domingo, 25 de setembro de 2011

Quanto vale uma vida?


A agitada noite de Cuiabá: neste cenário Toni foi assassinado pela intolerância



Muita gente acredita mesmo que os brasileiros são meigos, tolerantes e pacíficos. Esta é uma das maiores falácias que se repete desde que Cabral enrolou por alguns dias, uns poucos pataxós, nas praias de Porto Seguro. No ano passado, dois estudantes baianos, beneficiados pela mobilidade do Enem se apresentaram em um dos campus da Unipampa, no Interior do Rio Grande do Sul.

Negros, bonitos, com cabelos rastafáris, violão disponível, aquela fala mansa e malemolente que imortalizou Dorival Caymmi, os dois acreditaram nesta abobrinha. Acabaram navalhados em um hospital por um grupo de agroboys gaúchos inconformados com a “invasão”.

Na semana passada, foi um menino de nome Toni, da Guiné Bissau, que cumpria uma bolsa de estudos na Universidade Federal do Mato Grosso, que foi surrado até a morte por agroboys cuiabanos. O pobre rapaz incomodou os valentes garanhões locais porque estava mendigando na porta de um bar.

Toni, coitado, caiu no conto das drogas. Era um bom rapaz, aplicado e diligente, até que foi vitimado pelo crack. Deixou de fazer seus deveres, deixou de estudar, recusou a ajuda psicológica da universidade e acabou errante pelas ruas. Nada disso justifica, entretanto, a sanha assassina dos playboys.

Claro, quem não se lembra do índio incendiado com álcool enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília, e tantas outras histórias de intolerância, discriminação racial e social. Eu me lembro de uma bastante revoltante que ocorreu no centro de São Paulo, no final dos anos 70.

Um menino de rua, com pouco mais de 10 anos, cometeu a desfaçatez  de tomar uma correntinha de ouro ordinária de uma gostosona, ali muito perto do Largo de São Francisco. Foi um salseiro danado. O garoto saiu correndo pela rua José Bonifácio e um grupo de rapazes muito bem nutridos achou-se tomado pela sanha da justiça e decidiu dar-lhe perseguição.

Claro que se fosse uma velhinha a vítima do assalto, isso não aconteceria. Mas, como era uma gostosona, que ridiculamente se pôs a gritar como se fora estuprada, a valentia brotou nos bem alimentados jovens de paletó e gravata que perambulavam por ali.

O menino foi alcançado, foi surrado, e abandonado no meio-fio sangrando. Morreu. A correntinha de ouro foi devolvida a gostosona. À família do pobre menino foi encaminhado o corpo frágil e sem vida do filho desgraçado, cujo valor sequer se equipararia a uma corrente ordinária de ouro.

Histórias como essas ilustram bem a índole de uma classe média metida, sem crítica, que não tem a menor ideia do mundo em que vive. Mas, não posso deixar de contar uma bastante relevante que mostra o quanto este espírito justiceiro às vezes pode se voltar contra seus empedernidos defensores.

Centro velho de São Paulo: uma vida por uma corrente de ouro


Foi o caso de um reconhecido médico que se animava com justiceiros do tipo Rambo, Cobra e que tais. A paixão era tal que ele chegou a comprar uma Magnum 44, automática, que conservava como joia da coroa, devidamente lustrosa para mostrar com gaudio para as visitas.

Uma noite o bom doutor ouviu barulhos estranhos em sua garagem. Era a oportunidade enfim de viver de verdade, quem sabe, o personagem de Clint Eastwood, o Dirty Harry. Desceu as escadas pé ante pé. Não queria assustar a presa. Enfim, rendeu o poderoso meliante, um menino de 13 anos, que tentava roubar-lhe os faróis de milha do Maverick super equipado.

O doutor cumpriu direitinho o figurino que imaginava. Colocou o menino deitado de bruços no chão. Imobilizou-o pisando com as pantufas sobre suas costas. Apontou a pistola brilhante para o alto, enquanto com o telefone chamava a Polícia.

O orgulho do doutor explicando como havia rendido o menino com sua Magnum impressionou até os policiais, que levaram o poderoso meliante sob algumas bofetadas, mesmo sabendo que haveriam de liberá-lo na delegacia. E, talvez por causa disso, a reprimenda foi mais violenta.

