domingo, 28 de agosto de 2011

As grandes lições do mestre Mino Carta

A maioria dos brasileiros não possui a consciência da cidadania e até hoje 1% da população é dona de 50% das terras férteis. Temos um povo resignado e uma elite, salvo raras exceções, exibicionista, ignorante, mal-educada e terrivelmente provinciana. Não é assim em outros cantos, e são estes pontos que convém ressaltar  se o assunto é desigualdade global.
Mino Carta, in Carta Capital, domingo dia 28 de agosto de 2011.



Lula em Vila Euclydes: decisão dos metalúrgicos mudou a história do pais




Já disse neste mesmo espaço que tive grandes privilégios na minha carreira. Convivi diretamente com os maiores jornalistas da minha geração. Alguns tiveram o espírito caridoso de me ensinar alguns truques, outros me fizeram o favor de emprestar rigor e cobrança ao meu trabalho. Outros me confiaram missões aparentemente acima da minha capacidade. 

Mino sempre teve um carinho muito grande por mim e pelo meu trabalho. Quando lhe competia editar, sempre deixava para o fim, o que queria dizer madrugada alta e não raro manhã de sexta-feira. E fazia com humor. Vibrava e repreendia com o mesmo diapasão. Elogiava e criticava na mesma altura. Brincava, contava histórias. Às vezes me corrigia com um sorriso e relembrava os seus mestres, enquanto me repassava novas orientações.


Talvez a maior lição que eu aprendi ele me tenha ministrado em março de 1979. Havia uma tensão muito grande nas relações entre os sindicatos dos metalúrgicos do ABC e a FIESP. O impasse estava instaurado. A justiça havia declarado a greve ilegal. Não havia nenhum sinal de recuo de nenhuma das partes.


Na quarta-feira, o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, chamara a seu apartamento nos Jardins as lideranças sindicais. O objetivo era informa-las que caso não recuassem sofreriam intervenção, as fábricas e os sindicatos seriam militarmente ocupadas e eles mesmo seriam presos.


Passei a madrugada toda sentado do lado de fora do apartamento à espera do final da reunião.  Quando a manhã de sexta-feira chegou, a porta  finalmente se abriu e os três presidentes se despediram educadamente do ministro. Precisavam ir para suas assembleias e não havia condução. Ofereci-me humildemente para transportá-los no meu Fusca. E, assim, ainda acompanhados pelo advogado dos sindicatos, Almir Pazzianotto, fomos os cinco em direção a Vila Euclydes.


Lula estava ao meu lado, no banco do carona. No caminho me dizia que não havia como recuar. E me relatou todos os termos da reunião com Murilo Macedo.


Quando chegamos a São Bernardo, estava bem claro que os metalúrgicos não admitiam a hipótese de recuo e não se intimidariam com as ameaças do governo.  Foi uma assembleia histórica. Decidi não voltar para São Paulo e me coloquei dentro da sala do Lula no Sindicato. Lá escrevi a reportagem e decidi me plantar à espera que alguma alma viesse me substituir.


No começo da noite adormeci no sofá. Fui despertado por meu substituto, eram nove horas da noite. E era o próprio Mino:


- Nunziotto, vá para a redação, passe em casa tome um banho, alimente-se e volte.

Mino Carta: liderança segura e efetiva

As duas horas da manhã, eu estava de volta.  Lula e Mino conversavam animadamente. Falavam do cabrito a caçadora que haviam jantado, encomendado ao Demarchi, um dos célebres restaurantes das colônias de São Bernardo do Campo.


Mino voltou para a redação. A soldadesca se movimentava, a cidade começou a ser cercada. O dia amanheceu. Eu ouvia mentalmente o primeiro movimento da Terceira Sinfonia de Mahler. Liguei para a redação. Ao ouvir o meu relato, Mino começou a gritar ordens seguras, para mim sobrou:


- Nunziotto você gruda no Lula.


Eu já estava. O resto todo mundo sabe.


Já era noite quando editávamos o material. Ainda me lembro com emoção das fotos do Hélio Campos Mello e do João Bittar. Tão Gomes Pinto e Hélio Almeida davam os últimos retoques na edição. Mino começou a escrever a sua célebre Carta ao Leitor. Falava consigo mesmo.

- Preciso encontrar uma frase que sintetize tudo isso.


Entreolhávamo-nos perplexos. Enfim saiu.


“O povo é órfão neste país!”


Era como se de repente, o tutti orquestral mahleriano houvera cessado e as trompas mágicas em acordes sucessivos anunciavam o que parecia ser a verdade singela e tonitroante.


