domingo, 30 de outubro de 2011

De que lado Deus está?

Nolte e Cassidy em Under Fire: o dilema de tirar uma foto que mudaria a história






Em um filme que ganhou grande polêmica no meio jornalístico nos anos 80, Under Fire, o diretor Roger Spottiswoode conta a história de um grupo de repórteres que andava pelo mundo cobrindo revoluções e insurreições populares. O ponto nevrálgico é quando um fotógrafo chega a um acampamento dos revolucionários sandinistas em uma selva da Nicarágua e descobre que o líder da revolução, um certo Rafael, havia sido morto em uma emboscada pelo Exército Nacional. O governo do uber corrupto presidente Anastazio Somoza de posse desta informação conseguiria obter dos Estados Unidos novos armamentos, reforçaria as forças de repressão e com isso a ansiada revolução demoraria mais 10 ou 20 anos.

Os comandantes da revolução, por sua vez, apresentam ao fotógrafo a possibilidade de simular uma foto com o cadáver de Rafael, desmentindo os rumores de sua morte. Com isso, o governo não conseguiria as armas e cairia nos próximos dias, dando fim a um regime bárbaro que durava mais de duas gerações.

No filme, o repórter fotográfico, vivido por Nick Nolte,  hesita, mas acaba fazendo a foto. Somoza não consegue as armas. Mais tarde se enrola com a execução sumária de um jornalista americano. E, enfim, a revolução sandinista triunfa, com a fuga de Somoza para Miami.

O filme é uma caricatura fantasiosa do que ocorreu na Revolução Sandinista. Até diverte.Tem Johanna Cassidy, linda como sempre, Jean Louis Trintignant, Gene Hackman e Ed Harris.  Mas seu grande mérito é colocar na cabeça de todo jornalista uma dúvida cruel: que comportamento nós, jornalistas, teríamos diante do mesmo dilema. Bateríamos ou não as fotos simuladas de Rafael?

Esta situação é bastante emblemática. Quantas vezes nos deparamos com fatos que contrariam o nosso desejo, ou até mesmo nossas convicções? Inúmeras.

Quantas vezes sentimos correr nas veias a possibilidade de interferir diretamente na vida de uma pessoa, um grupo de pessoas ou ainda de milhares? E aí? Qual é o comportamento que devemos adotar?

Gol de Ghiggia: e se um fotógrafo tirasse para a linha de fundo?



Vamos pensar numa situação hipotética, menos grave. Um fotógrafo que estava atrás do gol de Barbosa naquele célebre final da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã. Quando Ghiggia recebe a bola nas costas de Bigode e arma o tiro cruzado que resultaria no segundo gol uruguaio, o jornalista se levanta, se adianta e tira a bola para a linha de fundo.

O árbitro teria que apontar tiro de meta. O Brasil ganharia a Copa. Teria sido evitada a frustração de milhões de brasileiros. E o fotógrafo? Iria para a galeria da glória ou da infâmia?

Hermes, o deus da comunicação, como se sabe, é coxo. Levou uma porrada de Zeus ou quando lhe informou que a deusa Erda o havia traído.

Pobre Hermes apanha sempre! Zeus perdoou Erda. Mas, o boquirroto ficou coxo para sempre. E ninguém nunca se debruçou sobre os dilemas, as angustias de quem, afinal, tem que informar o que está acontecendo.

Na crise dos mísseis em Cuba, o presidente Kennedy manteve o seu porta-voz alheio ao que estava acontecendo, até como uma forma de preservá-lo: “Ele não pode saber. Se ele souber, a imprensa toda saberá” – justificou o comandante americano.

Os publicitários, por sua vez, lidam melhor com isso. Certa vez fui participar de um brain storming numa agência do Rio que cuidava da conta da Pepsi-Cola. Gerei um mal estar danado porque eu não gosto de Pepsi. Gosto de Coca.

Serviram-me Coca. Com um cuidado tão grande que parecia uma operação sigilosa. Poderiam ter me servido só água mineral, sei lá!

Um amigo meu publicitário andava para baixo e para cima em um top line da General Motors montado em São Caetano do Sul. Quando lhe perguntei por que ele não comprava um carro melhor, me respondeu apenas que atendia uma parte da conta da empresa americana. Dias depois perdeu a conta e comprou um importado japonês.

Nós, jornalistas, não conseguimos conviver com isso desta forma. Ainda que fossemos obrigados a escrever laudas e laudas elogiando a Coca e a GM, certamente viveríamos um eterno questionamento sobre a qualidade de ambos os produtos. Em outras palavras, o fato de trabalharmos, por exemplo, no grupo Abril, no Estadão ou nas Organizações Globo e defendermos a linha editorial destes potentados, isso não quer dizer necessariamente que concordamos com ela.

Certa vez uma repórter do Correio Braziliense, que eu só revelo o nome sob tortura, constatou que o programa Bolsa Escola do governador Cristovam Buarque não atingia os resultados pedagógicos que ele apregoava. Como o jornal dava sustentação a ele, a jornalista foi demitida. Competente como é, foi recontratada quando os ventos mudaram no Buriti.

Kaigang: índio não planta. Indio não cria. Caça e colhe.

No final dos anos 70, acompanhei um episódio que marcaria muito a minha vida. A FUNAI queria retomar uma gleba de terras habitada por colonos em uma área que deveria fazer parte da reserva indígena dos kaigangs no município de Laranjeiras do Sul, a meio caminho entre Curitiba e Foz do Iguaçu. A trapalhada havia sido perpetrada por um nada saudoso ex-governador do Paraná, chamado Moisés Lupion.

