domingo, 27 de novembro de 2011

Que autocritica? Estamos bien, siempre!

A sempre encantadora Buenos Aires: portenhos agora falam sozinhos, ao celular.



A vida nos revela surpresas e doces equívocos. Convidado para falar sobre financiamento público da educação em um seminário do Centro de Estudos de Políticas Públicas, seria difícil para eu recusar. Ainda mais pelo calor de sempre da recepção de Natalie, de Alejandra, de Gustavo e de toda a turma. Assim, ainda que atrasado por um dia, tive o privilégio de passar algumas horas em Buenos Aires. Senti o cheiro da cidade, ouvi seus ruídos, ainda que desta vez tenham me hospedado em um novo hotel, chamado Scala, muito mais perto de Constituicion do que de Retiro, na avenida Bernardo Irigoyen, entre Independencia e Chile.

Confesso que temi por minha sanidade mental, que já não anda estas coisas, quando constatei que os portenhos tinham adquirido o estranho hábito de falar sozinhos enquanto caminhavam. Que hábito esquisito! Será que ficaram todos loucos? Ou quem enlouqueceu fui eu?

Perguntei a Emiliana Vegas, uma doce venezuelana, diretora do BID, que vive em Washington. E ela me disse:

- Ufa! Que bom. Eu também pensei que havia enlouquecido.

Enfim, perguntei a Nat, o que estava acontecendo. E este anjo portenho enfim nos esclareceu:

- Nunzio, que te pasa? Es que los argentinos estan apassionados por uma nueva conquista, los auriculares telefônicos. No hablan solos. Estan hablando en el celular por el microfono móvel.

Menos mal.  Quanto ao seminário, as constatações de sempre. Como é possível falarmos em unidade regional se não nos acertamos nem mesmo com relação a uma simples tomada? E isso, ao contrário dos auriculares telefônicos não é um privilégio dos argentinos. Ainda que suas tomadas sejam de uma complicação que lembra, sei lá o que. Mas, é engraçado que um adaptador chinês, capaz de abrigar a todo tipo de tomada e de ser conectado até com o padrão ( ou não padrão) argentino, seja objeto de consumo de todos aqueles que precisam carregar seus celulares ou simplesmente ligar seus computadores.

Apesar das tomadas, temo que a questão da unidade regional se torne algo que se persegue sempre, porém não vamos alcançar nunca. Algo assim como Michele Pfeiffer angelical que aparece nos nossos sonhos e que quando estamos muito próximos de toca-la despertamos.

Pfeiffer é americana. Eu pessoalmente acho que ela é extra-terrestre. Mas, para que não me puxem as orelhas vamos ficar com Salma Hayek e Soledad Villamil. Já que é para sonhar, vamos logo chutar para cima.

Falamos, falamos e falamos. Já sabemos que Argentina, Brasil, Colômbia, México e Venezuela têm que funcionar como locomotivas e arrastar aos países menores. Que Peru será sempre benvindo. Que os países do Caribe e da América Central são muito pobres e tem problemas muito sérios de organização do estado. Foi impressionante a apresentação da delegada de Guatemala, principalmente quando ela informou que 98% dos estudantes do ensino fundamental chamados a fazer uma prova para medir a proficiência em espanhol e matemática, ficaram abaixo do nível mínimo de aprendizagem.

Impressionante o esforço da República Dominicana, ponto zero da América Latina, onde tudo começou em 1482. Fizeram um acordo entre os políticos locais para, independente do resultado das eleições, definir 4% del PIB como orçamento mínimo para a Educação.

E o México? Uma delícia. Perguntei se a crise americana não lhes provocava arrepios, afinal eles tem um vizinho por demais incomodo.

- Ellos son incômodos para nosotros. Y nosotros somos incômodos para ellos. Asi que dos incômodos se anulam.

Boa resposta!

Convidado para falar no fechamento da cerimônia, quase provoco uma guerra indesejável. Justamente falava do risco que corríamos se empregássemos o ritmo diplomático para buscar a unidade que almejamos e a troca de experiências. E, sem me aperceber, fiz um apelo aos mexicanos para que discutíssemos uma auto-crítica sobre a implementação de políticas públicas durante o período revolucionário.