O bom doutor vangloriou-se a semana toda. Com ele seria assim. Se a Polícia não dá conta destes marginais, ele dava. E ainda que ele pudesse comprar uma dezena de faróis de milha, não toleraria a petulância desta gente.

Numa noite, entretanto, o telefone tocou chamando o velho doutor para uma emergência no hospital. Quando tirava o carro da garagem percebeu que estava cercado. Antes que se desse conta do que estava acontecendo recebeu um disparo. O autor ainda teve o cuidado de quebrar os dois faróis de milha.

O doutor não morreu. Ficou entre a vida e a morte no hospital durante quase um mês. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O mineiro e o queijo


Helvécio, à direita, com um dos produtores: tradição de mais de 300 anos


As mulheres em Minas servem apenas para dissimular. Mineiro gosta mesmo é de queijo. A piada foi contada no sábado a noite em Pirenópolis, no interior de Goiás, na pré-estréia do documentário O Mineiro e o Queijo, do cineasta Helvécio Ratton, no acanhado mas confortável cinema local.

Com efeito,  o impacto do queijo mineiro no imaginário consciente e inconsciente dos mineiros é algo impressionante.  E há uma razão para ser assim. Trazido por aventureiros portugueses que buscavam ouro, a fórmula do produto é muito, mas muito parecida a iguaria portuguesa produzida na Serra da Estrela. Ou seja, leite de vaca cru, coalho, pingo e maturação. Nada mais sofisticado do que isso.

Helvécio é tão mineiro quanto o queijo. Por isso mesmo, fez um documentário sensível, pastoral, com belas imagens, personagens reais e depoimentos fortes. Na base de tudo uma constatação: é proibido circular com queijos mineiros para fora do estado, desde 1952, e pior,  o produto deve ter uma maturação mínima de 21 dias.

Nos países da Europa e mesmo da América Latina os queijos feitos com leite cru estão relacionados a produções artesanais, familiares mesmo, que servem de sustento para gerações.  Curiosamente é possível encontrar-se na gondola dos supermercados produtos feitos com leite cru na França, na Itália, na Dinamarca ou na Suiça. Mas, o produto brasileiro enfrenta restrições do Ministério da Agricultura.

É justo que os mineiros se insurjam com isso. Fosse em outros tempos e certamente teríamos registrado na história do Brasil a Revolta do Queijo. Afinal, estima-se que mais de 30 mil famílias vivam da produção de queijo em todo o Estado.

O problema é que o Brasil subordinou-se as normas higiênicas dos Estados Unidos e passou a obrigar a utilização do leite pasteurizado na produção dos queijos. Mais ou menos como chupar um picolé com papel, ou ainda namorar uma loira careca.

Os americanos, como se sabe, só produzem queijos brancos, invariavelmente sem gosto, batizados de cream-cheese, e aquela coisa chamada Cheddar, requinte absoluto para quem não consegue diferenciar um bom vinho de uma Coca Cola.

Vamos combinar queijos brancos são queijos novos, invariavelmente ainda em processo de fermentação, que não possuem personalidade e não perderam a quantidade de soro inerente ao leite coalhado.  Não é disso que estamos falando.

Vale a pena conhecer um pouco da história destes mestres queijeiros, que aprenderam a arte de produzir estes queijos de geração a geração. Penetrar no mundo simples de alguém que acorda as três horas da manhã para ordenhar manualmente suas vacas e que fica até o final da tarde trabalhando o leite para a produção do queijo. 

O documentário é tão bom quanto um destes discos maravilhosos, que, infelizmente, só se pode degustar mesmo nas Gerais. Uma pena!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O complexo mecanismo da média aritmética





No intuito de aclarar as mentes privilegiadas dos coleguinhas vou, de uma vez por todas, tentar esclarecer o complexo conceito de média aritmética, que tanto confundiu os jornalistas que cobrem o Ministério da Educação.

