sexta-feira, 29 de julho de 2011

Histórias do Sul do Mundo -- 1

A pujante e progressista Guarapuava: meio caminho entre Curitiba e Foz



Como isso tudo começou? Sei lá talvez no Julio César, de William Sheakespeare, na célebre oração de Marco Antônio, ou no prólogo de Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, a ópera predileta do meu pai e do saudoso amigo Mário Garófalo. O certo é que lá fui eu, pilotando uma velha Variant amarela pela Rodovia Régis Bittencourt, em direção a um porto seguro.
Exílio? Não. Muito chique. Fuga mesmo.
Ainda me lembro do velho Agostinho, ascensorista do Estadão desde que inventaram o elevador, me dando a dica salvadora.
- Não desce aqui não que estão atrás de você.
Naqueles tempos, uma dica como esta poderia ser a diferença entre existir e não existir. Entre liberdade e cárcere.
O tempo passou numa velocidade impressionante. Foi tão rápido que em minutos eu estava na estrada com os poucos pertences que tinha. A estrada era pouco mais do que uma pista inglesa, sem acostamento ou sinalização, toda ela cheia de caminhões de todos os tipos. Mesmo assim, era difícil me concentrar no percurso.
Cada vez que passava por um posto da Polícia Rodoviária Federal, minha respiração me denunciava. A velha Variant engasgava aqui e ali, mas subia com força e descia com embalo.
Levei 10 horas para chegar a Curitiba. Logo achei o endereço que me abrigaria. Um simpático sobrado numa esquina charmosa, onde um pequeno curso d’água era margeado por salgueiros.
A primeira noite foi um sufoco. Eu ouvia a catraca do semáforo. Trac.Trac. Ou voltava para a estrada e revia cada um dos muitos sustos que passara ou pensava nos amigos que haviam caído e que sabe deus o que estavam passando.
O frio do clima em Curitiba não é a coisa mais gelada da cidade. No primeiro domingo, fui com um compadre literalmente tomar sol na Rua XV, a Rua das Flores. Uma polaca lindíssima passou por nós. Meu amigo, um Don Juan perdido, correu na frente dela. Parou numa barraca, comprou uma rosa e ficou esperando por ela, com a flor e um sorriso. A moça chamou a polícia e nós saímos correndo pela Praça Tiradentes.
Hoje é engraçado. Na época foi dramático.
Aos poucos, entretanto, o velho sótão, que eu repartia com outro foragido, ganhou ares de La Boheme. As dificuldades tornaram-se poéticas e até o frio, que me fazia bater os dentes, passou a ser comum. Nada que um suéter não resolvesse.
A vida era muito difícil. Cansei de roubar sopa de saco no supermercado. E por mais de uma vez assaltamos a comida do cachorro do vizinho. Era uma ação complicada. Um de nós segurava o cachorro e o outro separava os nacos de costela de boi, que depois seriam refogadas e servidas como um manjar. Pobre cachorro!
Outra das minhas peraltices consistia em roubar a gasolina do Fusca do velho que morava em frente e deixava o carro dormir na rua. Tínhamos a manha de abrir o capô do carro e bombar a gasolina com uma mangueira. O velho nunca suspeitou. Só reclamava que o carro dele bebia demais.
Uma manhã, soubemos que havíamos ganhado a incumbência de promover a inauguração de um hotel, cinco estrelas, na cidade de Guarapuava, a meio caminho entre Curitiba e Foz do Iguaçu. Criamos os anúncios, a mídia, produzimos tudo e planejamos a inauguração com a presença do governador e de altas autoridades civis, militares e eclesiásticas.
O dono da agência, meio sem jeito, afinal éramos todos meninos, sem malícia, me chamou para uma conversa reservada. Queria me dizer que eu deveria selecionar quatro moçoilas para funcionar como hostess no dia da inauguração.
E lá fui eu, ingênuo como um pato, a uma agência de modelos que funcionava no Alto da Glória.
Me recebeu uma deusa negra. Olhos enormes. Cabelos lisos, negros e brilhantes. Me senti mal folheando os catálogos. Que situação! E qual critério? Juntar sujeito, predicado e complemento seria pedir demais?
Enfim, decidi escolher uma morena, uma loira e uma ruiva.
- Mas, você não quer quatro? – me perguntou a deusa negra.
- A quarta é você, meu anjo.
Cantadinha ordinária, reconheço. Mas, por alguma razão maravilhosa, deu certo. A moça, que se chama Anita, ficou toda-toda.
A inauguração foi um sucesso. As moças, as três, dormiram rigorosamente acompanhadas naquela noite. Eu e  Anita dormimos sós. Eu pensei nela. Não sei se ela pensou em mim. Hoje acredito que sim. Na época, não acreditava nada.
Anita foi uma das minhas melhores amigas. Uma mulher que se revelaria extraordinária. Ensinou-me muito. Deu-me muito amor e carinho. Neste episódio a gente só começou a rascunhar uma relação que jamais se extinguiria. Hoje não sei mais dela. Evaporou-se em um casamento no Rio. Às vezes me surpreendo pensando nela.
Acho que o mais íntimo que chegamos foi um beijo, certa madrugada...
Mas, esta é uma história que eu conto em outro post.