Até ai tudo bem. Os mexicanos adoram falar disso. Porém fiz o mesmo apelo aos irmãos argentinos em relação ao modelo sarmientista de educação, que vai completar 150 anos e que já mostra sinais de extenuamento.

- Que auto-critica? Estamos bien.

Não. Não estão. E ai reside um dos principais, se não o principal problema argentino. A revisão do modelo sarmientista, implementado pelo presidente Sarmiento depois da guerra da Tríplice Aliança, no século XIX, precisa ser revisto sim, rediscutido, até para que seja melhorado e renovado. Os argentinos ficam nervosos quando falamos assim. Aliás, me parece que isso funciona desta maneira na Educação, no futebol, na vida enfim.

- Estamos bien. Siempre!


Isso, e não os microfones auriculares, explica porque os portenhos andam falando sozinhos pelas calçadas frescas de Buenos Aires. Tenho certeza que os telefones estão desligados. Nós brasileiros durante muito tempo copiamos o hábito mexicano de falar com cavalos. Há quem diga que em Goiás, ainda há gente que desperta pela manhã e dá bom dia a sua montaria. 

domingo, 20 de novembro de 2011

Deu na TV: a guerra acabou!

Dustin Hoffmann, Anne Heche e Robert de Niro: personagens caricatos e reais








Passou-me completamente desapercebido um interessante filme de Barry Lavinson, com Robert de Niro e Dustin Hoffmann, entre outros, chamado Wag the Dog, Mera Coincidência em português. Trata-se de uma muito bem feita caricatura sobre a relação entre poder e mídia, fantasia e realidade, e a capacidade impressionante de se manipular as convicções.

A história começa com uma desgraça. Há um mês das eleições, que certamente o levariam a quatro anos mais de mandato na Casa Branca, o presidente americano recebeu um grupo de bandeirantes de um estado periférico no Salão Oval e ficou alguns minutos com uma estudante de 13 anos, a sós, atrás de uma coluna. Tal procedimento lhe valeria a acusação de ter molestado a garota, o que, convenhamos, seria seu fim político.

Depois do incidente, o presidente voou em missão oficial para a China, mas do Força Aérea Número Um solicitou a sua assessoria que chamasse um certo Conrad, ex-jornalista especialista em crises, na tentativa desesperada de contornar a situação.

Primeira lição, um especialista em crise se atém a realidade, aquilo que estará fixado na mente da população. E não se segura em desculpas, versões, desmentidos, etc.... Conrad é levado para uma sala de situação nos porões da Casa Branca, onde se inteira da situação e surpreende com conclusões duras. “Não importa o que aconteceu, ele atacou a menina”. ”Se fulano sabe, todos sabem”.

Uma perplexa e burocrática equipe de comunicação fica estarrecida com o cenário. Ainda mais porque a equipe do candidato da oposição também se inteirara da situação e estava prestes a detonar o assunto.  Sem perder a calma, Conrad pede duas passagens para Los Angeles, uma soma em dinheiro equivalente a US$ 80 mil, e dispara uma ordem estranha. “Ligue para o jornalista tal e diga que reina preocupação na Casa Branca com relação a utilização do avião bombardeio americano B3. Preciso ganhar tempo, marque um briefing do porta-voz para as 11 horas e mantenha o presidente na China". Em seguida zarpa escoltado por uma aturdida chefe de comunicação, vivida por Anne Heche, em direção a Costa Oeste.

Na longa viagem, via Chicago, ele explica a sua estratégia. "Vou criar uma guerra, só não sei contra quem". Ao desembarcar em Los Angeles, ele já não tem dúvidas, contra a Albânia.

Por que contra a Albânia?

“Porque ninguém sabe direito onde fica. Ninguém sabe que cara tem os albaneses!”

Na Califórnia, Conrad se reúne com um produtor hollywoodiano, vivido por Dustin Hoffmann, um tanto quanto frustrado pelo não reconhecimento de suas competências, a quem se atribui a missão de criar uma guerra imaginária  nos Balcãs.