João Carlos era professor de Educação Física do Colégio Benedito Calixto, na cidade de Monte Santo de Minas, em Minas Gerais, é claro. Na sua turma de 6º. ano, ele tinha cinco alunos com excelente performance atlética no basquete, mas de alturas variadas, a saber:

Pedro era o armador e tinha 1,56 metro de altura; Vitor era um dos alas e tinha 1,63; Giovani era o outro ala e tinha 1, 66; Carlão era o pivo e tinha 1,75. E finalmente o cestinha da equipe, Daniel tinha 1,70.

Então vejamos, a média aritmética da altura da sua equipe se alcança com a soma da altura de todos os atletas

1,56 + 1,63 + 1,66 + 1,75 + 1,70 = 8, 30 dividido pelo número de atletas 5

Ou seja 8,30 : 5 = 1,66.

João Carlos era um professor extremamente cioso e chegou a brilhante conclusão que em sua equipe, um jogador estava na média, Giovanni; Pedro e Vitor estavam abaixo da média e Carlão e Daniel estavam acima da média.

No ano seguinte, quando estes estudantes estavam na 7ª. Série, João Carlos foi fazer as medições de peso e altura e os números mudaram:

Pedro havia crescido quatro centímetros, 1,60; Vitor crescera três centímetros, 1,66; Giovanni crescera três centímetros, 1,69. Carlão e Daniel mantiveram a altura.

Ou seja, a nova média da equipe mudara:

1,60 + 1,66 + 1,69 + 1,75 + 1,70 = 8,40 : 5 = 1,68

João Carlos concluiu que Giovanni superara a altura média do ano passado; Carlão e Daniel continuavam acima da média e Pedro e Vitor continuavam abaixo da média.



No ano seguinte, chegou um monstro em Monte Santo, o Ricardão. Totalmente desengonçado, o menino de 13 anos media nada menos do que 1,86. Carlão, por sua vez, se mudara com a família para Ribeirão Preto. Quando da medição no início do ano, os números mostraram:

Pedro 1,62; Vitor, 1,69; Giovani, 1,72; Daniel 1,71 e Ricardão assustadores 1,86.

Ou seja:   1,62 + 1,69 + 1,72 + 1,71 + 1,86 = 8,60 : 5 = 1,72

Curiosamente a média da equipe voltou a ser o mesmo Giovanni, com 1,72; Pedro e Vitor continuaram abaixo da média, agora com a companhia de Daniel e o Ricardão rigorosamente acima da média.
Outra constatação tremenda. Qualquer que seja a média de altura, mesmo que ela tenha crescido dois centímetros todos os anos, há jogadores abaixo, acima e na média.

Um fenômeno!



De qualquer maneira o time de basquete de Monte Santo de Minas era mesmo muito ruim. Não ganhou de ninguém. De novidade mesmo, só a chegada do Ricardão, que apesar da altura não resolveu nada.


sábado, 10 de setembro de 2011

Por amor também se mata


 James Stewart ( a esquerda): um médico que se esconde atrás da máscara de palhaço



Um dos primeiros personagens a me marcar de forma indelével, até hoje, foi o palhaço vivido por James Stewart em O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. de Mille. Quem viu o filme, com certeza, há de se lembrar que trata-se de um médico de tal forma apaixonado pela mulher que diante de um diagnóstico de doença incurável decide apressar sua agonia. Não deixa de ser instigante que, para fugir da polícia, ele se esconda atrás de uma máscara de palhaço no Barnum, Bailey, Ringling Bros, o maior circo de todos os tempos.

Eu era pouco mais que um pentelho de seis anos quando vi o filme no velho cine Santo Antônio. E algum tempo depois acompanhei o velho Nunzio numa récita, uma das minhas primeiras, de I Pagliacci, a ópera predileta dele, numa matine no Teatro Municipal. Impressionante a história contada por Ruggero Leoncavallo, agora de um circo mambembe pelo interior da Sicilia e um triângulo amoroso, que envolve como Arlequim, Pierrot e Colombina, três atores num turbilhão de paixão. O que mais me impressionou, sem dúvida, foi a cena final. A chamada cena dentro da cena, quando a desgraça se desenha no picadeiro, o público delira com o realismo interpretativo, mas nós na plateia de verdade sabemos que se trata mesmo da vida real. A frase final é tremenda: La commedia é finita!