domingo, 24 de julho de 2011

De volta a um passado brilhante!

Marion Cotillard (Adriana) e Owen Wilson (Gil): passeio por um tempo que já não existe



Calma! Calma! Continuo achando que não tenho QI suficiente para entender Woody Allen. Mais que isso. Também acho que ele é antes de tudo um chato, intérprete pentelho das neuroses da classe média americana, que se arrasta e se arrasta tentando provar o que nós já sabemos. Guardadas as devidas proporções, nada pode ser mais confuso, arrogante e pão com alface do que a sociedade americana. Mas, e sempre tem um mas, Meia Noite em Paris me divertiu muito ontem. Adorei o filme e me surpreendi rindo horas depois de ter saído do cinema com boas tiradas, situações inusitadas em torno de personagens que habitam o meu inconsciente e o retrato de dois períodos históricos parisienses que me atraem fortemente: a Belle Epoque (início do século XX) e os anos dourados (anos 30).
A reflexão sobre o conteúdo do filme me levou a um pensamento formulado pelo meu amigo e irmão, Luiz Massonetto: “ Nós vivemos no século XX. Temos saudades da época e dos valores que nos formaram”.
Bingo Luigi. Isso explica porque temos tanta dificuldade em assimilar os novos valores da nova geração. Não dá para entender, por exemplo, porque um cara com mais de 30 anos fica, confortavelmente, instalado embaixo da saia da mãe, quando nós com 19, queríamos a aventura da solidão e da mochila com estrada. Fica difícil entender porque nossos meninos hoje desprezam o romantismo da nossa geração e se entregam sem nenhuma referência a um parco momento de prazer. Efêmero diga-se, porque tão rápido e tão veloz que se desfaz num clic de computador ou de I-Phone, I-Pad, ou seja lá o que for.
E aí, para onde vamos? O futuro é obscuro (lá vai o meu pessimismo) e o passado, que nós vivemos plenamente, é rico, romântico e gostoso.
Allen toca no assunto com sua proverbial prolixia. Explica, explica e explica. Tudo para justificar que um medíocre escritor de roteiros de Hollywood sonhava com a Paris da geração perdida, até que por uma magia qualquer, embarca em um Peugeot 1929 e desembarca no passado. E aí conhece Hemingway (maravilhoso, perfeito, genial, interpretado por Corey Stoll), Picasso, Gertrude Stein, Scott e Zelda Fitzgerald, Cole Potter, Luís Buñuel, entre outros. Apaixona-se e se surpreende em saber que Adriana de Van (interpretada por uma sensacional Marion Cotillard) havia sido amante de um italiano judeu, um pouco confuso, mas genial (Modigliani) antes de trocá-lo por Pablo Picasso.