A estratégia do briefing deu certo. A discussão sobre o que ocorreu com a menina caipira e voluptuosa foi mencionada apenas de relance, enquanto que os jornalistas já regurgitavam a eventual utilização do bombardeio B3 no conflito com a Albânia.

A guerra torna-se uma realidade com informações sobre desembarque de mariners, deslocamento de porta-aviões, a possibilidade da Albânia ter aparatos nucleares e ameaçar os aliados da Europa e todo o cardápio intervencionista conhecido desde a construção do canal do Panamá. Criaram até o requinte de grupos terroristas albaneses infiltrados no Canadá, que estariam ameaçando a fronteira americana. Os desmentidos do governo de Tirana (a capital da Albânia) não são ouvidos. Levantam-se as ONGs habituais para condenar o intervencionismo americano, ao mesmo tempo em que os governos aliados declaram total apoio a ação militar.

A operação tinha um nível de sofisticação altíssimo. Willy Nelson, o célebre cantor country americano é chamado para criar um clipping, com os mais badalados cantores da atualidade, sob o mote, “cuidem de nossas fronteiras”. A imagem de uma jovem albanesa em fuga diante do ataque de seus conterrâneos, em uma aldeia rural, é criada por computação, com o requinte de estar abraçada a um gato, que, consultado, o presidente americano exige que seja branco.

Vai tudo muito bem até que a CIA decide entrar na parada. Confusa, com informações contraditórias, não sabe direito o que apurar. Mas, esta indecisão é usada pelos operadores da candidatura oposicionista. O que leva o tal candidato a convocar a imprensa e anunciar: “De acordo com informações da CIA, cessaram as hostilidades na Albânia”.

 - Acabou a guerra, proclama um apreensivo Conrad.

- Como assim? Acabaram com a minha guerra? Não pode ser, protesta o produtor de Hollywood.

- Acabou. Deu na televisão. Acabou. Temos que sair dessa agora.

Bem, este começo é suficiente. O resto da história, marcado por lances ainda mais rocambolescos e engraçados, vocês podem ver no filme. Mas, pela caricatura colocada, que reflete uma realidade, podemos fazer uma humilde reflexão.

Os americanos são mesmo pioneiros nesta história de manipulação da opinião pública nacional e internacional. No final do século XIX criaram uma guerra encarniçada em Cuba, que culminou com o fim do domínio espanhol e a supremacia yankee na grande ilha caribenha. Este conflito, estranhamente não consta dos manuais históricos espanhóis, pelo menos não com a intensidade dramática com que os americanos a trataram.

Deste conflito bélico surgiram duas coisas importantes: as marchas militares de John Phillipe Souza (Star and Stripes forever!) e um obscuro oficial que se tornaria presidente, Theodore Roosevelt, o Big Bear.

Roosevelt, aliás, que usaria a mesma estratégia ao apoiar um movimento político separatista inexistente na Colômbia, para justificar o seu apoio a identidade nacional panamenha contra Bogotá e depois construir o estratégico canal que liga o Atlântico ao Pacífico.

Seu sobrinho, o grande estadista Franklin Delano Roosevelt, na década de 30, usaria o cinema e o rádio para reforçar o fim da depressão americana e a afirmação do New Deal.

Entre o Canal do Panamá e as armas químicas de Saddam Hussein passou-se quase um século. E não deve ser difícil alinhar algumas movimentações militares americanas com a manipulação da opinião pública: Japão (a bomba atômica), Coréia, Vietnam, Cambodja, Cuba, Berlim, Kossovo, Sérvia, Irã, Iraque, Afeganistão e assim por diante.

É claro que esta forma de lidar com a realidade não é um privilégio americano. Os nazistas venderam na Alemanha o anti-semitismo; os franceses o perigo da Argélia; os ingleses sacrificaram o general Gordon no Sudão em uma guerra estúpida contra o Madi; os africaners diziam que os negros da África do Sul iriam jogar os brancos no mar. Ah! É claro, não poderia esquecer dos Ets de Coswell, no Novo México, que deram origem a ameaça que vinha do espaço e descobriu-se que se tratavam apenas de balões meteorológicos.