Claro, tem a Carmem de Bizet. O Macbeth de Sheakespeare. O Moulin Rouge de Huston: “Nós matamos aquilo que nós mais amamos”, dito por ninguém menos que o próprio Toulouse Lautrec.

Não muito distante da cena teatral ou operística, encontrei na vida real personagens de verdade que conviveram com esta difícil contradição: o amor e a morte. Ou seria a morte levada pelo amor. Ou ainda o amor que leva a morte.

Quando comecei no Estadão, certa vez um dos diretores da empresa, um tipo bem afeiçoado, simpático mesmo, acabou virando notícia. Havia sido vítima junto com a esposa de um sequestro e, na tentativa de fuga, em Riacho Grande, na borda da Billings, conseguira escapar da sanha dos bandidos, a despeito de sua amada esposa acabar por perecer vítima dos assaltantes. Ficamos todos vivamente marcados pela sua história. Mas, dias depois a Polícia descobriu que não era nada disso. O tipo havia executado a esposa a sangue frio, se autoflagelado com um tiro no joelho e outro na mão. Por que? Jamais soube. Falaram em traição dele, traição dela. Sei lá. A verdade é que duas vidas se perderam.

Já repórter do antigo Diário Popular certa vez fui entrevistar uma mulher acusada de ser uma serial killer. Contra ela pesava a acusação de mais de uma dezena de assassinatos. Era uma prostituta bem bonita, vistosa, com longos cabelos tingidos para parecerem loiros. Lábios protuberantes, olhos castanhos profundos, pele alva. Ela dava expediente em uma das muitas esquinas da Zona Sul de São Paulo e devia ter uma clientela de respeito, pelo menos a julgar pelas vítimas. A Polícia demorou em chegar até ela. Principalmente porque não havia sinais de latrocínio. As vítimas eram encontradas em seus veículos, em lugares ermos, muito distantes um dos outros, apenas com a jugular cortada.

Quando falei com ela no Presídio Feminino do Hipódromo se me apresentou uma menina. Vestida em um daqueles horríveis macacões, sem qualquer sinal de glamour, ela me contou que não suportava a ideia de ser abandonada após o ato sexual e de que sempre se sentia apaixonada por alguns de seus clientes. Nesta entrevista vivi um dos episódios mais impressionantes da minha carreira. A conversa avançava inquietante quando ela decidiu assegurar que eu tivesse dela a visão da mulher irresistível e atraente que era.

Convenhamos que naquele ambiente, vestida daquela forma, sem qualquer resquício de feminilidade, uma mulher que havia matado 12 com uma singela gilete, seria difícil imagina-la uma femme-fatale. Pois a menina escondeu o rosto no cotovelo e quando o revelou me provocou arrepios tremendos. Transformara-se em um objeto de desejo capaz de provocar desejos incontroláveis.

Fiquei muito perturbado no final da entrevista e ainda me lembro de que aquele personagem que se chamava Ana ficou muito tempo na minha cabeça. Mais perturbado fiquei ainda quando soube que ela havia matado mais três companheiras de cela, até que finalmente alguém decidiu tirar a sua vida.


Angela Diniz, a pantera: assassinada em Búzios por um amante enlouquecido 



Outra história marcante dos meus tempos de repórter foi a Ângela Diniz, a pantera mineira, e Doca Street. O país inteiro ficou convulsionado. Dois julgamentos, dois juris, um absolveu e outro condenou. Acompanhei os dois e tive convicções diferentes.

Para quem não se recorda ou não conhece a história, Ângela era uma socialite mineira que se envolveu com um pseudo playboy, Doca, em Búzios, no Litoral Norte do Rio. Durante algum tempo, a pantera usou de todos os seus recursos para seduzir o galã. Até que conseguiu. Quando o rapaz estava completamente apaixonado, dependente, subjugado, passou a humilha-lo, expondo-o a bacanais e outros requintes de sordidez. Ao final, ele descarregou seis balas de um 38 no corpo franzino de Ângela. Foi condenado e cumpriu pena.

Encontrei-o como um vendedor de carros usados na Boca de São Paulo. Não resisti a uma pergunta: “Cara porque você não caiu fora? Não viu a armadilha que estava”.

- Vi sim e tinha consciência do que estava acontecendo. Mas, eu amava Angela!