Clique aqui para ouvir o primeiro movimento 
da Sinfonia nr. 3 de Gustav Mahler


Sábado era meu aniversário. Alguns colegas me premiaram com uma festa surpresa no apartamento da Vera, de O Globo. Quando eu cheguei, fiquei ainda mais emocionado. Os colegas aplaudiam o trabalho que havíamos feito. Realmente um belo trabalho, sem falsa modéstia, que só foi possível por conta da liderança perfeita de um jornalista que orgulha a profissão, e de uma equipe maravilhosa.

Para terminar preciso registrar o trágico passamento do grande Rodolfo Fernandes. Uma tragédia, sem dúvida. O jornalismo brasileiro perdeu muito ontem. Vai com Deus amigo! Espere por nós na redação celestial que você com certeza vai liderar. Humildemente quero solicitar desde já o meu posto de repórter.  

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Com sua licença, mestre Akira!



Akira Kurosawa teria 101 anos se fosse vivo. Faz uma falta tremenda à humanidade



Enquanto a monotonia deste voo para Buenos Aires me entedia, tomo a liberdade de tirar uma história genial que Akira Kurosawa conta em seu Relato Autobiográfico, um dos tantos livros maravilhosos que a minha filha Bianca me presenteou.
Antes de mais nada, vamos combinar que Kurosawa é um dos cinco maiores diretores de todos os tempos. Aluno de Kanjirô Yamamoto, com quem trabalhou como assistente, superou em muito o seu mestre. Muita gente pode ter preferências variadas, Yojimbo, Rashomon, Sete Samurais, Donzoko, ou mesmo os seus últimos trabalhos Kagemusha, Ran, Dreams, Madadayo.
Descobri agora ao ler seu relato autobiográfico que ele considerava John  Ford e Jean Renoir os maiores diretores de todos os tempos e tinha uma curiosidade muito grande por Lewis Millestone, que arrebatou os principais Oscares de 1930, com a adaptação da obra extraordinária All Quiet in the Western Front, de Eric Maria Remarque.
Kurosawa leu muito, leu tudo que lhe caiu na mão, independente do autor ou do tema estar relacionado ao mundo oriental ou ocidental. Apesar da dificuldade em ter livros sobre obras de arte, era obcecado desde jovem por Gauguin, Cezanne e Van Gogh. Era um apreciador contumaz da música de Haydn. E viu muito, mas muito cinema Murnau e Harold Lloyd, Griffith e Chaplin, Eisenstein, Renoir, Ford, Stroheim, Lang. Ele simplesmente viu tudo o que importava nos anos 20 e 30.
Conectou-se com o de melhor no pensamento proletário japonês, esforçou-se para entender os grandes processos de transformação, a Depressão Americana, a Revolução Soviética. Foi testemunha do Grande Terremoto Kero de 1928, que praticamente destruiu o Japão todo e da ascensão do militarismo que culminou com o que ele chamava de Guerra do Pacífico.
Não obstante, a leitura de sua auto-biografia revela um homem tímido, que quase se desculpa por ter escrito sobre a sua vida. Coisa de japonês, dirão alguns. Coisa de gênio, direi eu. A timidez e a simplicidade é apenas uma forma. O conteúdo esta longe disso. Querem ver?
Em determinado momento do livro ele conta que quando morava com o irmão, em Asakusa, descobriu que o lugar que tanto gostava escondia uma realidade complicada. “Esta deve ser uma verdade em qualquer lugar – um exterior luminoso esconde um interior sombrio”.
Kurosawa descobre então historias terríveis como a do avo que estuprara a netinha, ou da mulher que atormentava a vizinhança toda noite com a ameaça de que iria se suicidar. Até que em uma noite foi ridicularizada pelos vizinhos depois que tentou enforcar-se e não conseguiu. Dirigiu-se discretamente até um poço e afogou-se, sem incomodar ninguém.
Mas, havia também histórias de Cinderelas e o próprio Kurosawa não consegue entender por que as madrastas judiavam tanto das enteadas. “Ignorância é a única explicação para este crime”.
Ele conta a história de uma menina que é obrigada a comprar uma erva chamada moxa, muito usada para cauterizar feridas, mas que pode ser usada também como forma de castigar uma criança uma vez que aplicada diretamente na pele queima profundamente.
“Um dia, quando eu habitava ainda a casa do meu irmão, nossa vizinha mais próxima apareceu soluçando. Chorava de uma forma insuportável para mim, apertando o peito com as duas mãos e tremendo convulsivamente.  Quando perguntei o que havia, ela disse que sua vizinha estava torturando a enteada novamente. Ouviu os gritos terríveis da garota e não conseguiu suportar. Através da janela da cozinha , viu a criança amarrada em um pilar. A madrasta jogava grande quantidade de moxa no abdômen da menina. Minha vizinha estava quase descrevendo os detalhes da cena quando olhou para fora e calou-se”.
O relato culmina com Akira seguindo a vizinha e passando por um pequeno buraco na parede da cozinha, na tentativa de resgatar a pobre criança torturada pela madrasta.
“Olhando pela janela da vizinha, avistei a criança amarrada no pilar com um cordão de quimono masculino. A janela estava aberta, como um ladrão, entrei na casa. Desfiz apressadamente o cordão que atava a menina ao pilar. Mas, em lugar de se sentir feliz com isso, ela olhou furiosamente para mim: ‘O que você pensa que está fazendo? Ninguém lhe pediu ajuda! ‘ Fitei-a, surpreso.  ‘Se eu não estiver amarrada quando ela voltar, ela vai me torturar de novo’. Senti como se tivesse levado um tapa na cara. Mesmo desatada , ela não poderia se livrar das circunstâncias que a meteram no pilar. Para ela, de nada valeria a solidariedade de outras pessoas. Piedade era um motivo de confusão ainda maior. ‘Corra e me amarre de novo’ , disse ela com tanta ferocidade que cheguei a pensar que me bateria. Fiz como ela me ordenou. Eu merecia aquilo”.
Depois disso, quase na hora de pousar, ainda me dá tempo de lembrar o brinde do professor no seu último filme: Madadayo. Ainda não!
Kurosawa é daqueles que a história conforta, mas que fazem muita falta no presente.
 