Esta criatura meiga que governou o Paraná entre 1947 e 1951 e depois novamente entre 1956 e 1961, simplesmente havia loteado uma reserva indígena, assentado colonos por lá. Quase 20 anos depois, a FUNAI, os kaigangs e a Policia Militar praticamente arrancaram as famílias a força, obrigando-as a deixar para trás as melhorias que haviam construído, as lavouras que vicejavam e a criação. Largaram crianças, idosos, homens e mulheres literalmente na estrada. Pouco tempo depois estava tudo destruído, as lavouras dizimadas, a criação perdida e as fazendas abandonadas. Perguntei ao cacique kaigang por que eles tinham feito isso.

- Índio não planta. Índio não cria. Índio caça e colhe.

Registrei tudo e escrevi uma grande reportagem. Uma colega que leu me questionou diretamente:

- Você vai publicar isso? É contra a causa indígena.

Publiquei.

Outro dilema dos jornalistas tem a ver com a questão de que matérias que informam ações de políticas públicas do governo são sempre taxadas de “chapa branca”. Em algumas redações, a maioria eu diria, em dúvida, contra. Sempre contra o governo. Afinal, somos um bando de oportunistas tentando sacanear os cidadãos, arrancando-lhes o rico dinheirinho dos impostos e atordoando-os com burocracia e burocratas.

Cá entre nós. E não somos mesmo? O problema é que de uma maneira geral, o Estado é pesado, confuso, complicado. A vida da maioria das pessoas é simples, marcada por uma prática linear. Direta. A gente trabalha, ganha por isso. Compra o que pode e dá aos nossos filhos aquilo que está dentro de nossas posses. Ai vem o governo e complica tudo: isso pode, isso não pode.

O difícil é remar contra a maré. Lutar no front interno do governo contra o lampeduzianismo renitente de que é preciso mudar para que tudo fique do jeito que está. E no front externo, para mostrar que nós somos diferentes.  Às vezes é possível. Outras não.

E o jornalista que é obrigado a extrair uma notícia deste dilema?

Exigir do pobre repórter que além de entender o intrincado dia-a-dia e tenha a capacidade de traduzir em linguagem corrente o que está acontecendo, ele também capte as intenções, é muito difícil. Exige preparo, informações, cultura geral, boa vontade e tempo, coisas que ele invariavelmente não tem.

Daí vem as notícias enviesadas e a conclusão de que tudo não passa de uma conspiração.

E ainda tem esta praga chamada sensacionalismo ou esta tendência maldita de transformar as notícias em entretenimento. Em sua maioria, os jornalistas são honestos. Podem ser confusos, atrapalhados e mal informados.

Diante do dilema de tirar ou não tirar a foto falsa do Rafael, os militares cumpririam ordens, os advogados analisariam se isso interessava a causa do seu cliente, os políticos tratariam de tirar proveito, os publicitários avaliariam a possibilidade de associar tal problema a uma campanha publicitária ou ainda como poderiam se promover com isso e os jornalistas hesitariam.

Não é pouco.

Blumentritt: decepção com a posição de Deus

Ter consciência de que há um lado certo e de que se está rigorosamente nele é muito, mas muito complicado. Nos momentos que se seguiram a invasão aliada na Normandia, em 6 de junho de 1944, o general Gunther Blumentritt, ordenança do marechal Von Runsteadt, comandante das tropas de ocupação, entrou em desespero quando soube que Hitler dormia e que ninguém tinha coragem de acordá-lo. “As vezes eu me pergunto de que lado Deus está”.

A história mostraria mais tarde que, certamente, não estava do lado dos alemães. Blumentritt era um general da Wermacht, acreditava que os alemães haviam recebido de Deus a missão divina de dominar o mundo. Provavelmente sofreu muito ao descobrir que as coisas não eram bem assim e acabou no tribunal de Nuremberg.

Exigir de um repórter que ele saiba de pronto de que lado Deus está, o tempo todo, é exigir demais.

Enfim, eu tiraria a foto do Rafael, não tenho dúvidas disso. Mas, passaria o resto da vida diante da dúvida se, afinal, havia tomado a atitude certa.  

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Eu quero ser Renata Cafardo



Renata: jornalista cuja atuação em 2009 faz com
que todos queiram fazer como ela




Certa vez um cidadão adentrou a redação do vetusto diário O Estado de S.Paulo, o Estadão, como diz o Estimado, e comunicou ao chefe de reportagem seu desejo de assaltar um banco. Para tal, estava disposto a conceder ao jornal a primazia de documentar o furo jornalístico que revelaria a fragilidade da segurança do sistema bancário.

O competente chefe de reportagem chamou então um solerte e veterano repórter, aliás boa-praça, um feroz repórter fotográfico, assinou a requisição do veículo da reportagem e saíram os três fagueiros com o objetivo de assaltar um banco.

Escolheram a dedo uma agência do Banco Itaú na avenida Paulista. Tomaram uma posição estratégica. O cidadão entrou na agência portando uma caixa de sapatos, procurou o gerente da agência e anunciou entre dentes que portava uma bomba e que mandaria tudo pelos ares se não recebesse todo o dinheiro disponível nos cofres.