Armstrong na lua: tem gente que até hoje não acredita.


Por essas e por outras não dá para condenar as pessoas que ainda são céticas em relação a aventura de Neil Armstrong que caminhou na lua. Para muita gente, foi tudo uma produção de Hollywood, cujo interesse maior era apontar uma faca na garganta do Kremlin, até porque vivia-se naquela época uma guerra fria tremenda. Em outras palavras, um confronto de operações de manipulação da propaganda da União Soviética e dos Estados Unidos, com o resto do mundo no meio e a ameaça de uma guerra nuclear que acabaria com o planeta.

No Brasil, durante anos se vendeu o tenentismo e a Coluna Prestes como uma ameaça institucional a República. Movimento de radicais que pretendia implementar novas ideologias e confrontar a oligarquia café com leite. Certa vez, perguntei ao senador Luís Carlos Prestes o que ele achava disso. E ele me respondeu:

- Bobagem! A gente queria apenas atazanar o Bernardes.

Getúlio Vargas em seu segundo governo (1950-1954) foi levado ao suicídio por conta de “um mar de lama” que nunca se provou. O estancieiro João Goulart era o líder de um movimento que pretendia implantar o comunismo no Brasil. Os militares brasileiros foram forçados pelo povo a sair dos quarteis e implantar uma ditadura de 25 anos, por conta disso. As Diretas Já pretendiam mesmo aprovar o dispositivo constitucional de Dante de Oliveira que elegeria o presidente da República por voto direto. Tancredo Neves acreditava nisso e nunca pensou em disputar a presidência no colégio eleitoral.  Collor era o caçador de Marajás em Alagoas, a modernidade que chocou os políticos brasileiros, notadamente do PFL (hoje DEM), PTB e quetais, impressionados com a corrupção.

João Goulart: o estancieiro que permitiria a implantação do comunismo

Aliás, alguém consegue me dizer qual foi o único político progressista, de “esquerda” que apoiou Collor até o último momento?

Certa vez, nos anos oitenta, os governadores da oposição, Montoro, Brizola, Tancredo e José Richa estavam reunidos no Palácio dos Bandeirantes quando a turba ameaçou derrubar as cercas. Estava insatisfeita com o governo destes senhores.

Montoro não teve dúvidas. Atribuiu tudo a uma grande conspiração da direita, quer dizer dos militares, contra os governos constitucionalmente eleitos. Na coletiva tive a petulância de perguntar:

- Governador, o senhor acredita mesmo que os militares tem esta capacidade de mobilização popular, a ponto de pression ar as cercas do Palácio dos Bandeirantes?

- Claro que tem. Todos sabem que é uma conspiração.

- Quem é todos, governador?

- Ora, o povo. Pergunte ao povo. Ele sabe que há uma conspiração.

O povo, como se sabe, mora na rua Felipe Schimidtt, 28, em Florianópolis, e não tem telefone.

As cercas derrubadas do Palácio dos Bandeirantes: segundo Montoro, uma conspiração da direita

Outro dia um colega, renomado jornalista de um vetusto matutino de São Paulo, me ligou e disse que tinha informações seguras do governo de que o Ministério da Educação não iria recorrer da decisão da Justiça Federal do Ceará. Queria saber a posição do MEC.

- Cara, de onde você tirou isso. Esta informação não existe. É uma plantação barata. O ministro decidiu pelo recurso, os nossos advogados já estão em Recife. Quem é o governo?

- Ora, o governo é o governo!

Foi fácil desmontar a versão do jornal. Até porque a televisão não deu. E os colegas passaram então a atribuir um poder incomensurável ao ministro da Educação: MEC faz governo recuar! Diziam. Para livrar a cara, nos atribuíram um poder que decididamente não temos.