sábado, 20 de agosto de 2011

Sonhar é preciso. Viver não é preciso!





Prédio da prefeitura de Blumenau ilhado: o Itajaí havia tomado toda a cidade

Esta semana uma amiga e pupila querida completou 35 anos. Premiou-me com uma frase dramática e um susto: “Como você sempre diz, dobrei o Cabo da Boa Esperança e comecei a navegar em águas de Madagascar”. Ela me cita, sem nenhum pudor, para dizer que iniciava a segunda metade de sua vida. Isso sem dúvida não me assustou. O que me surpreendeu foi a substituição de um doce sotaque pernambucano por um leve acento gaúcho. Nada contra, afinal sou casado há 20 anos com uma gaúcha, tenho dezenas de amigos e amigas que arrastam a língua na verve farroupilha e eu mesmo aqui e ali escorrego em um tchê ou em butiá.
Certa vez, inconformados com a minha proximidade com o senador Carlos Wilson, a quem eu tive o prazer e o orgulho de assessorar, coleguinhas de Pernambuco, chocados, me qualificaram como um jornalista catarinense, enfronhado indevidamente no metiere que deveria ser de algum conterrâneo. Político como um muçum ensaboado, Cali saiu-se com essa: “Catarinense? Até onde eu sei ele é um italianão da Mooca, vive em Brasília, mas é conceituado e respeitado em todo o Brasil”.
A confusão dos coleguinhas pernambucanos se deve ao fato de que o meu registro profissional, com muito orgulho, é do Estado de Santa Catarina. As razões disso, explico em outro post com mais uma das minhas historietas. O importante é que dentre as 27 unidades da federação, a terra de Cruz e Souza é aquela pela qual eu nutro maior simpatia, onde vivi um período de sonhos e utopias. Foi lá, em um cenário ponteado por araucárias e sublinhado pelo magnífico vale do rio do Peixe, que eu desfrutei da amizade e da hospitalidade de gente nova, em torno de uma grimpa de pinhão, ou de um tortei caseiro, um copo de vinho ordinário.
Talvez a minha maior aventura em Santa Catarina tenha ocorrido em 1982, durante as grandes enchentes. No domingo a tevê mostrara a tragédia provocada pelo transbordamento do rio Itajaí, do rio do Peixe e do rio Iguaçu. O estado estava totalmente submerso. Quando me desloquei para a redação de IstoÉ na manhã de segunda-feira, tinha a absoluta convicção de que naquela noite estaria desembarcando em algum ponto do estado para fazer a cobertura. Mas, para minha surpresa, o chefe de reportagem, um sujeito estranho e difícil, decidiu inventar a roda e destacou para a cobertura o repórter Antônio Carlos Fon, que jamais havia pisado por lá. Para mim sobrou a greve dos petroleiros em Paulínia. Vá lá que o presidente do sindicato, Jacó Bittar, era e é meu amigo e, certamente, eu era muito bem informado no meio sindical. Mas, até a fruteira da Consolação sabia que o repórter certo para cobrir a enchente era eu. Conhecia tudo, os caminhos, os descaminhos, os prefeitos, a defesa civil... Só mesmo a genialidade daquela anta.
Pois bem, a despeito de ter passado todos os meus contatos para o Fon, ele não conseguiu sair de Itajaí, que também estava totalmente submersa. Na quarta-feira de manhã, quando o Tão chegou na redação me encontrou batucando a matéria sobre os petroleiros.
- Ué, o que você está fazendo aqui?
- Escrevo sobre a greve dos petroleiros de Paulínia.
- E quem está em Santa Catarina?
- O Fon.
Naquela noite eu embarquei em um voo para Navegantes, com a missão de em 48 horas, tentar resgatar uma cobertura praticamente perdida. No saguão de Congonhas encontro minha irmãzinha Suzana Veríssima, que, aliás, também era minha editora, se despedindo do seu companheiro Roberto Pompeu, então editor de Veja, que iria coordenar uma equipe de dez repórteres in loco, a partir de Florianópolis. E o idiota aqui ia enfrentar isso tudo sozinho.
Suzana não era querida. Era queridíssima. Beijou-me na face e sentenciou:
- Boa sorte! Você vai precisar.