Durma-se com um barulho destes.

O caso mais abjeto e revoltante, como não poderia deixar de ser, testemunhei aqui em Brasília. E como era de se esperar, todos os envolvimentos ficaram longe de ser esclarecidos por uma razão muito simples: os fatos envolviam não só paixão como poder e dinheiro. Um coquetel para lá de explosivo.

José Carlos, de camisa vermelha: picareta cruel
José Carlos Alves dos Santos era um simples consultor do Senado que trabalhava na Comissão de Orçamento. Já se sabia de seu envolvimento com uma quadrilha de parlamentares que manipulavam seus interesses. Também se sabia de seu envolvimento com uma secretária de uma das grandes empreiteiras do país. Havia aquela história de dinheiro sob o colchão, tráfico de drogas, a garçonniere que ele mantinha para eventuais encontros não só com a amante, mas com o que aparecesse na sua frente. Nada disso foi apurado a exaustão e não me lembro da prisão nem mesmo do parlamentar que se safou alegando que havia ganhado na loteria umas dez vezes. Todo o frisson ficou concentrado no desaparecimento de sua esposa, ela também funcionária pública, uma mulher belíssima, a julgar pelas fotografias, que 
simplesmente havia evaporado.

José Carlos era hábil e sedutor. Não só convencera os repórteres, mais precisamente as repórteres de que era apenas um joguete nas mãos dos poderosos, como sugerira que a esposa o havia abandonado e teria fugido com um amante. O sempre atuante senador Eduardo Suplicy chegou mesmo a viajar a Nova York, onde um estranho informante garantira que ela estava escondida.
Um estranho personagem desta história, o detetive particular Lobo, especialista em investigações pessoais, entrara na história porque José Carlos suspeitava que sua amante, a tal secretaria da empreiteira o traia, ou era falsa em relação aos seus sentimentos, o que parecia bastante lógico, e havia contratado o investigador para afastar suas suspeitas.

Por alguma razão Lobo saiu da história ou do foco dos jornalistas e acabou preso na Papuda, suspeito de um outro crime que não tinha nada a ver com nada.

Fui entrevista-lo numa manhã. Ele se comportou maravilhosamente bem. Conversamos muito sobre o poder de sedução de José Carlos, os envolvimentos, a certeza que ele tinha que a amante era plantada mesmo pela empreiteira, que o irmão dela, piloto de aviação comercial, estava mesmo envolvido em narcotráfico. Até que a conversa enveredou pela personalidade de seu contratador, o próprio José Carlos.

- Nunca vi um homem tão mau.

- Como assim?

- Fui contratado para enterrar a mulher dele. Ele levou-a a um restaurante para jantar, aparentemente tentou matá-la e me entregou o corpo envolto em uma lona para enterrá-la. Quando eu já estava despejando a terra para cobri-la na cova, reparei que ela ainda respirava. Fui avisar o cara. Ele ficou muito puto. Pegou uma picareta e não teve dúvidas, abriu a cabeça dela.

Alguns dias depois, Lobo levou a polícia até o local onde enterrara o corpo da mulher de José Carlos. Sua cabeça estava rachada pelo golpe da picareta.
José Carlos foi julgado, condenado e cumpriu pena. Perguntei a ele:

- Você não se deu conta do que fazia com a mãe de seus filhos?

- Eu a amava, profundamente, não suportava a ideia de que ela visse no que me transformei.

Outra história interessante me foi contada pelo meu amigo e advogado Duda, lá de Recife.

Foi numa daquelas madrugadas quando editávamos o programa político da campanha de Carlos Wilson para o Senado. Duda contou que um colega seu de nome Paulo era bem casado, advogado notável, com a vida acertada. Casado com uma mulher maravilhosa, pai de três filhos. Acabou seduzido por Cristina, um destes tipos fatais, irresistíveis, casada com um policial, mãe de duas filhas.
Cristina claramente queria se aproximar de Paulo para ascender na carreira que desempenhava no fórum. E foi o que aconteceu. Durante oito anos, os dois mantiveram uma vida paralela. Só os amigos mais íntimos sabiam das aventuras que perpetraram pelas escadas do fórum de Recife e por todo o circuito de motéis da cidade.