Saíram da agência, tomaram o carro da reportagem e voltaram para a redação no prédio faraônico do Bairro do Limão. Atrás deles a polícia. Todo mundo foi parar na delegacia.

No ano passado uma amiga minha, do Jornal do Comércio do Recife, grávida do João, usou como desculpa o barrigão para ir ao banheiro e transmitir o tema da redação do Enem para o jornal. Além do fato de ter a primazia de revelar o assunto, nada. Todos os estudantes estavam isolados na sala e não poderiam ser atingidos pela informação.
Este ano coube a um solerte repórter de O Globo perpetrar o mesmo feito. E mais uma vez, verbos e advérbios inúteis para dizer o que?

Aliás, este colega foi autor de uma dessas barrigas de vento que tanto se repetem na imprensa tupiniquim. Nesta semana, ele ficou horrorizado com o fato de que os estudantes que prestariam exame na Unirio, na Urca, haviam recebido o endereço errado. Cerca de 150 metros adiante, na mesma rua. Nem mesmo a informação de que todos os 1.120 estudantes inscritos foram avisados foi suficiente.

Hilário mesmo foi o depoimento de uma menininha, daquelas que jamais atravessaram o Túnel de Botafogo: “Fiquei tão transtornada com o comunicado”.

Melhor fez o glorioso portal UOL. Ficaram perplexos com o fato de que, mesmo sabendo que estava quebrando uma norma, um fotógrafo se misturou aos estudantes para fotografar a distribuição das provas. E daí? Nada. As fotos mostram apenas que os aplicadores cumpriram rigorosamente as missões que deveriam cumprir. Mas, mesmo assim, sapecaram o título: “Apesar da quebra da segurança no Ceará, MEC diz que prova foi tranqüila”.

Paulo Saldaña, do jornal do mausoléu faraônico da Marginal, lavrou um tentaço. Fez uma bela matéria contando como foi arregimentado na manhã de sábado como fiscal do Enem. Bem escrita e bem apurada. A Cesgranrio, como disse a nota do consórcio, considerou os préstimos dele bem razoáveis. Ou seja, ele pode se inscrever em eventos futuros sem problemas.

Luís Nassif, um dos grandes expoentes da minha geração, postou em seu blog: “Em seu afã de criar motivos para enxovalhar o Enem, a grande imprensa está passando dos limites como nunca se viu. Perpetrar crimes para forjar fatos é algo que não se via, pelo menos não de forma tão escancarada”.

Nassif, meu irmão, eu gostaria muito de acreditar que realmente o afã é de destruir o Enem, o Fernando e o governo Dilma. Mas, não é. É incompetência mesmo. É a tentativa de reeditar o feito notável da Renata Cafardo. Ela sim uma jornalista brilhante e que teve o mérito de revelar o furto da prova de 2009 e provocar o seu cancelamento.
Só que a Renata é linda, competente e resolvida. Esbanja simpatia e talento. Nem todo mundo pode ser Renata Cafardo.


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O DIA D DO ENEM

6 de junho de 1944: invasão aliada na Normandia, um quinto do ENEM

Na noite do dia 5 de junho de 1944, em Londres, antes de decidir dar a ordem – GO! – para a invasão da Normandia, o general Dwight Eisenhower repassou todas os itens, a logística, as linhas de abastecimento, a situação da maré em cada uma das praias, as condições de vôo, a direção dos ventos, entre outras questões. Ao final perguntou ao general Bedell Smith:

- E se tudo der errado?

- Será um inferno!

Como se sabe, apesar de ser a mais planejada de todas as operações militares da história, com cerca de um milhão de soldados, houve 37 mil mortes e 172 mil desaparecidos. Isso porque deu certo!

Estatisticamente podemos dizer que 20% de baixas é bem aceitável, principalmente quando comparados aos números da Primeira Guerra e desde que nós mesmos não estejamos incluídos neles.

A cobertura jornalística destes grandes acontecimentos é sempre marcada por uma expectativa muito intensa. E, evidentemente, há que se guardar as devidas proporções. Não é toda hora que se invade a Europa. Mas, eu ainda me lembro da cobertura da implosão do edifício Mendes Caldeira, na junção da praça da Sé com a hoje extinta praça Clovis Bevilacqua.

Foi um grande frisson na cidade, até que na manhã de um domingo o prédio de 30 andares veio ao chão e fez subir uma imensa nuvem de poeira. Anos mais tarde, eu experimentaria uma sensação muito mais intensa ao percorrer as ruas de Beirute em um taxi e ver as edificações da cidade virem abaixo como se fossem feitas de papel, obra e graça das forças aéreas francesas e americanas. Aliás, até hoje não entendi porque a cidade tinha que ser bombardeada se não havia risco de ocupação. Mas, enfim....


Mendes Caldeira: frisson pela primeira implosão



Neste final de semana me cabe o papel de oficial de estado-maior numa das maiores operações civis do país: a realização de uma prova para nada menos do que 5,3 milhões de candidatos. O Enem 2011.

Estou absolutamente convencido que quando o ministro Fernando Haddad decidiu acabar com o vestibular e emprestar ao exame o poder de habilitar um candidato para o ensino superior, ele não tinha a menor idéia das forças poderosas que iriam brotar. A começar pelas chamadas classes médias, que não gostaram nada-nada desta idéia de que um estudante pobre poderia disputar a universidade pública em condições de igualdade.

Que absurdo é esse?