Itajaí inundada: o cenário era terrível e devastador
Quando desembarquei 40 minutos depois em Navegantes, cujo aeroporto parecia um aeródromo inglês no dia da invasão da Normandia, o prefeito de Itajaí, Arnaldo Schmidt, me aguardava com as últimas informações. A situação era mesmo terrível. O bom Arnaldo, que me hospedou na sua casa, informou que uma reunião teria lugar na noite de quinta-feira no ilhado teatro Carlos Gomes em Blumenau. Mas, ele não fazia a menor ideia de como eu faria para chegar até lá.  
Naquela noite, confortado por um cobertor quente, em um pequeno quarto da casa do prefeito, soltei a imaginação e me pus a sonhar. Sim! Aquela reunião era a salvação da lavoura. Uma boa conversa com o governador Espiridião Amin, que além de eu não conhecer, não era, digamos assim, do meu grupo ideológico. Meia dúzia de histórias dos prefeitos do Vale do rio Itajaí. Um pequeno box com uma entrevista com o prefeito Dalton dos Reis, de Blumenau, e um cozidão com as notícias factuais dos jornais da terra.
Mino Carta me ensinou que duas informações e um personagem são suficientes para uma boa matéria. E eu tinha condições de ter mais que isso. Claro! Se chegasse até lá. Mas, ainda faltava a cereja. Como superar o Robertão e a gigantesca equipe de Veja. Gorda, farta, cheia de recursos, com helicópteros alugados e eu ali olhando para o teto do quarto.
Naquela noite sonhei. Sonhei sim. Que a bordo de um pequeno caminhão eu conseguia chegar a Blumenau costurando as colinas do Vale do rio Tijucas, atravessava a cidade de Brusque e, sempre pelo alto, chegaria a Blumenau por trás, sem passar por Gaspar que estava totalmente tomada pelas águas. Na princesa do Itajaí, os prefeitos se reuniriam a minha volta contando histórias e me passando informações. Era apenas um sonho!

O rio Itajai avançara sobre o porto: ferrovia totalmente destruida

O dia amanheceu com a luz do sol pálida, refletindo o lamaçal e as águas represadas do rio dentro de Itajaí. Sentei a mesa do café com os olhos ainda embaçados e os cabelos (ainda os tinha em profusão) sem pentear.
- Arnaldo, preciso de uma caminhonete e um motorista que não tenha medo de água ou de lama.
- O que você andou pensando?
- Vou tentar chegar a Blumenau pelo Vale do rio Tijucas.
- Hummmm! Não tinha pensado nisso. Mas, como você vai superar a inundação do próprio rio Tijucas?
- Com fé, a habilidade do motorista e um sonho que me acometeu a noite toda.
Ato contínuo, o bom prefeito pegou o telefone e pediu a caminhonete, abastecida, no menor tempo possível.
E lá fomos nós. Eu e o seo Mariano, lageano de estirpe, motorista do próprio prefeito, a bordo de uma D-20, com um motor Perkins que parecia de uma balsa.
Quando chegamos a Tijucas, voltou a chover e forte. A estrada construída na margem do rio estava coberta pelas águas.
- Seo Nunzio não me falta coragem. Mas, me sobra bom senso. Se a gente entrar ai, podemos até avançar um pouco, mas se atolarmos não teremos como voltar ou nos movimentar. Vamos ficar presos.
- Mariano é o seguinte: o bom senso que se dane. Eu tive um sonho esta noite e nele eu passava. Toca esta merda desta caminhonete para dentro do rio.
E lá fomos nós, lentamente, o eixo cardã da caminhonete rodava dentro da água. Vez por outra, Mariano mostrava toda a sua competência desviando de troncos que vinham em nossa direção. Ele não via a estrada, apenas intuía. Foram cinco longos quilômetros, várias patinadas, até que sabe Deus como o asfalto começou a surgir em meio a água e logo cruzamos uma colina e pudemos, do alto dela, ver o vale todo submerso.