Corey Stoll como Hemingway: perfeição na inquietude
Assim como Gil sonhava com os anos 30, Adriana sonhava com a Belle Epoque. E lá vão eles a bordo de um coche para a frente do Maxim’s em 1890. E depois para o Moulin Rouge onde encontram Toulouse-Lautrec, que os apresentam a Degas e Gauguin (sensacional o detalhe de que Gauguin é o único que fala inglês). Mas, é Degas quem sentencia: “Este é um tempo de mediocridade. Bom mesmo era o Renascimento”.
Fantásticas as participações de Kathy Bates como Gertrude Stein e Adrien Brody como Salvador Dali. Genial a sacada quando Gil deixa Hemingway esperando no café e vai ao hotel Bristol buscar os originais de seu romance e quando volta, já nos tempos atuais, encontra o local transformado em uma lavanderia. Precisava dizer mais?
Owen Wilson interpreta o próprio Allen. Fala, fala, fala e enche o saco. Como o próprio diretor faria. Neste sentido, está perfeito. Carla Bruni faz uma notável guia turística que fala do triângulo Rodin, a esposa, e Camille.
Muita gente que viu o filme exprimiu um “ble”, que é a linguagem atual para quem não entendeu nada. Apesar da prolixidade e de uma centena de explicações, o filme requer mesmo um mínimo de conhecimento histórico. As citações são múltiplas e engraçadas. Quem não conhece Josephine Baker, Djuna Barnes, T.S.Elliot, Luís Buñuel ou Matisse vai dançar. Nada que uma wikipedia ou um google não resolva. Saber mais, talvez seja um sentimento “old fashioned” que ainda inunda a minha alma, mas eu vivo no século XX, um tempo onde estas criaturas eram poderosas por duas razões: queriam viver e mudar o mundo. Só isso. Coisa mais antiga impossível!

sábado, 23 de julho de 2011

Lembranças de El Reloj


Lavalle: a calle que não dorme, cenário de muitas lembranças




A sensação de vazio e de frustração perpassou meu coração naquela madrugada fria de Buenos Aires. O vento que vinha do Prata, gelado, inundava minhas narinas e entorpecia o meu rosto. Eu caminhava pelas ruas de San Telmo, sem destino, iluminado apenas pelo reflexo da lua nos paralelepípedos úmidos. Não sei de onde eu vinha, mas também não sabia para onde eu ia. As luzes distantes do centro eternamente vivo pareciam um convite  ao esquecimento e, enfim, já tomado pelo frisson da calle que não dorme, entrei na Confeitaria El Reloj, sentei-me a uma mesa discreta, pedi um Remy e passei a sorve-lo junto com as lembranças de um sonho, ao som de uma caixa de música, onde Gardel ainda parecia viver com toda a energia.
Os rostos pareciam desfigurados nas mesas ao lado. Aqui e ali, já notava que as meninas da Corrientes estavam com ar decomposto de quem havia encerrado o expediente. Ainda restavam alguns personagens dos teatros, que algumas horas antes haviam incorporado e dado vida aos sonhos e as frustrações das plateias. Um menino entrou no salão oferecendo a quinta de La Razon.