Claro que a paixão de Cristina por Paulo se arrefeceu. E ela descobriu que seu poder de sedução não se aplicava apenas a um amante.

Paulo foi ferido no seu orgulho e não sabia o que fazer com a paixão que nutria de forma crescente por Cristina. Passou a coletar fotos e situações que indicavam a vida paralela dos dois. Não satisfeito passou a segui-la e a documentar os pequenos flertes e, às vezes, as aventuras que ela se envolvia com juízes, promotores e altos funcionários da Justiça.

Um belo dia, Cristina o chamou para almoçar na Casa da Odila. Disse para ele em meio a garfadas de uma vaca atolada que queria acabar o relacionamento com ele. Que não sentia mais nada por ele, que não fosse respeito e admiração por tudo o que ele havia feito por ela. Que pretendia investir em seu casamento, etc....

Paulo ficou possesso. Estava preparado para o desenlace, mas não se conformava com o cinismo, o ar de moça ingênua, como se ele fosse um tonto que não sabia o que estava se jogando. Foi muito claro. Quase meridiano:

- Eu vou te destruir. A ti e a carreira que você criou. Vou destruir o seu marido, os seus amantes, vou montar um escândalo de tal proporções, que você será discriminada na sociedade, vai perder o seu emprego e ainda vai ficar sozinha.

Cristina em um primeiro momento não acreditava em Paulo. Achava que tudo sempre se resolveria com um café, uma conversa, uma piscadela.

Paulo passou a jogar pesado. Estava magoado, ferido mesmo.

Finalmente Cristina percebeu que havia se envolvido em uma teia de aranha da qual não havia como sair. Até que numa noite, num café em um shopping em Boa Viagem abriu o jogo:

- Paulo, muito bem, o que eu posso fazer? O que nós podemos fazer para sair desta situação.

Paulo sabia bem o que queria:

- Você vai se separar do seu marido, dos seus filhos, e eu vou fazer o mesmo. Vamos mudar de cidade e você vai viver comigo pelo resto da vida do jeito que eu quiser.

Cinco anos depois, a Polícia encontrou os corpos já putrefatos de Paulo e Cristina em um pequeno sobrado na cidade de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata. Os dois morreram envenenados.

Cristina deixou uma carta, quase um livro, em que relatou os cinco anos em que viveu isolada com Paulo. Ele passou o tempo todo a torturando psicologicamente. Praticamente tirou-a de circulação e mantinha-a confinada em casa. Às vezes avisava que iam sair e pedia que ela se arrumasse toda, apenas para ter o gosto de despi-la quando chegava a casa.

Outras vezes presenteava Cristina com biquínis extremamente provocantes e a levava ao clube, onde provocava tremendo frisson, e depois a confinava novamente em casa.

Neste tempo, Paulo usou e abusou de Cristina. Não lhe permitiu nada que não fosse servir a ele sexualmente.

Até que Cristina começou a envelhecer, começaram a aparecer algumas rugas, o cabelo liso e castanho começou a mostrar mechas brancas. As nádegas empinadas começaram a cair. Ela engordou. Os olhos azuis perderam o brilho. E Paulo deixou de ser tão frequente. Passou a chegar tarde a casa e a se divertir no meretrício local.

Numa manhã, Cristina pediu um pouco de cianureto do soldador que arrumava o portâo da vizinha. No dia seguinte diluiu-o no café. Paulo morreu instantaneamente com a xícara ainda na boca. Ele entornou o resto, goela abaixo, morreu em seguida. Os corpos dos dois só foram encontrados no dia seguinte.

“Eu tolerei tudo. Submeti-me a ele, aos seus caprichos e as suas taras, porque o amava de paixão. E só descobri isso quando viemos para cá. Mas, não podia suportar a indiferença. Se ele não fosse só meu, não seria de mais ninguém” – escreveu Cristina.

Se essa história é verdade ou não, pouco importa, mas o dr. Eduardo, o Duda, contava ela com vigor e detalhes impressionantes que nos animavam naquelas madrugadas tensas da campanha.


Charlotte Rampling e Dick Bogart: Cavani vai fundo na dependência da paixão 


Esta história de Paulo e Cristina sempre me leva ao clássico de Liana Cavani, O Porteiro da Noite, um dos melhores filmes que eu já vi. Liana é destas diretoras que não tem meio termo, ou se ama ou se odeia. Eu amo.