Os vales catarinenses estavam todos submersos: visão desoladora
De Brusque a Blumenau por estradas secundárias ainda mais obstáculos. Quando não era uma ponte precária, eram barreiras no caminho, barro muito barro. Mas, não havia mais como desistir. A tarde já ia alta quando finalmente nós chegamos em Blumenau. A visão do alto era aterradora. O Itajaí havia passado pela Beira Rio, batia no segundo andar dos edifícios da rua 7 de setembro e chegava até a calçada da esquerda da rua XV de Novembro.
Implorei ao gerente do hotel Himmelblau que me desse um apartamento. Ele ponderou que a energia era de geradores, que os telefones funcionavam precariamente, que não havia serviço nenhum, mas me alojou em um apartamento bem alto, por via das dúvidas.
Fui a pé até o Carlos Gomes. Os prefeitos do Vale estavam todos reunidos. Me contaram histórias e histórias. Só pararam quando o governador Espiridião Amin chegou e passou a relatar as agruras de que tinha conhecimento e a insensibilidade do governo federal em enviar recursos financeiros para o Estado. O presidente João Figueiredo estava fora do país e o vice Aureliano Chaves não tinha autonomia para pedir um cafezinho no Palácio Jaburu.
A noite ia alta. Eu sentia uma fome tremenda. Os telefones do hotel estavam funcionando, mas o gerador de energia elétrica tinha pifado. Eu escrevia na minha Olimpus portátil, companheira velha de guerra. Faltava uma cereja. O sonho se realizara. Mas, faltava o plus.
O Tão certamente leria aquele cabedal de casos e tragédias e diria:
- Sim, mas cadê a surpresa? Aquilo que o leitor não esperava ler?
Hehehehe! Bom e velho Tão. Que saudades! Que problema! Ter um editor que também é repórter e brilhante.
Mas, onde diabos eu vou achar esta cereja no meio deste caos?
Eis que ouço o golpear na porta do apartamento. Abro e diviso um oficial da Polícia Militar, segurando uma lanterna, no meio do escuro.
Educado ele me diz:
- Seo Nunzio? O governador pergunta se o senhor não se importaria em trocar algumas palavras com ele?
Claro que eu fui atrás do oficial até a suíte do governador. Encontrei-o bastante apreensivo, preocupado, andando de um lado para outro.
- Olá! Como vai? Não sabia que você havia conseguido chegar até aqui. Aliás, como você fez isso? Sei que nós estamos em lados políticos opostos. Sei também de suas relações com os prefeitos da oposição. Mas, preciso te fazer um apelo: não é hora de pensarmos nisso e o estado precisa da sua ajuda.
- Governador, eu estou as suas ordens. O que posso te ajudar?
- Preciso falar agora com o ministro Delfim Neto. Você é um repórter reconhecido, certamente terá condições de encontrá-lo.