Típica confiteria portenha: glamour de um tempo passado

O Remy corretamente servido aqueceu no calor das minhas mãos e ao percorrer a minha garganta me trouxe  a saudade de Cinthia. Foi como se meus olhos pudessem recriá-la à minha frente. Ela gostava que eu a chamasse de pequena, mas não me parecia pequena, não era do tipo mignon. Talvez porque quase sempre usasse sapatos com saltos ou talvez porque para mim ela parecia capaz de me envolver. Elegante sim. Mas, sempre com roupas simples, de algum outlet, ou da liquidação da Once. 
E ainda assim seu poder de sedução era irresistível.
Seus cabelos castanhos bem cuidados passavam pelos ombros, mas compunham com charme o rosto comprido, onde os lábios finos marcados por batom eram apenas um traço e os olhos azuis pareciam dois faróis em alto mar a iluminar e conduzir um navegante perdido.
O som de uma discussão entre um casal na mesa ao lado quebrou o encanto da visão da minha saudade.
- Não. Não. Não. Sempre não. Você só me diz não – dizia uma jovem cuja voz mostrava o tom da alteração e da confusão da sua alma. Me chamou atenção a firmeza da jovem, que parecia cruel diante dos olhos suplicantes do amante ou ex-amante. Entre eles, claro, havia um abismo. Para ela sorria o futuro. Para ele, podia-se notar o fim de uma ilusão que se resumia em toda a vida.
A caixa de som trocou Gardel por Goyaneche e o salão se aquietou. Como se todos reverenciassem la garganta de arena recitando Como dos extraños. Pedi mais um Remy e tentei projetar Cinthia de novo, e a minha mente viajou no passado. Diante de mim, sua boca me dizia que acabara. Não existia mais romance. Nossas vidas iriam se separar. Seus olhos encharcados, entretanto, me diziam outra coisa. Me suplicavam para romper com aquela realidade, para evitar que aquilo acontecesse. Era como se eu ouvisse:
- Faça parar. Não deixe acontecer.
Mas, suas palavras, ao contrário, eram frias e duras.
- Você não faz mais sentido. Vou retomar a minha vida com Rodolfo.

Plaza San Martin: desenlace triste de uma paixão
As folhas da Plaza San Martin ainda se alvoroçaram enquanto eu acompanhava o seu caminhar elegante, o seu corpo esguio e suas pernas vigorosas que a levavam para longe de mim. Quando ela desceu as escadas do Metro, era como se um capítulo da minha vida se encerrasse. Era como se a vida não fizesse mais sentido. O absurdo inundara tudo como um tsunami irresistível. As árvores se distorceram, a visão da Plaza Retiro ficou borrada como um quadro impressionista.
A angústia da lembrança me traz de volta para o Remy. Um suor frio percorre a minha fronte e o som de talheres, pratos e bandejas me devolve a voz de arena, que ainda recita
- Destrozo mi corazón!
Virei o resto do Remy e pedi outro ao garçom. O salão ficou quente. Na mesa à minha frente, um casal se entreolhava apaixonado. A caixa de som começou a tocar Ausencia, na voz de Amelita Baltar. Alguém entrou e uma lufada de vento frio fez balançar a cortina encardida da confiteria e perpassou as mesas.
Uma destas mensagens de informação automática me desperta do torpor. Me vem a lembrança a primeira noite, numa cidade qualquer, eu e Cinthia separados em quartos diferentes de um hotel medíocre de La Pampa. Era impossível superar a barreira,  ela estava dividindo um apartamento e eu, enlouquecido, chegava a sentir o seu perfume doce. Trocamos mensagens de desejo e de amor pelo celular. Queríamos nos tocar, colocávamos a mão contra a parede, chegamos a sentir a respiração um do outro.
Finalmente chegou a nossa vez. A primeira. Era dia de seu aniversário, um final de verão ainda quente, em um balneário uruguaio. A janela estava aberta quando bati a porta. O meu coração quase saia pela boca de ansiedade. A negligee negra cobria seu corpo e a fazia ainda mais elegante. Os cabelos propositadamente desajeitados caiam pelas costas quando eu a abracei e beijei sua boca. Senti o seu corpo perfeito colado ao meu e o toque de seus dedos nas minhas costas.
Nunca uma mulher havia me tomado daquele jeito. Era como se nossos corpos fossem superados e nossas almas se colassem.
O cognac fazia efeito e eu já sentia calor suficiente para tirar o cachecol e abrir a camisa. Bebi o resto e pedi a conta. O garçom não me dirigiu a palavra. Típico. Ainda me olhou por cima, como se quisesse me avaliar a existência. Saí pela calle Tucuman, os primeiros raios de sol me atingiram as costas. A cidade que não dorme iniciava outro dia. E eu também.

Cuando tu no estas!

Clique aqui para ouvir uma linda canção neste fim de semana.