Além disso, tinha uma casta de professores de cursinhos, do ensino médio e até de universidades que completavam o seu orçamento nas famigeradas comissões de vestibulares. Dançaram.

Certamente o número de estudantes pobres que passaram a entrar no ensino superior, seja numa federal pelo SiSU (Sistema de Seleção Unificada), seja pelo Prouni (mais de um milhão de bolsas) ainda está muito aquém do que uma sociedade republicana, justa e igualitária poderia almejar. Mas, estamos no caminho.

Como os coleguinhas costumam escrever, “apesar de todos os problemas”, o Enem em duas edições garantiu o acesso a universidades e institutos federais de 166 mil estudantes. Cerca de 323 mil estudantes de baixa renda foram selecionados para o Prouni e mais de 528 mil foram certificados no ensino médio.

Números mais que expressivos, que consolidam uma política pública.
Neste ano, são 5,3 milhões de candidatos, mais de cinco vezes a força de ocupação da Europa naquele dia 6 de junho de 1944. E se a cabeça de ponte aliada não era superior, em linha reta, a 80 quilômetros, a prova amanhã será realizada em mais de 130 mil salas, 16 mil pontos de aplicação em 1.600 municípios.

Só o número de funcionários, eu incluído, que vão trabalhar na aplicação da prova é de 430 mil pessoas. Maior, com certeza, que os 380 mil soldados alemães que defendiam a França ocupada pela Alemanha nazista.

Sir Winston Churchill, o genial estadista e primeiro ministro britânico, costumava repetir um bordão do almirante Nelson, na célebre batalha da Dinamarca: “A Inglaterra espera que cada um cumpra o seu dever!”

Humildemente, nós todos brasileiros, também esperamos.
Além disso, torcemos para que os protagonistas habituais dos cinco minutos de fama, controlem o seu ímpeto.

Agora é o seguinte: GO!

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Uma onda que parece não ter fim

Porgy o mendigo aleijado de um cortiço na Carolina : personagem descontextualizado


Em termos de ópera, posso dizer que já vi “grandes” ousadias. Algumas bem sucedidas outras nem tanto. A mais insólita certamente foi do tenor italiano Nunzio Todisco, meu xará, em uma récita de Il Trovatore de Verdi, em Lima, no Peru.

Tudo transcorria mais ou menos, sem grandes expectativas, quando, no terceiro ato, um mensageiro avisa a Manrico que a zingara Azucena, sua mãe, estava presa no castelo e seria queimada viva. Verdi escreveu aqui uma das árias mais poderosas e difíceis de toda a sua obra, a célebre Di quella pira...

Todisco não se fez de rogado. Com um gesto interrompeu a orquestra e dirigiu-se ao público:

- Senhoras e senhores, atendendo a muitos pedidos no lugar de Di quella pira vou cantar O sole é mio.

Já vi uma montagem muito bem sucedida e divertida do Barbeiro de Rossini em que Fígaro estava caracterizado como Batman. Vi ainda uma Carmem loura interpretada pela saudosa e linda soprano francesa Francine Arrazou. Vi uma montagem muito interessante do Navio Fantasma, de Richard Wagner, ambientado no Muro de Berlim.


Porgy and Bess: Dueto do segundo ato
Nossa! A lista é enorme. Tive o privilégio de ver ópera até em garagem, nos tempos do Teatro Lírico de Equipe, na Avenida Paes de Barros, na minha Mooca.
Mas, honestamente nunca tinha ouvido falar em interferência nas histórias como se pretende agora na montagem de Porgy and Bess, em cartaz em Cambridge, Massachusetts, que deve chegar a Broadway em dezembro. A diretora Diane Paulus, que ganhou o Tony pela reedição de Hair, e a autora de teatro Suzan-Lori Parks (Pulitzer de teatro por Topdog/underdog) decidiram que a história de Du Bose Heyward, musicada por George Gershwin, com letras de Ira Gershwin, que estreou em 1935 e se constitui numa das mais impressionantes óperas do século XX, não está bem. A maneira de falar dos negros da Carolina do Norte soa falsa ou datada.


Incomoda a dupla o fato de que a história não explica porque Porgy é um mendigo aleijado ou porque Bess é uma viciada. Nas palavras da atriz Audra Mac Donald que vive o personagem de Bess, a ópera conta uma grande história de amor, que eles estariam dando vida. E até um happy ending. Ou seja, a tremenda cena final em que Porgy desesperado pede que virem o carrinho puxado por um bode em direção a Nova York, para onde a tresloucada Bess havia sido levada pelo traficante Spotin Life, e canta a soberba ária I’m on my way, foi para o ralo.

Jesusonabike, como diz uma amiga minha, que barbaridade é essa?


Stephen Sondheim, um dos mais celebrados compositores-letristas da Broadway, não se conteve e escreveu um artigo ao New York Times onde fez uma pergunta rigorosamente inquietante: “Quem disse que há em Porgy and Bess uma história de amor oculta precisando que um grupo de visionárias lhe dê vida?”