Espiridião Amin: governador ilhado pelas águas e pela política

Eu não tinha. Mas, o publisher da revista, Armando Salém, tinha. E os telefones?
Tirei o telefone do gancho rezando para que ouvisse o indefectível som de linha. Comecei a discar e alguém atendeu na redação.
- O Salém, rápido!
-Fala Bri, onde você está?
-Turco, o governador precisa falar com o ministro Delfim Neto agora. A situação aqui está preta.
- Me dê quinze minutos e volte a ligar.
O relógio se arrastava e o tempo não passava. Espiridião parecia angustiado e me perguntava a cada minuto quanto tempo passara.
Enfim liguei de novo.
- Bri, liga você para tatatatatata. Fala com ele primeiro.
Liguei.
- As suas ordens Nunzio.
- Professor eu estou aqui com o governador Espiridião Amin, em Blumenau. Estamos em uma situação muito complicada, como o senhor deve estar sabendo, e ele gostaria de falar com o senhor.
- Por favor, me passe o governador Nunzio, muito obrigado viu?
Os dois conversaram longamente. Espiridião fez um relato da situação do estado e Delfim começou a apontar como liberaria os recursos necessários. O rosto do governador iluminou-se.
Comecei a minha reportagem relatando com tons dramáticos a conversa do Espiridião com o Delfim e a revelação de que o Governo Federal iria liberar todos os recursos necessários para a reconstrução do estado. Depois relatei a tragédia. Fiz o box com a entrevista com o Daltinho. Eram oito da manhã quando eu comecei a perfurar a fita do telex para transmitir a reportagem.
Dormi o sono dos justos. Sonhei de novo. Com o estado reconstruído, os meios-fios pintados de branco. Uma grande festa na cidade. Enfim, a vida de novo na normalidade.
No sábado, o massacre. IstoÉ furava Veja com informações exclusivas. O paquiderme da marginal atolara na arrogância. O ratinho sonhador e solitário conseguira materializar o seu sonho.
Na segunda-feira saboreei o prestígio junto aos colegas de redação e tive o privilégio de responder ao Tão.
- Como você conseguiu?
- Sonhei chefe!
- Mas, você podia morrer.
- Sonhar é preciso. Viver não é preciso.

domingo, 7 de agosto de 2011

Caricatura sangrenta


Vincere : Mussolini retratado como militante socialista e depois como líder do fascismo

No início dos anos 80, quis o destino me levar para a capital do Líbano, a outrora e dizem novamente bonita e civilizada Beirute. Quando eu fui, entretanto, rolava uma guerra civil entre cristãos e muçulmanos, entre judeus e palestinos, e a confusão era grande. As Nações Unidas, esta criação bem, intencionada que nunca funcionou, havia destacado forças militares dos Estados Unidos, da Franca e, para surpresa geral, da Itália, para tentar recuperar a paz, ou na melhor das hipóteses a tolerância.
Cheguei do Chipre em uma lancha, que cobrou uma fortuna, e na viagem tive a felicidade de conhecer ninguém menos que o mitológico repórter australiano Peter Arnett, então da ABC Television, com quem rachei o absurdo volume de dólares que pagamos para atravessar o canal do Mediterrâneo. Beirute estava devastada. A Força Aérea Americana e os mariners haviam implantado um regime de terror. Os franceses da Legião Estrangeira não deixavam pedra sobre pedra. E a linha verde, que separava a cidade e demarcava os territórios de cristãos e muçulmanos, era um campo de batalha com trincheiras dos dois lados e escaramuças de parte a parte.
E os italianos? Bem os italianos vinham de navio e não havia previsão de sua chegada. Finalmente chegaram e eu fui ao porto assistir ao desembarque. Eis que para delícia dos colegas repórteres internacionais, um grupo de jovens vestindo camisas e bermudas caquis, meias três quartos com pompons no elástico e um chapéu alpino de feltro onde um enorme penacho cor de vinho chamava vivamente a atenção. Marchavam correndo, com o ritmo marcado por uma corneta insistente. A cena se completou com o desembarque de dois blindados e um jipe pintados de cor de rosa.
Naquela noite, um simpático coronel, acho que Andreoli era o nome dele, me recebeu para uma entrevista no acampamento. Muito gentil, ele me serviu um pouco de spaghetti ao pesto e um copo de um Amarone, o militar italiano surpreso me dizia que raramente era demandado pela imprensa, notadamente a internacional, ainda que me reconhecia como um patrício. Na época eu escrevia para a IstoÉ e para a Panorama do grupo Mondadori.
- Coronel, o pau aqui está comendo. E nós chegamos 21 dias depois, com tanques cor-de-rosa e com berzaglieri alpinos? - perguntei.
O bom coronel não se abalou nem com o tom da minha pergunta. Riu, me ofereceu mais um gole de Amarone, aliás excelente, e iniciou uma aula:
- As pessoas assistem muito cinema. Acham que todos os soldados devem ser como Rambo, ou como os mariners americanos que são formados para matar. Nós somos italianos. Estamos aqui para estabelecer a paz. Não para fomentar a guerra. Não somos um povo guerreiro. Nossa história mostra que nossa preocupação é a arte, a ciência e o pensamento. Fique tranquilo, não vamos fazer feio.
No dia seguinte, o comando militar da ocupação destacou os berzaglieri para o controle da temida linha verde. Confesso que me correu um frio na espinha. Mas, alguns dias depois os embates entre cristãos e muçulmanos haviam acabado, a cidade estava pacificada. O coronel conversava igualmente com todas as facções e negociava concessões. Os americanos com aquele uniforme ridículo, cara pintada e quetais, ficaram confinados no aeroporto. Os franceses no porto. E a cidade gerida pelos “ridículos” italianos passou a ter vida novamente. A linha verde acabou.