Gardel e Le Pera, que impressionante! Prestem atenção na entonação de Gardel, perfeita nos versos de Le Pera. Como dizem os argentinos, "ojo", não é um tango. É uma valsa. Foi gravada em 1932, em Paris.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A musa do João. Uma mulata qualquer coisa.



Esmeralda, musa da Vai Vai: olhou direto nos olhos de João e mudou de escola



João. João de qualquer coisa. Trabalhava como estafeta em um banco da rua XV de Novembro, muito embora já tivesse passado dos 30. Na verdade, o tempo era uma tortura para ele.  Todos os dias cronometrava rigorosamente o percurso do Metro, da estação da Vila Matilde até a praça da Sé. O tempo em que percorria alguns metros no meio da multidão. O tempo que o elevador demorava e orgulhava-se de chegar à repartição sempre antes dos mais jovens.
O tempo passava e João continuava sempre no mesmo emprego. Levando e trazendo documentos, acudindo as necessidades básicas da chefia.
- João vai buscar um café para mim.
Ou melhor:
- João vá até o Caixa e traga o dinheiro que sacamos.
João era correto. Corretíssimo. Uma vez recusou participar da divisão de um bolo conquistado com a valorização espontânea de algumas ações não contabilizadas. Imaginou que era um dinheiro estranho e por isso preferiu ficar de fora.
Aliás, dinheiro não fazia falta a João. Ele não sonhava com ter seu carro próprio e sentia-se confortável vivendo com a mãe na casa de um comodo no fundo de um sobrado na Zona Leste. Para ele, o que contava era o conforto e a tranquilidade. Ralou muito para comprar a televisão digital, tela plana, onde ficava o final de semana todo à espera da exibição das bailarinas dos programas de auditório.
João não tinha amigos. Não tinha passado. Não tinha futuro. Adorava carnaval, mas não tinha coragem sequer de se misturar com a turma do seo  Nene, da azul e branca de Vila Matilde. Preferia passar a madrugada vendo pela tevê e se excitava ao ver as cabrochas das escolas de samba rebolando pelo asfalto. As vezes, quando a mãe se entregava ao sono, ele se satisfazia em meio a uma fantasia.
Foi num destes carnavais que João foi tomado por um destes sonhos que ele nunca soube explicar nem para ele mesmo. Era a madrugada de sexta-feira, a Vai-Vai se esparramava pelo sambódromo, quando ele percebeu que uma das suas passistas, olhava detidamente para ele.
Como assim? Exatamente isso. João estava convencido que a passista olhava para a câmara de televisão, mas na verdade queria olhar seus olhos.
João foi tomado por um sentimento de euforia muito grande. Era como se a passista se exibisse apenas para seus olhos. E ele viajou nas formas perfeitas da passista. Os quadris generosos, as coxas fortes, as pernas longas, os seios fartos, os lábios carnudos, os cabelos negros encaracolados e os olhos cor de mel.
João nunca mais tirou a imagem da passista de sua mente. Viajava com ela no metro, passava o dia se imaginando ao lado dela.
Passou a ser repreendido no trabalho:
- João acorda, você derramou o café.
Ou ainda pior:
- João porra, porque você não pegou a assinatura no cheque?
O tempo inclemente foi se arrastando e João sempre com a imagem da passista, decidiu que iria até a quadra da Vai-Vai, no Bixiga, nem que fosse apenas para quem sabe conhecer a musa de seus sonhos.
Numa noite ficou atrás de uma coluna a noite toda, quando a musa de ébano chegou. Vestida com uma saia muito curta que revelava os contornos de suas coxas e os seios expostos em uma frente única que parecia fazê-los ainda maiores. João fixou em êxtase. Mas, seu sentimento de euforia acabou quando percebeu que a passista, cujo nome era Esmeralda, provocava a libido de muita gente na escola de samba. E ela vivia cercada por outros integrantes da escola.