Bom diante de tanta imbecilidade, modestamente, eu tenho algumas sugestões:

  1. O clássico de Sófocles, Édipo Rei, poderia ser ambientado na Califórnia. E no final, nada de olhos perfurados. Jocasta e Édipo fugiriam para Acapulco e viveriam felizes para sempre.
  2. A célebre história de Tolstoi, que se tornou uma das óperas mais marcantes do final do século XX, Boris Goudonov, poderia ganhar cores mais realistas no regime soviético. Bastaria colocar um bigodão no tzar, transformar os boyardos em comissários do Soviet Supremo e, no final, a la Gorbatchov, pressionado pelo falso príncipe Dimitr, ele convocaria uma assembléia constituinte. Nada de morte ou de fazer o pretendente desmascarado saltar das torres do Kremlim.
  3. O musical West Side Story, de Leonard Bernstein, também precisa ser atualizado. Nada de guerra entre as gangs. Jets e Jaws criariam uma torcida organizada do New York Mets.
  4. O Wozzeck, de Alban Berg, também deveria ser reescrito. Nada do barbeiro ensandecido matar a mulher ao som de um piano desafinado. Para se vingar da traição, ele seduziria o tambor-mor do regimento, os dois abandonariam a mulher e se alistariam como voluntários no exército holandês.
Os irmãos Gershwin: reescritos para a Broadway

Prezadas Suzan e Diane: por que vocês não usam o talento que possuem para escrever algo novo. Mexer na história de Porgy and Bess com a pretensão de torná-la mais comercial e politicamente correta para a Broadway pode incluí-las no rol da infâmia.

Poucas óperas em toda a vasta história dos dramas líricos são tão perfeitamente bem constituída. Algumas canções como Summertime ou Strawberry Woman ganharam vida fora dos palcos. Ela é toda genial, a cena é genial, a música é genial, as letras são geniais, a história é genial, de tal maneira que mesmo cantada em um pretenso inglês falado nos cortiços da Carolina do Norte ganhou o mundo. Basta lembrar que o primeiro e mais famoso Porgy, foi o grande Paul Robenson, um dos maiores barítonos negros de todos os tempos.

Será possível que esta onda de mediocridade não tem fim, nem limite?


click aqui para ouvir excertos de Porgy and Bess pela Opera de Los Angeles.


  

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um feriado complicado






O santuário de Aparecida: o maior templo mariano do mundo


Doze de outubro é o chamado feriado problema. Dia da criança, efeméride tipicamente comercial. Mas, é também o 529º aniversário da Descoberta da América, o dia que a humanidade descobriu que entre a Europa e a Ásia existia um modesto continente. O feito do almirante genovês, Cristovão Colombo, que navegava com a bandeira de Castela certamente está entre os mais notáveis da humanidade, equivalente a expedição da Apolo XI na Lua.

Mas, para nós brasileiros ou que vivemos no Brasil, este feriado é consagrado a Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Com efeito, nesta data, em 1717, um grupo de pescadores depois de passar o dia jogando a tarrafa nas águas barrentas do rio Parahyba, não conseguiu puxar nem um mísero peixe para o bote. Já estavam prestes a desistir quando enfim puxaram uma imagem de uma madona de cedro, sem cabeça. Lançaram a tarrafa de novo e eis que veio também a cabeça. Lançaram mais uma vez e os botes até emborcaram de tanto peixe.

A pequena capela construída nas margens do rio transformou-se hoje no maior templo mariano do mundo e num supermercado de fé impressionante.


Imagem de Aparecida: negritude do cedro nas aguas do Parahyba


Mas, a aparição da Virgem Aparecida no Parahyba é das mais inconvenientes. Pois vejamos, descoberta por pescadores, feita de cedro o que lhe dá a aparência de negritude, em uma região dominada pelo trabalho escravo e, portanto, exposta ao sincretismo religioso.

Claro que no século XVIII o culto mariano era tolerado, mas o Vaticano não tinha nem idéia onde ficava este tal de rio Parahyba e mal e mal estava ainda com severas feridas pela omissão no episódio do massacre dos Guaranys e a destruição de seus redutos, na bacia do rio da Prata. América do Sul era praticamente um assunto proibido em Roma.

É bem verdade que algum tempo depois reconheceu a aparição da Virgem, mas colocou o processo em um dos seus infindáveis escaninhos.

Veio a Revolução Francesa, Voltaire, a filosofia do estado laico, o surgimento da burguesia, em suma o século XIX, e a Igreja absolutista e arrogante de Julio II, aquele que não emprestou importância a expedição colombiana, ficou contra a parede. De tal forma que o papa Pio IX, na verdade Giovanni Maria Mastai-Ferretti, protagonista do mais longevo pontificado, 31 anos, sete meses e 17 dias, deixou de lado seus arroubos liberais e transformou-se no último defensor do poder político da santa madre.


Pio IX: Vaticano I e a infalibilidade papal
 Pio IX enfrentou os clamores da República Romana e perdeu os estados papais para o rei Victorio Emanuel que unificara a Itália. Assustado escreveu a encíclica Quanta Cura de dezembro de 1864, onde condenou 16 proposições que contrariavam a visão católica na época. Esta encíclica foi acompanhada pelo famoso Syllabus Errarum, que condenava as ideologias do panteísmo, naturalismo, racionalismo, indiferentismo, socialismo, comunismo e várias outras formas de liberalismo religioso tidos por incompatíveis com a religião católica.

Adepto fervoroso de São Thomas de Aquino e da Summa Pontifice em 1854 proclamou o dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria como sendo um dogma de fé da Igreja através da encíclica Ineffabilis Deus.

A pressão política e as novas ideologias assustaram tanto o Vaticano, que Pio IX instituiu o culto ao Sacre Coeur e convocou em 1869 o Concílio Vaticano I que consagrou a infabilidade papel como um dogma de fé.