Mussolini na piazza Veneza: caricatura
Esta história que tanto me ensinou e que fez o meu orgulho de ser italiano alcançar níveis insuportáveis, me veio à mente, depois de assistir, finalmente, o último trabalho de Marco Belocchio, Vincere. Trata-se de um filme notável, que conta a história de Ida Dasler, a primeira das amantes de Benito Mussolini, do tempo em que ele tinha cabelo e era um ativista socialista e anti-clerical.
Mussolini é uma aberração histórica, uma contradição gigantesca em um país, e o coronel Andreoli tem razão, que jamais desenvolveu qualquer cacoete para ser imperialista ou colonialista. De fato, nós italianos dominamos o mundo. Somos uma das potencias mais poderosas do planeta, mas nossas armas são a comida, os vinhos, os automóveis, o cinema, o futebol, os pintores, escultores, os escritores e o bel vivere.
Este tarado aproveitou-se da gloriosa participação italiana na Primeira Guerra, quando defendemos a integridade do nosso território contra nosso inimigo natural, a Áustria dos Habsburgos, juntou o pavor que as elites tinham da ascensão das classes trabalhadoras, notadamente no campo, e criou um regime de sbirri, que durou nada menos do que 25 anos!
Em tempo, sbirri, em uma tradução mais simples, quer dizer capangas.  
Mussolini quis disciplinar a Itália. Isso não é uma utopia é um delírio. Queria que os trens italianos não atrasassem. E diante da absoluta impossibilidade de fazê-lo, criou um mecanismo muito hábil: os chefes das estações deveriam atrasar os relógios nas plataformas, de forma a conciliar os horários.
Propaganda a parte, Mussolini lançou a Itália em uma aventura colonialista na Abissínia, cujo único resultado palpável foi a descoberta do caqui. Depois emprestou soldados italianos para o general Franco, na guerra civil espanhola. Sonhou em ser o senhor de Gibraltar, quando Hitler ameaçava atravessar o canal da Mancha, em 1940, funcionando como uma espécie de mediador. E aí lançou o país em uma guerra contra a França, nosso aliado histórico, e expôs os jovens italianos a vergonha em El Alamein, no Norte da África, e em, Stalingrado, na União Soviética.
Não bastasse, guerreou contra os Estados Unidos e contra o Brasil, países que haviam recebido enormes contingentes de imigrantes italianos. No front interno, seus capangas de camisas negras, barbarizaram. Mataram lideranças sindicais, opositores, jornalistas, pensadores. Ainda que uma caricatura grotesca, os fascistas eram violentos e cruéis.
A Itália capitulou em 1943. Mas, Mussolini e seus sbirri ainda tentaram alguma coisa na República de Saló, aproveitando-se do domínio alemão, notadamente no Norte da Itália. Ou seja, não satisfeito com o que tinha feito, ainda lançou o país em uma guerra civil. Finalmente em 1945, ele e sua amante Clara Petacci, caíram nas mãos dos partisans em Milão. Em Vincere, Belocchio informa que ele foi fuzilado. Não é verdade. Aliás não sei o por quê desta informação.  O Duce foi executado a pauladas em um posto de gasolina e depois pendurado pelos tornozelos.
Mussolini e sua amante: pendurados pelos tornozelos 

Em Roma, ele costumava falar para a multidão de uma sacada na Piazza Veneza. Lá mandou erigir um monumento chamado de “Altar da Pátria”, que os italianos chamam hoje de “Bolo de Noiva” ou “Máquina de Escrever”. Trata-se de um dos mais horrendos cenários em uma cidade belíssima, talvez a mais bela do mundo.
Certa vez, tomava um café no Café Brasile, diante do monumento horripilante, e perguntei a meu amigo Pino Cimó:
- Por que diabos não colocaram abaixo este monstrengo?
- Porque temos que nos lembrar sempre da merda que fizemos, para não cair no erro de repetir.
Foi uma boa resposta, como todas que meu amigo e irmão Pino sempre me dava. Neste sentido recomendo Vincere e, para quem acha que o fascismo foi mais uma bizarria italiana, recomendo também o clássico de Ettore Scola, Uma Giornata Particolare.  Ou ainda o épico de Bertolucci, Novecento.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Craque nos campos e craque na vida

