poucas pessoas em casa, depois de uma rigorosa triagem feita pelo seu filho adotivo, o dentista Eurípedes Higino dos Reis. Foi assim que as irmãs Juliana e Marta Plachi, ambas de Lajes, Santa Catarina, estiveram no início do mês com o médium, querendo informações sobre o paradeiro espiritual da outra irmã, Rita de Cássia, falecida em um acidente de ônibus na BR-116, Regis Bittencourt (São Paulo-Curitiba), em junho de 1993. Uma entre tantas consultas em que Xavier responde sempre com palavras de alento e segurança. A uma delas, entretanto, ele revelou que se prepara para, em breve, deixar este mundo. Questionado sobre a sua sucessão, limitou-se a dizer que não é tão importante que deva provocar este tipo de preocupação. Quanto a hegemonia na mediunidade brasileira, respondeu: "Isso é como capim em pasto. Seca um, nasce outro logo à frente".
A morte de Chico Xavier vai aguçar um debate muito grande no seio da própria doutrina. Afinal, raciocinam os espíritas, como a religião sobreviverá sem seu profeta maior? O presidente da FEB, Juvanir de Souza, ensina: "Cada grande médium vem com uma tarefa específica. Não há que se falar em sucessão".
Em Uberaba, entretanto, a ausência de Xavier pode representar o fim da "capital brasileira do espiritismo", como dizem ufânicos os radialistas locais. É claro que para eles a sucessão passa por um dos mais de 70 centros espíritas que existem na cidade e que, semanalmente, recebem a visita de centenas de pessoas, ansiosas por uma comunicação com o mundo do além. 
Para o comerciante Manoel Ivlarhns Chaves, de 77 anos, presidente do Centro Espírita Uberabense, fundado em 1911, Chico Xavier não terá sucessor. Ele atribui ao médium o que chama de impulso extraordinário no seio da doutrina, desde 1927, quando começaram  a circular as primeiras informações sobre a sua existência. “O espiritismo cresceu demais, por conta de sua influência“, diz.
Igual posição tem a também comerciante Sonia Maria Barsanti Santos, de 49 anos, uma das mais requisitadas companhias de Xavier. “Para nós espíritas ele é considerado o ponto máximo no espiritismo entre os encarnados'', diz ela. A adoração pelo médium transcende até os limites da religião. O arcebispo da cidade, dom Alexandre Gonçalves do Amaral, um pastor bastante linha-dura, tem se mostrado preocupado com o estado de saúde do médium. “Os pontos que nos separam são bem menores do que aqueles que nos unem”, costuma repetir.
O vereador e radialista Jesus Manzano, de 65 anos, já eleito por cinco mandatos, acredita que um dos dois mais notáveis discípulos de Xavier, Celso Afonso de Almeida ou Carlos Barceli, assumirá o lugar do velho médium. Com efeito, as dezenas de ônibus que chegam a Uberaba, em busca do Centro Espírita da Prece, são desviadas para os dois centros alternativos.
Barceli é um médium polêmico. Cometeu o erro de se indispor com o filho adotivo de Xavier, Higino dos Reis. A cidade se dividiu. Almeida, ao contrário, parece ter herdado do professor também o dom da humildade. Natural de Araxá, ele descobriu a mediunidade aos 23 anos, enquanto  participava de um culto do Evangelho. “Havia um caderno e um lápis. Puxei e comecei a escrever”, lembra. Com 51 anos de idade, ourives de profissão, Almeida compara Xavier com o rio Amazonas. “E nós somos seus afluentes”, diz. Quanto à possibilidade de ser o herdeiro do mestre, diz: “Não serei eu. Nesta encarnação, tudo o que eu almejo é me comparar com a unha do seu  pé”. 
Para inquietação dos idólatras de Xavier, entretanto, a liderança do movimento espírita no Brasil, pelo menos em termos mediúnicos, passara ao largo de Uberaba. Os espíritas mais convictos acreditam que esta responsabilidade cairá sobre o médium Divaldo Pereira Franco. Aos 67 anos, este baiano de Feira de Santana tomou-se um dos maiores pregadores do espiritismo.
Já viajou fazendo palestras pelos cinco continentes, em 47 países, e mais de 600 cidades. Condecorado em diversos países, foi o único a dissertar sobre a doutrina de Kardec da tribuna das Nações Unidas.
Famoso também pela obra social que desenvolve, desde 1952, em Salvador, através de creches, escolas e centros médicos e odontológicos, Pereira Franco já escreveu mais de 100 livros, a maioria psicografada, e já vendeu mais de quatro milhões de exemplares. Inquieto e intransigente na defesa da doutrina, ele não aceita sequer discutir a sucessão de Xavier. “Não se fala em substituir um santo’’, diz.
Mas, se Xavier se prepara para desencarnar, seu mentor espiritual, Emmanuel, se prepara para voltar a Terra. “Admitimos que ele estará regressando ao nosso meio de espíritos encarnados, no fim do presente século, provavelmente, na última década”, disse o médium, em entrevista em julho de 1971. Emmanuel já havia encamado como o senador romano Publio Lentulus e, mais tarde, como ninguém menos que o padre jesuíta Manuel da Nóbrega. Xavier psicografou pelo menos dois de seus grandes best sellers: A caminho da luz e Há 2.000 anos, cada um com mais de 150 mil exemplares vendidos.