O Porteiro da Noite conta a história da mulher de um notável maestro que vai a Praga reger uma ópera de Mozart. No hotel onde o casal está hospedado, ela se sente perturbada quando descobre que o porteiro da noite era um ex-soldado alemão, que a seviciava quando era menina em um campo de concentração para judeus.

Em um primeiro momento, a mulher experimenta uma sensação de horror. Mas, quando se encontra com o porteiro e descobre nos seus olhos a chama do desejo e das lembranças, sente-se desta vez imbuída do poder de sedução e se entrega para ele, exigindo que ele pratique com elas as mesmas sevicias dos tempos do horror.  O final.... Bem assistam o filme.

Dizer que a mente humana tem escaninhos indecifráveis pode soar como livro de auto-ajuda e prejudicar o meu texto, ou transformar esta reflexão em uma “tolice” como diz uma amiga minha muito querida, leitora voraz deste blog.  Mas, nesta semana eu disse a minha analista, a doce Lúcia Helena, que eu me sentia mau. Que havia ligado o modo foda-se e que não iria mais perder tempo tentando entender a alma humana, ou melhor, o comportamento daqueles que me rodeiam.  Mas, neste sábado trombei com a imagem do palhaço vivido pelo James Stewart no filme do Cecil B. de Mille e me pus a refletir.

A minha geração consagrou o amor livre de Sally Bowles, de Cabaret, de Bob Fosse. Na verdade lutou pelo fim da posse, da propriedade humana, do conceito careta de é meu, é seu.  Ainda me lembro das noites frias do Blue Riviera, quando a gente sabia como entrava e não sabia com quem saia. E tudo acabava numa xícara de café quente, pela manhã, sem cianureto, é claro.

A vida nos surpreende, para melhor e para pior. Iniciei com a Lúcia uma viagem pela culpa e pelo medo. Estou ávido para retomar o assunto. Para terminar, outro dia encontrei por acaso uma amiga queridíssima, colega de quatro costados na redação, que me contou estar vivendo um tórrido caso de amor com um ex-piloto moçambicano, anti-Samora.  Confessou-me que jamais em tempo algum perguntou a ele porque lutou contra a revolução em Moçambique. Mas, esta criatura, que, aliás, merece toda a felicidade do mundo, certa vez largou tudo. Um casamento com um alto funcionário do Banco do Brasil, emprego uber bem remunerado, conforto e comodidade e foi viver no sertão da Bahia com um motorista de caminhão. Aliás, uma motorista de caminhão.

Claro. Não deu certo e ela voltou para os escombros que havia deixado. Reconstruiu tudo e me pareceu feliz. Que bom!

domingo, 4 de setembro de 2011

O adeus de nosso guerreiro






Entre as muitas categorias de jornalistas, que começa com a divisão primária entre os bons e os maus, há aqueles que, a despeito de manterem sua correção, não escondem que se dedicam a uma causa política ou humanitária. O mais famoso deles, sem dúvida, é John Reed, socialista convicto e que nos premiou com dois clássicos imperdíveis, México Rebelde e Os 10 Dias que Abalaram o Mundo.

O jornalismo brasileiro perdeu na manhã de ontem, sábado, um destes profissionais competentes, éticos, que dedicaram sua carreira a uma causa e cujo histórico de luta tem uma linha constante: a defesa da liberdade e a causa da justiça.

Chico Daniel nasceu no Rio Grande do Sul, mas passava ao largo do provincianismo gaúcho. Suprema heresia: torcia entusiasticamente para o Corinthians. Era um cidadão brasileiro assumido, que jamais chamou para si o privilégio de ser o único, o maior ou de ter tido uma revelação que o distinguia dos demais.

Era um guerreiro, um lutador que acreditava no valor da liberdade, no confronto contra os padrões de uma sociedade hipócrita. Mas, estava longe de ser um exibicionista.