Tostão, ou dr. Eduardo: brilhante nos campos como atleta e como homem




Uma das figuras mais apaixonantes que eu conheci na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, foi o grande Tostão – na verdade, Eduardo Gonçalves de Andrade, um dos mais geniais jogadores que eu conheci no campo de jogo.
Tostão fazia sua estréia como comentarista esportivo e eu tive a clara impressão que ele não se sentia à vontade no meio dos colegas, sobretudo daquela torrente de vaidade que assoma os jornalistas televisivos.
Numa noite em Dallas, eu havia jantado com o Roberto Rivelino (outro cara acima da média como homem, como jogador e como estudioso de futebol) e quando voltamos para o hotel encontramos o pobre do Tostão só, no lobby, se entretendo com a leitura de um livro de Marcel Proust. 
Começamos a conversa por aí. Rivelino manifestou tremenda curiosidade. E fomos os três falando e falando e falando. Assistimos à chegada dos colegas das emissoras de televisão. Alguns ainda ensaiavam participar da conversa. Mas, para nossa sorte, logo se afastavam e desapareciam pelo gigantesco saguão. E nós fomos ficando e ficando e ficando, até que amanheceu o dia.
Que papo formidável! Histórias de vida e de convívio. Que desprendimento!
Rivelino e Tostão possuem a humildade dos sábios.
Tostão, por sua vez, é fissurado no conhecimento humano, no estudo do comportamento. Cheguei à brilhante conclusão que ele não daria certo no cenário que se montava para ele. E não me surpreendeu quando ele decidiu abandonar tudo e ficar apenas com a coluna dominical da Folha. E mesmo assim, vejam que preciosidade foi a coluna do último domingo, dia 31:


Tostão e Rivelino: dois craques da vida que eu conheci na Copa




ONTEM, COMEÇARAM, oficialmente, a festança e a gastança da Copa de 2014, com um evento pago pela prefeitura e pelo governo estadual do Rio, com a presença e o apoio dos amigos, novos e antigos. Todos querem mamar nas tetas do poder.
A agressão do jogador Gustavo, do Sport, ao atleta Elivélton, do Vasco, pela Taça BH de Juniores, mesmo mais grave que outras, tem a ver com a violência que existe na sociedade, nas ruas, nas arquibancadas e nos gramados. As partidas são, a cada dia, mais tumultuadas, com cotoveladas, pontapés e ofensas. Muitos chamam isso de futebol competitivo, emocionante e intenso.
O espetacular jogo entre Santos e Flamengo foi atípico e uma exceção. Neymar e Ronaldinho foram magistrais, facilitados pela péssima atuação individual e coletiva da maioria dos defensores. O gol de Neymar foi tão bonito quanto os maiores gols de Pelé.
Os jovens, encantados, ficaram perplexos. Parecia outro esporte, que existia apenas na imaginação dos saudosistas e dos românticos. Os mais velhos, assim como eu, emocionados, lembraram os grandes jogos entre o Santos, de Pelé, e o Botafogo, de Garrincha.
Difícil é voltar à realidade. O futebol atual é outro. Quanto mais violência nos gramados, mais se fala em fair play. Jogar a bola para fora quando o adversário está no chão, o que deveria ser um ato espontâneo, de solidariedade e de delicadeza, tornou-se uma obrigação, muitas vezes, sem motivo. Alguns jogadores se aproveitam para simular contusões graves. É o árbitro que deve decidir se para ou não o jogo.
O esporte de alto rendimento é um espelho da sociedade. Não é um bom lugar para incorporar os valores éticos. O atleta, pressionado e sonhando com a glória, costuma usar de todos os meios para levar vantagem. Mesmo com tantos exames, os atletas continuam se dopando.
O ser humano não nasceu santo. Nasce, cresce e corre atrás do prazer. É a sociedade que tem de impor limites para desmedidas ambições humanas, por meio de educação, exemplos e punições.
Os atletas se preparam somente para vencer. Além da tristeza, os derrotados se sentem moralmente culpados, como se tivessem feito algo incorreto.
A sala onde os nadadores ficam, antes de uma prova olímpica, é chamada de sala da morte. Quem perde morre.
Tenho mais admiração pelos perdedores, pelos marginalizados e pelos inadaptados ao mundo, que, mesmo assim, continuam dignos, do que pelos vencedores, apaixonados pelo sucesso.


Tostão foi um grande jogador de futebol. Muito maior do que Ronaldinhos, Neymares e quetais. E tornou-se maior ainda fora dos campos. Tenho muito orgulho de tê-lo conhecido pessoalmente e de ter convivido umas poucas horas, que me valeram muito. Obrigado, Dr. Eduardo!