João preferiu recolher-se. Guardou para si mesmo a imagem que tinha dos olhos da passista brilhando para ele no desfile do ano passado, pela TV. A visão real de Esmeralda havia derrubado seu sonho. Ele jamais poderia chegar até ela. Era impossível.
O tempo continuou se arrastando. João ficou perturbado no desfile daquele ano. Ficou com os olhos grudados na TV, mas não identificou Esmeralda.
Aos poucos a lembrança daquela musa foi se esvaindo de sua cabeça. Ele perdera uma promoção no banco. Mas, isso não era importante. Continuava como estafeta, apesar da idade. Trocou a televisão. Comprou uma nova.
Em um sábado, como todos os sábados, João acordou e sentou-se na porta do cômodo nos fundos da casa onde morava com a mãe, olhava as nuvens e guardava o tempo passar, quando a vizinha tomou coragem.
- Seo João, o senhor fica ai parado. Por que não vai na quadra do seo Nene, tem uma feijoada lá e eu tenho um ingresso aqui que não vou usar.
João pensou em um primeiro momento em recusar. Mas, que mal haveria em comer uma feijoada discretamente ainda que ninguém percebesse a sua presença?
Vestiu uma bermuda velha, na verdade uma velha calça jeans que a mãe havia transformado. Uma camiseta branca, sandálias de dedo e se misturou no meio do povo que eufórico se acotovelava para comer a feijoada.
Seo Nene fazia a feijoada para arrecadar fundos complementares para ajudar no desfile. Toda a Zona Leste parecia estar na quadra naquela manhã de sábado.
João tomou a primeira cachaça misturada com o caldinho do feijão. Depois tomou a segunda pura. E a terceira. Finalmente pegou um prato fundo. Colocou muita carne, gorda, orelha, rabo, paio e costela. Farinha de mandioca, pimenta, arroz, couve rasgada, laranja e ainda uma bistequinha bem frita. Repetiu mais de uma vez. Tinha adoração por feijoada. E derramava a branquinha entre um prato e outro.
Comia com tal voracidade que no terceiro prato, quando enfim decidiu sentar-se em uma mesa de tábuas improvisada, chamou a atenção.
Ficou horrorizado quando percebeu que provocava sorrisos e curiosidade. Logo ele, estafeta de um banco na rua XV de Novembro, mesmo que já tivesse passado dos 30.
Sentiu-se incomodado. Também porque depois de comer por três vezes toda aquela feijoada, ainda mais regada a cachaça, sentiu um peso muito forte.
Eis que Esmeralda adentra a quadra. Por que? Ora porque em uma fantasia as coisas acontecem sem razão de ser.
E desfilava sobre uma sandália alta que lhe fazia parecer ainda mais alta do que era. Usava um vestido azul, curto e justo, com um decote de tal forma generoso que à sua entrada fez-se um silencio mortal.
João imaginou que estava delirando. Seria efeito da cachaça? Da feijoada? Ou dos dois? Sentiu um tremendo mal estar. Mas, Esmeralda seguiu em sua direção, sentou-se ao seu lado. Mostrou seus dentes alvos em um sorriso, debruçou-se sobre João como a lhe mostrar a fartura dos seios e disse:
- Hoje é o seu dia João. Estou aqui para você. Quero que você me tenha do jeito que quiser!
João levantou-se cambaleante, esticou elegantemente o braço para Esmeralda e saíram abraçados.
Na segunda-feira, João, o estafeta de mais de 30 anos de um banco na rua XV de Novembro não foi trabalhar. Mas, ninguém percebeu. Nem ninguém percebeu que ele não pegara o metro, sempre a mesma hora. E muito menos que cronometara com rigor o percurso que caminhava a partir da Estação da Sé.
João nunca mais foi visto.
Esmeralda naquele ano saiu de madrinha da bateria da escola. Trocou a Vai-Vai pela Nene da Vila Matilde.
João? João de qualquer coisa? Nunca ouviu falar. 

domingo, 17 de julho de 2011

Que saudade de Havana!