Curiosamente depois desta contra-ofensiva romana, começaram a pipocar as aparições da Virgem na Europa: Lourdes e Fátima são apenas as mais famosas. Alguém se lembrou da Aparecida, que nestas alturas já era a Madona dos Romeiros e dos Tropeiros, e já desfilava uma série maravilhosa de milagres e promessas.

Em torno da modesta capela surgiu uma cidade, Aparecida do Norte. Mais tarde, a rodovia Presidente Dutra passaria por ela. Nos anos 70, iniciou-se a construção de uma basílica, afinal inaugurada em 1975. Eu estava lá. Era repórter do Diário Popular. Não havia nem a passarela, nem muito menos as torres tão visíveis. Apenas o átrio.

Eram mais de 500 ônibus de romeiros, mais carros, carroças, charretes, bicicletas. Não havia o estacionamento. Era um terreno baldio improvisado, com uma única saída. Cálculos primários falafvam em 250 mil a 300 mil pessoas.

A cidade não aguentou. Logo os esgotos começaram a estourar. Faltou água. Não havia comida. Para piorar formou-se uma tempestade tremenda com raios e relâmpagos. O Parahyba logo encheu e começou a inundar a cidade imprensando os romeiros contra a Dutra e as montanhas onde está o Cruzeiro.
Batia muita água. Acho que eu nunca vi uma chuva igual. O desespero dos romeiros era imenso. Os ônibus tentando sair do estacionamento acabaram se enredando de tal forma que ninguém conseguia sair.

Foi um horror sem tamanho. Houve pelo menos 200 mortes, fora a confusão, gente ferida, filhos perdidos.

No verão passado passei pelo mesmo cenário. A Basílica está terminada. É certamente o maior templo mariano do mundo. Há vários estacionamentos, com diversas saídas de emergência. Aliás, nesta quarta-feira mesmo que chova a valer, a cidade consegue ser esvaziada em minutos.

Há uma passarela ligando a nova basílica a velha capela na cidade. Só os mais devotos ainda sobem as escadarias de joelhos. A organização dos romeiros é perfeita. Uma tragédia como aquela não se repetirá nunca mais. E a Igreja de Bento XVI também não é a mesma de Pio IX. Ainda bem!  

domingo, 9 de outubro de 2011

O humor e as sub-celebridades que o tempo apaga




Sordi e Troisi: gênios do humor italiano do pós-guerra




Uma das coisas que aprendi na vida é que quando eu começo a fazer piadas e a rir de mim mesmo é porque superei aquela conjuntura. Humor diante da vida é fundamental para encará-la. Não se levar tanto a sério é fundamental para avançar. Esta digamos “filosofia” é típica de meus ancestrais peninsulares que evoluíram depois de duas guerras e uma série de trapalhadas rindo-se de si mesmos. Para ilustrar melhor poderia me reportar a imagem do grande ator Alberto Sordi e mais recentemente ao genialíssimo Massimo Troisi e até o contemporâneo Roberto Begnini, do qual confesso não morro de amores.

O papel do humor é corroer, superar, não é rebaixar ou diminuir. Não existe nada pior do que humorismo politicamente correto. O episódio protagonizado pelo ator Rafinha Bastos, do CQC, é um exemplo acabado de mau humor, machismo e preconceito. Aliás, como de resto todo o programa liderado por Marcelo Tas.

Some-se a isso uma dose cavalar de hipocrisia.

Mas, como este é o pais das sub-celebridades, da sub-cultura e da sub-sabe-se-lá-o-que, tudo bem, temos que conviver com isso e pronto.

Certa vez fui encarregado pelo Tão Gomes Pinto de fazer para a revista Manchete o perfil da novíssima atriz Thaís Araujo.  Como ela tinha 17 anos, a direção da TV do mesmo grupo esperava ela completar 18 para lançar com pompa e circunstância uma nova versão de Xica da Silva, a história da negra alforriada cuja sensualidade levou um par de portugueses das Gerais à loucura.

Foi uma completa tortura. O máximo que eu consegui tirar da jovem atriz foi uma relação entre africanidade e o tamanho de seus quadris. Mas, como papel aceita tudo... Bem, não me orgulho muito do resultado desta empreitada.

É impressionante como o brasileiro de classe média não tem humor. Ele adora rir-se dos constrangimentos e das situações inauditas vividas por aqueles inferiores a ele. Mas, quando chega nele... Êpa, espera ai...

A arte brasileira produziu comediantes extraordinários. Refiro-me a Oscarito e Ronald Golias como os mais impressionantes. Bastava olhar para a cara deles para sentir invadir uma agradável sensação de bem-estar. Grande Otelo, claro. Brandão Filho. José Vasconcelos, Chico Anysio. Jô Soares. E por trás deles, fazendo humor na máquina de escrever, o maior de todos, Max Nunes.

Os mais jovens desconhecem, mas o humor brasileiro de estilo, com graça, começou no rádio com a impagável PRK-30,  obra genial de Lauro Borges e Castro Barbosa. E a consagração veio com um programa chamado “Balança mas não cai”, totalmente criado e escrito por Max Nunes.

Capitão Gay: criação de Max Nunes e interpretação de Jô Soares
É da lavra de Max Nunes o célebre quadro do primo pobre e do primo rico, vividos respectivamente por Brandão Filho e Paulo Gracindo. É dele também a genial concepção do Capitão Gay, vivido por Jô Soares, e do Coronel Limoeiro, de Chico Anysio.