Reagia como um leão as provocações de mau gosto e se divertia com as contradições do poder e dos poderosos.  Mestre na arte de ensinar tinha a paciência de iluminar as mentes imberbes com seu conhecimento. Foi ele quem começou a preparar a equipe de jornalistas do Ministério da Educação, formada em sua maioria por jovens inexperientes, e que agregou todos em torno de um objetivo.

Chico era um mestre nato. Sua obsessão era a célebre cena de Stanley Kubrick em 2001 Uma Odisseia no Espaço, quando o osso transformado em arma de ataque e defesa do homem pré-histórico é lançado ao espaço e se transforma em uma caneta imobilizada pela ausência de gravidade em uma nave espacial.
 “Como o cara conseguiu sintetizar a evolução de milênios em um corte?” – perguntava.

Devo ao Chico, meu primeiro chefe de redação no MEC, a descoberta da Adriane Klamt, sua conterrânea que hoje ocupa a sua função. A formação inicial da Leticia Tancredi, da Luciana Yonekawa, da Manuela Frade, da Maria Clara Machado e de muitos outros profissionais que passaram ou ainda estão por lá.


Numa semana em que se foram Rodolfo Fernandes, José Meirelles Passos e Chico Daniel só posso dizer que a tal redação do Paraíso está ficando super povoada. Chega tá legal!  Já tem gente demais.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Adeus Pepe. Nos veremos na redação do paraíso


Eu e Pepe em 1994, em um restaurante de Georgetown: que saudades!

Soube na quinta-feira, no Rio, que quando o Jornal Nacional informou sobre a morte de José Meirelles Passos – Pepe para os íntimos, Meirelles o nome de guerra – todos os colegas da redação aplaudiram com entusiasmo e reverenciaram o amigo e o colega que nos deixou nesta semana.

Pepe era mesmo um amigão. Tratávamo-nos por compadres. Passávamos horas conversando sobre Graham Greene, Hemingway, Borges, Cortazar, Garcia Marques, Orwell e Gay Talese, uma de suas obsessões.  Discutíamos jornalismo com entusiasmo.

Ele era um obstinado. Ainda me lembro que não raro enfrentávamos madrugadas difíceis. Esperávamos a edição de nossas reportagens na Istoé, pelo Tão ou pelo Mino, e saímos ao brilho do primeiro sol. Pepe ainda iria até a Estação Jabaquara pegar um ônibus para ir para casa. Ele morava em Santos!

E não importava se fizesse sol ou chuva, às 14 horas de sexta-feira lá estava ele para conferir nas provas a reportagem que havia fechado na noite anterior.

Pepe era um amigo incrível. Ainda me lembro quando ele se foi para Washington como correspondente de O Globo. E do encontro que tivemos na Copa do Mundo, em 1994. Havíamos ido para a capital americana, eu e o Silvio Lancellotti, para reportar Itália e México, 1 a 1. Na véspera, fomos a um restaurante em Georgetown, e nos esbaldamos de comer King Crab, tomar Samuel Adams e Jack Daniels.

Até hoje não me lembro como fui parar no hotel. No dia seguinte, Lancellotti amargava uma ressaca tremenda.

- Nunziotto, como chegamos aqui? - dizia-me o gordo Lancellotti no café da manhã.

- Pepe, só pode ser.

Depois nos encontramos na semifinal no Giant Stadium, em Nova York. Itália e Bulgária. 3 a 1 para os azzurros.

Na véspera, o Lancellotti implicou que queria comer a famosa mozarela de Hoboken. Pois viramos a cidade natal de Frank Sinatra, até achar a iguaria na estação ferroviária, onde degustamos largas porções regadas com cerveja Guiness e, claro, Jack Daniels.

Ficamos tão bêbados que eu demorei mais de hora para encontrar o Hilton de Newark, onde estávamos hospedados.

Foi uma noite memorável!

Pepe tinha uma calma soberana e dava a impressão que estava sempre degustando a vida. Jamais perdia a calma (que inveja!).

Perdi um amigo querido e um colega que me servia de referência para o jornalismo e para a vida. Que pena!

Como dizia a Anna Muggiatti, no paraíso dos jornalistas existe uma redação para a qual todos estamos convocados. Mas, é uma redação especial para cada um, onde a gente só vai trabalhar com as pessoas de quem gostamos.

Pepe, espero em Deus te encontrar na minha redação.