Dos Gardenias



Dos gardenias para ti
Con ellas quiero decir:
Te quiero, te adoro, mi vida
Ponles toda tu atención
Que seran tu corazón y el mio
Dos gardenias para ti
Que tendrán todo el calor de un beso
De esos besos que te dí
Y que jamás te encontrarán
En el calor de otro querer
A tu lado vivirán y se hablarán
Como cuando estás conmigo
Y hasta creerán que se diran:
Te quiero.
Pero si un atardecer
Las gardenias de mi amor se mueren
Es porque han adivinado
Que tu amor me ha traicionado
Porque existe otro querer.


quarta-feira, 13 de julho de 2011

Saudades da badalação justa

Dimitri Berlinsky: jovem violinista russo tocou em Brasília sem nenhuma badalação



Viver em Brasília tem suas vantagens. A maior delas é a distância do caos urbano que se instalou na maioria das capitais brasileiras. Também há que se falar sempre da qualidade de vida, pelo menos em termos de Plano Piloto. Mas, quando a coisa se traduz em vida cultural, a cidade mergulha em um caipirismo assustador.
Na noite de terça-feira, a CAPES promoveu um concerto comemorativo dos 60 anos de sua existência, com a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. Nenhuma linha nos jornais locais sobre o programa, o solista, o regente, nada.
E aí vem a surpresa. O solista foi ninguém menos do que Dimitri Berlinsky, um violinista russo, considerado um dos cinco melhores arcos da atualidade. Não é toda hora que se tem o privilégio de ouvir um músico desta envergadura. E aí para uma platéia – como de hábito misto de melômanos abandonados e neófitos empedernidos --- estupefata, o rapaz deu um show como poucas vezes eu tive oportunidade de ver. Sua performance no Concerto em Mi Menor de Mendelssohn foi impressionante e a sensibilidade com que ele enfrentou o Concerto em Sol Menor de Max Bruch me fez cair o queixo.
Marcelo Ramos um dos bons expoentes da nova geração de regentes brasileiros, atualmente estudando em Cleveland, soube dar o equilíbrio e a leitura perfeita nas duas peças e ainda brilhou na condução da 7ª. Sinfonia de Dvorak. Ordenhou uma pedra, mas o resultado foi excelente, principalmente no Scherzo do compositor tcheco.
Meu amigo e irmão Luis Massonetto que nesta altura do campeonato está em Buenos Aires tem dito que somos todos saudosistas do século XX. Acho que ele tem razão. Eu pelo menos acho que tanto Berlinsky como Ramos mereciam um tiquinho a mais de badalação, como seria no século passado.

sábado, 2 de julho de 2011

Quando os sinos dobraram pela última vez

Cenário cubano para O Velho e o Mar: inspiração máxima de Hemngway



Cinquenta anos, exatamente hoje, da morte de um dos personagens mais atraentes e invejados no século XX: Ernest Hemingway. Um deus na arte de juntar palavras, prêmio Pullitzer em 1953 e Nobel de Literatura em 1954. Jornalista e aventureiro  viveu entre os grandes com humildade e respeito, tornou-se ele também um dos maiores. Certamente o principal expoente da geração perdida.
O que mais me fascina em Hemingway é o desprendimento. Amou e foi amado. Compreendeu e nem sempre foi compreendido. Era obcecado pelo gosto da romã. Era expansivo, exagerado, mas tornava-se cirúrgico quando empunhava a velha Remington.
Aos 18 anos, mal havia acabado o ensino médio, Ernest largou a sua Oak Park (Illinois-USA) natal e tentou ingressar nas forcas expedicionárias americanas que aderiram a I Guerra Mundial. Não passou no teste oftálmico e tornou-se motorista de ambulância da Cruz Vermelha no front italiano do Friulli. Apaixonou-se perdidamente por Agnes von Kurowsky e testemunhou a famosa retirada de Trieste, o violento contra-ataque austríaco, do qual o meu pai também participou.
Oak Park não lhe cabia mais depois da experiência na Itália. Em 1929 escreveu Adeus as Armas, um romance doce, maravilhoso. Agnes transformou-se na enfermeira inglesa Catherine Barkley, até onde me lembro ele foi vivida por Jennifer Jones, Ava Gardner (como lembrança em As Neves do Kilimanjaro) e pela meiga Helen Hayes.