Apesar da volumosa produção, Xavier doa todos os direitos autorais para entidades filantrópicas. “Não me pertencem”. Apesar disso, em 1944, Catharina Vergolino de Campos, viúva do escritor cearense Humberto de Campos (1886-1934), impetrou uma ação declaratória na 8ª Vara Cível do Rio de Janeiro contra a Federação Espírita Brasileira e o médium Francisco Cândido Xavier. Amparada por seus filhos Lourdes, Henrique e Humberto, todos titulares dos direitos autorais da obra literária do pai, sua viúva pedia que a justiça brasileira declarasse por sentença se a obra literária psicografada e atribuída a Humberto de Campos era ou não dele mesmo. Além disso, propunha uma solução para os direitos autorais da referida obra.
A justiça, é claro, saiu pela tangente. Considerou a ação uma mera consulta e arquivou o processo. Por conta dessa pendência judicial, o espírito de Humberto de Campos por várias vezes se comunicou por psicografia valendo-se do pseudônimo de Irmão X. Se a justiça preferiu a segurança da distância em uma ação declaratória em 1944, 41 anos depois o tribunal popular do júri de Campo Grande, ao contrário, absolveu um réu acusado de homicídio qualificado, baseado em um testemunho da vítima, psicografado pelo mesmo Chico Xavier. Foi em 1985, durante julgamento de um rapaz de nome João de Deus, acusado de assassinar sua esposa, Gleides, ex-Miss Campo Grande, no dia 1º de março de 1980.
O réu, assustado, durante o processo procurou auxílio espiritual em Uberaba. “De lá, voltou com duas mensagens psicografadas pelo médium Chico Xavier, cuja autoria se atribui à própria Gleides”, conta o seu advogado, Nelson Trad, hoje deputado federal e líder do PTB.
No mundo jurídico tal documento não tem nenhum valor. João de Deus foi pronunciado pelo juiz do júri de Campo Grande por homicídio simples. Trad recorreu e o processo, por sorteio, caiu nas mãos do desembargador Higa Nabukatsu para ser relatado ao Tribunal de Justiça. 
Nabukatsu é um kardecista convicto. Em seu despacho, considerou que as mensagens demonstravam claramente que o réu havia dado uma versão bastante coerente com os fatos. No máximo, ele poderia ser julgado por homicídio culposo.
No julgamento, diante do júri, Trad reconheceu que seus membros teriam o direito de desprezar os documentos. Mas não teriam como desconhecer a notoriedade dos poderes do médium. "Se fosse uma mistificação, caberia ao Ministério Público prová-la", explica o deputado mato-grossense-do-sul. 
O júri absolveu João de Deus por sete votos a zero, reconhecendo que o fato foi atípico, jurídico e sem autoria. O promotor Aldo Bastos, também espírita, apesar da sentença, recorreu. Um novo júri acatou a tese da imperícia e condenou João de Deus a um mês de prisão. 
 
Nelson Trad não é espírita. Diz professar a fé católica apostólica romana. Mas, ressalva: “Eu me convenci mesmo da autoria das cartas. Passei a acreditar na reencarnação, na vida após a morte e na comunicação dos espíritos”. João de Deus desde então dedica-se à caridade e trabalha em um hospital psiquiátrico espírita, onde ele se refugiou logo após a morte de sua esposa.
Trad não é o único político a acreditar na reencarnação. O senador Mario Covas, do PSDB de São Paulo, se define como espiritualista cristão. E faz questão de manter esta distinção: "Não sou kardecista". 
Covas sempre frequentou um centro de umbanda em Santos. Na passagem do ano de 1975 para 1976, sua filha Silvia, de 19 anos, foi vítima de um acidente e veio a falecer. Desconsolado, além de tudo vivendo um momento difícil em que estava cassado pelo regime militar, Covas acabou procurando o médium Chico Xavier, que visitava a cidade de Santos, em 1976. O encontro no Ginásio de Esportes de Santos, juntamente com outras famílias, e a comunicação com a filha perdida confortaram a ele e a sua esposa, Lila. “Xavier é um apóstolo, uma torrente de ternura”, diz ele. Até hoje, entretanto, a família Covas não comemora a passagem de ano.
É raro algum político assumir publicamente que professa o espiritismo, apesar da inegável força eleitoral que os adeptos e simpatizantes da doutrina constituem. Na Câmara dos Deputados há apenas o registro de dois grandes parlamentares, ambos paulistas; o deputado Campos Vergal, ainda na década de 50, e o deputado Freitas Nobre, desaparecido em 19 de novembro de 1990. Hoje, apenas o deputado Maurici Mariano (PMDB-SP) se diz seguidor da doutrina de Kardec. “O espírita, ao contrário dos evangélicos, não usa a religião em função da política”, explica.
Mariano tem razão. O rigor crítico dos espíritas não permitiria que alguém se elegesse deputado apenas por professar aquela religião. “Mas não estou só”, diz o deputado paulista, ex-prefeito da cidade de Guarujá. “Vários parlamentares têm me inquirido sobre a doutrina e  alguns deles, como Mendes Ribeiro (PMDB-RS) e Carlos Luppi (PDT-RJ), com muita simpatia”.  
Maurici Mariano diz ter ouvido de Chico Xavier um apelo aos confrades brasileiros. “Está na hora de os espíritas brasileiros assumirem posturas doutrinárias no exercício de suas responsabilidades”, teria dito o médium. Isso, na prática, pode significar uma mudança de postura da doutrina de Kardec em relação à realidade. Vale dizer que o Brasil pode no futuro se tornar a maior nação espírita assumida do mundo.