Jô Soares, aliás, antes de ser este chato de galocha, que se arvora como um Johnny Carson tupiniquim, era um brilhante escritor de humor. Foi ele quem concebeu e escreveu um dos melhores programas humorísticos da história, a Família Trapo, dirigido por Nilton Travesso e produzido pela Equipe A, da Tv Record, liderada por Tuta Amaral de Carvalho.

Certa vez perguntei para o gordo Jô como tinha sido a experiência de escrever para Golias e fazer gags para um personagem tão maravilhoso como o Bronco Dinossauro. Ele me respondeu:

- Inútil. Golias nunca seguiu um texto. Ele improvisava tudo.

Golias/Bronco: com paradinha
E foi na base do improviso que Golias, ao vivo no palco do Teatro Paramount, viveu uma das maiores gags que eu conheço: a célebre cena com Pelé, em que Bronco ensina ao rei do futebol a cobrar pênaltis com paradinha.

Não morro de amores pelo homem, mas certamente tenho que admitir que o velho Didi, vivido por Renato Aragão, é muito bom, no papel do retirante cearense que descobre com inaudito humor as maravilhas do Sul. Aliás, vejo até uma certa semelhança com o retirante de Troisi, que faz o siciliano em Milão.

Todo este modesto quadro do humor nacional apenas para concluir que Rafinha Bastos não faz falta nenhuma.  Volta com gáudio para a mediocridade de onde nunca deveria ter saído. Mais uma sub-celebridade para animar um mundo paralelo onde rola muito dinheiro, um relativo cenário iluminado, mas que com o tempo se apaga.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Rostropovich de pijama e a cantada na diva

Mstlav Rostropovich: um dos maiores cellos do mundo, símbolo da resistência 




É bem verdade que na carreira profissional de um repórter é preciso ter disposição, voluntarismo e muita, mas muita sorte. A história que eu vou contar a seguir tem alguns componentes curiosos e a confluência de talentos jornalísticos que permitiram uma experiência única.

Início de tarde na redação da velha IstoÉ, eu me lamentava pela impossibilidade, naquela segunda-feira, por questões rigorosamente econômicas, de assistir ao primeiro concerto do violoncelista russo Mstislav Rostropovich no Brasil, no Municipal de São Paulo.
Em meio às lamúrias, me aparece o “Considerado”: ninguém menos do que o editor de Cultura da revista, Moacyr Japiassú.

- E você lá entende destas coisas, Considerado? – perguntou o Japi.

- Modestamente, o suficiente para distinguir uma viola da gamba de um violoncelo – respondi.

- Vamos falar com o Mino.

Bem, o frio correu pela espinha. Mas, o máximo que eu podia ouvir era um “nem pensar”, ou “manda este italianinho conformar-se com a sua mediocridade”.

Japi explanou com propriedade sobre a importância de registrar o concerto e mais ainda de fazer um bom perfil do músico soviético.

Mino mexia em uns papéis e concordava com Japi, até que sentenciou:

- Tá certo, Considerado, mas estamos sem repórter para fazer isso.

- O Nunzio está aqui implorando esta pauta.

- Quem? O Nunzio? E ele entende disso?

- Só saberemos se mandarmos ele para lá, não acha?

Mino se dirigiu a mim:

- Nunziotto, você acha que dá conta?

- Tenho certeza que sim.

- Então vai. Mas, pelo espelho aqui você tem três páginas que fecham hoje à noite.

- Hoje? – perguntei.

- É, hoje. E eu faço questão de vir fechar pessoalmente.

Ato contínuo, eu já estava na porta do Hotel Cad’oro na tentativa de quem sabe conseguir uma entrevista com o violoncelista.

Vishnevskaya: a diva que me ajudou
Não havia nenhuma possibilidade. Parecia que a KGB tomava conta do saguão do hotel. Comecei a ficar preocupado. O dia acabava quando eu vejo entrar no saguão ninguém menos que a grande diva russa Galina Vishnevskaya, mulher de Rostropovich.

Joguei minha cartada até de uma forma desengonçada. Me dirigi a ela em italiano e pedi um autógrafo. Enquanto ela assinava no meu bloco de anotações, disse a ela que era um repórter iniciante e que tinha a incumbência impossível de entrevistar o maestro.

Ela me olhou de cima abaixo. Seus olhos negros procuraram os meus. Para fugir do constrangimento eu ainda busquei uma cantada inimaginável.

- Com estes olhos não há mesmo Cavaradossi que resista.

- Ah! Você conhece esta minha gravação de Tosca!

- Como não conheceria? É um dos melhores Vissi D’Arte que eu ouvi na vida.

Galina me empurrou um monte de pacotes, me agarrou pelo braço e me levou ao elevador. Fomos conversando sobre a Floria Tosca que ela acabara de viver, realmente muito boa, até chegar na suíte, onde ela abriu a porta já falando em russo:

- Mischa, você tem que falar com este jovem adorável.

O maestro ficou um pouco perturbado, até porque estava de pijamas. Mas, obedeceu a ordem da esposa, ainda que contrariado.

- Muito bem! O que eu posso fazer para ajudá-lo – disse em um inglês que me soava com sotaque samovariano.

- Maestro, não vou incomodá-lo. Só queria saber se esta abertura cultural do regime soviético que lhe permitiu assumir a Sinfônica Nacional de Washington é mesmo para valer, ou se foi apenas uma operação faz-de-contas.