Hemingway na Espanha: lutou não só com as palavras


Mas, Hemingway iria se apaixonar mais pela Espanha do que pela Itália. Se entusiasmou tanto com as touradas que se tornou um toureiro amador, em Pamplona, de onde extraiu O Sol Também se Levanta (1926). Esta paixão iria leva-lo ao entusiasmo incontido com a Guerra Civil em 1937. Como correspondente da North American Newspaper Alliance juntou-se as forças republicanas e lutou não só com as palavras. Esta experiência resultou num romance maravilhoso Por quem os Sinos Dobram, cuja versão cinematográfica traz a estonteante Ingrid Bergmann no papel da jovem Maria.
As mulheres são arquétipos fundamentais na vida de Hemingway ( dele também viu Lúcia Helena?). O primeiro casamento em 1921 com Elizabeth Richardson o levou a Paris nos estertores da Belle Epoque, onde ele se tornou amigo de Ezra Pound, Scott Fitzgerald e Gertrude Stein e se integrou ao frisson cultural europeu do pós-guerra. Era correspondente do Toronto Star Weekly.
De volta aos Estados Unidos casou-se de novo com Pauline Pfeiffer, uma importante jornalista de moda, com quem se instalou na pacata e paradisíaca Key West, na Flórida. Claro que não havia como dar certo.
Nos anos 30, mudou-se para Havana onde viveu por 23 anos em um apartamento do Hotel Ambos os Mundos, em Havana La Vieja (o bairro histórico da capital cubana). Totalmente preservado, tive o prazer de conhecer o apartamento em 2005, quando estive por lá. Arrepiante, até porque vi a velha Remington e a janela por onde ele divagava e de onde ele viu O Velho e o Mar, na minha opinião o melhor de seus romances.  No cinema, serviu de papel para o grande Spencer Tracy, seguramente na sua maior performance.
Em Havana, Hemingway apaixonou-se por Jane Mason, esposa do diretor de operações de Pan American, tornaram-se amantes. Além disso, empreendeu uma viagem etílica de respeito. A ele se deve a consagração de coquetéis famosos como o Mojito e o Daiquiri.

Destemida: Martha Gelhorn engajou Hemingway na Guerra Civil



Em 1936, a paixão por Jane arrefeceu quando ele conheceu a destemida jornalista Martha Gelhorn, com quem partilhou a cobertura da Guerra Civil na Espanha e com quem voltou para Cuba, em 1939, quando a Europa se preparava para a desgraça da Segunda Guerra Mundial.
Em 1946, Hemingway finalmente conheceu aquela que iria funcionar como um anjo na sua vida. A também jornalista Mary Welsh, que conseguiu compreender a essência de sua existência e ficou com ele até o desfecho final. Naquele desgraçado  2 de julho de 1961, quando ele atirou contra a própria cabeça com um rifle de caça.
Para não terminar este post assim tão para baixo, vale a pena lembrar um episódio que ocorreu no Maxim’s em Paris, nos anos 20, que ele gostava muito de contar. Estavam todos reunidos bebendo e comendo do bom e do melhor, quando finalmente chegou a conta e os valores transcendiam qualquer possibilidade de pagamento. Foi uma confusão danada e um enorme exercício de imaginação para sair da enrascada, quando o maitre retornou e acalmou a todos dizendo que “aquele” senhor havia pago a despesa. Na verdade, era Pablo Picasso. Ele divertiu-se muito com o sofrimento dos jovens. Desenhou alguma coisa no guardanapo e deu para o maitre, que ainda argumentou:
- O senhor não vai assinar?
- Não. Quero apenas pagar a conta dos rapazes, não comprar o estabelecimento.
Ernest Hemingway é um homem que viveu com intensidade a sua vida. Sofreu por amor. Vibrou por amor. Engajou-se nas causas justas. Merece a admiração de todos.