O rosto de Rostropovich se iluminou ele acomodou-se melhor na cadeira e começamos a falar sobre os rigores do regime sobre compositores como Prokofiev e Shostakovitch, sobre a resistência dos músicos. Sobre como ele, um humilde violoncelista, acabou se tornando símbolo de uma geração que teve seus instrumentos emudecidos por um regime burro que não entendia a expressão contemporânea mágica de uma soberba escola.

Quando nos despedimos, ele ainda me avisou que faria uma grande surpresa no concerto daquela noite.

Prokofiev ao piano e Rostropovich jovem: gênios soviéticos
Municipal cheio, o maestro foi recebido pelo público em pé. E apresentou duas sonatas para violoncelo e piano, uma de Prokofiev e outra de Shostakovitch. Ou seja, ele praticamente escreveu a matéria para mim.

Cheguei na redação, agüentei a gozação porque estava vestido com smoking, e escrevi num estirão. O Considerado estava entretido com outros fechamentos e eu vivia a angústia de que a edição da minha matéria acabasse nas mãos do Mino.

Eis que o mestre entra na redação:

- Noite especial. Nunzio Briguglio de black tie. Vamos ver se a matéria também está a rigor.

Entreguei as laudas com as mãos trêmulas. Mino pegou a indefectível caneta Futura preta e começou a ler.

Ao final pediu que eu me agachasse ao seu lado, passou as mãos nos meus cabelos, e disse:

- Você entende mesmo deste assunto. Bela matéria.

- É, Mino, eu estudei um pouco, sabe? Já tinha ouvido algumas gravações.... – balbuciei.

- Disso eu já sabia, meu caro. Me referia ao fato de que você entende mesmo de reportagem. Leve, agradável, com personalidade e com informação. Parabéns!

Certamente não foi a mais tonitruante reportagem que eu fiz na minha vida. Longe disso. Mas, fiquei muito feliz com o resultado. Até porque não é a qualquer hora que a gente entrevista Rostropovich de pijama e dá uma cantada em Galina Vishnevskaya.


Clique aqui e ouça o concerto nr. 2 para violoncello de Dmitr Shostakovitch executado por Mstlav Rostropovich

domingo, 2 de outubro de 2011

A solidão da doce Anita

Anita aos 80 anos: uma mulher extraordinária símbolo de toda uma geração

“Estou um pouco só, mas não lamento. Amei, chorei, enlouqueci de felicidade. Venci e perdi”.

A frase está numa daquelas colunas insuportáveis de Veja, como de resto toda a revista. Mas, a autora merece uma reflexão. É a atriz sueca Anita Ekberg, hoje com 80 anos, uma das mulheres mais atraentes, do alto de seus  1,94 metros de altura e do seu par de seios considerados perfeitos.

Ombros e seios maravilhosos: em La Dolce Vitta
Anita foi a musa de ninguém menos do que Federico Fellini. Ele decidiu apostar na então flamante modelo com seus loiros cabelos e seus ombros maravilhosos para compor o que certamente é uma das cenas mais emblemáticas do cinema europeu dos anos 60: a deslumbrada atriz americana que invade a Fontana de Trevi, num dos dez melhores filmes de todos os tempos: La Dolce Vitta.

Anita representa a saúde de uma geração burguesa, ingênua, que não entende o que está acontecendo com o mundo.  O filme é espetacular e tem uma interpretação marcante de Marcello Mastroianni, que aliás a partir de então passa a assumir o papel de alter-ego do diretor, que ele viria a exercer em toda a plenitude no genial 8 ½, e da atriz francesa Anouk Aimee.

Fellini ainda dirigiria Anita no célebre episódio de Boccaccio 70, Bebere piu latte, com Peppino de Fillippo. Trata-se de uma das obras mais emblemáticas de um diretor que, aliás, sempre se expressava assim.

Peppino interpreta um moralista ativista, inconformado com um out door disposto diante de sua casa, onde Anita com os seios generosamente expostos propaga a idéia de se beber mais leite. Não é um painel qualquer, ele tem um curioso dispositivo que faz soar uma canção: “Beber mais leite. Leite faz bem”.

Anita gigante em Bebere Piu Late: desespero dos moralistas
Claro que o apelo erótico-sensual choca o moralista. Ou pseudo moralista como veremos. Em meio a seus sonhos delirantes, ele se surpreende quando a modelo sueca deixa o out door e passa a persegui-lo. Ainda mais quando se agiganta e coloca o pequenino entre seus seios.

Vale a pena rever. Em tempos de uma sensualidade gratuita e medíocre Anita, que hoje seria qualificada como gorda, mostra como é possível superar a barreira do exibicionismo e dizer alguma coisa.

Aliás, o próprio Fellini em Entrevista, presta uma homenagem emocionante quando leva a equipe de tevê japonesa a visita-la em sua villa romana.

Mastroianni caracterizado como Mandrake faz rever a juventude de ambos e projeta a célebre cena da Fontana em um lençol no meio da sala.

Anita filmou nos Estados Unidos. Me lembro de pelo menos dois papéis acima da média: a interesseira Helena de Guerra e Paz, de King Vidor,  e a super-modelo de Artistas e Modelos, o melhor filme da dupla Jerry Lewis e Dean Martin (Vincent o abutre e Zumba a magnífica...Hehehe).


Buongiorno Signora Anita. La sua solitudine non è il vostro privilegio, ma di tutta la sua generazione.