A manipulação da opinião pública atinge níveis de irracionalidade e incredulidade impressionantes. Me lembro por exemplo que a Souza Cruz, a subsidiária da American Tabacco no Brasil, tinha ordens da matriz de tirar do mercado a marca Minister, líder do segmento virgínia-blend. Começaram a espalhar a informação de que cigarros daquele marca provocavam câncer. Acreditem, as pessoas mudaram de marca.

Outro dia, deu na TV, o glorioso dr.Drauzio Varella garantiu com todas as letras: “100% dos fumantes um dia morrerão”.

É claro que ele quis dizer que todos os fumantes acabarão morrendo por conta do cigarro. No afã de criar um certo sensacionalismo, foi além. Mas, como disse o velho Conrad , deu na TV, quer dizer a guerra acabou.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O velho que virou jovem e o jovem que virou velho


O velho e o jovem Nunzio: qual é qual?


Um dos problemas de ser homônimo de seu pai é a designação. Assim, por exemplo, a minha mãe para definir que fala do meu pai, refere-se a ele como o velho Nunzio. E a mim, como o jovem Nunzio. No passado, meu pai era o seo Nunzio, ainda que de forma jocosa e respeitosa, meu filho Enrico, as vezes me chame assim, sem se dar conta que na verdade invoca o avo.

O velho Nunzio morreu em 1968, aos 67 anos. Sonhava em me ver formado advogado ou administrador de empresas e tudo que ele odiava era que eu me formasse em jornalismo ou política. Influência da aversão que ele tinha ao fascismo em geral e a Mussolini em particular.

Nestes 42 anos sem o velho Nunzio, entretanto, eu migrei da Física justamente para o jornalismo, onde acredito desenvolvo modesta carreira e ocupei, ainda que nos bastidores, meu papel de aprendiz de feiticeiro na política.

Mas, difícil mesmo foi constatar com o passar do tempo, que eu me transformei no velho Nunzio e que o meu pai, para sempre será o jovem Nunzio, não pela idade mas pela experiência de vida.

Não tenho queixas da minha vida. Participei ou testemunhei tudo o que a segunda metade do século XX me ofereceu. Cobri duas guerras, dei duas vezes a volta ao mundo, fui reconhecido aqui e na Itália. Vi o fim do apartheid na África do Sul e o massacre de Ruanda. Testemunhei o fim do franquismo e do salazarismo. A queda do Muro de Berlim. A eleição de um negro na presidência dos Estados Unidos e de dois líderes sindicais, Lula e Walesa, à presidência do Brasil e da Polônia. Vi o fim do militarismo na América do Sul e a assunção de dois ex-presos políticos, torturados e vilipendiados, assumirem o comando de suas nações. Refiro-me ao presidente Mujica, no Uruguay e a presidente Dilma, no Brasil.

Como toda a minha geração, migrei da calandra e do linotipo para o jornalismo on-line. Não tenho vergonha em dizer que, de todas as revoluções ou tentativas de revolucionar o comportamento humano, a única irreversível e efetiva que testemunhei é a digital. Para o bem e para o mal.

Entretanto, é preciso reconhecer que a minha filha Nina, do alto de seus 13 anos, tem lá sua razão quando me qualifica como old-fashioned. E embora ela não saiba, ou não queira saber, isso é tanto verdade quando se compara a minha coragem e o meu desprendimento com o do avo. Ele sim, um valente, jovem e desprendido.

Italianos no front austríaco: o velho Nunzio esteve aqui aos 15 anos

Pois em 1909, aos oito anos de idade, caçula de 16 irmãos, fugiu da sua Sicilia natal com dois irmãos para o Piemonte, onde abrigou-se em um colégio salesiano. Aos 15 anos alistou-se como soldado para lutar no Friulli contra os invasores austríacos. Hábil nos esquis e na deslocação no meio da neve, foi alvejado quando portava informação relevante que nortearia a célebre Retirada de Trieste. Recuperado, voltou ao front e participou do avanço do rio do Pó até as colinas de Udine.

Com o fim da primeira guerra, aos 17 anos, perambulou entre o Norte da Itália, a França e a Suiça. Sabe Deus fazendo o quê.  Até que numa manhã de agosto de 1924, no cais de Gênova viu que o destino dos três irmãos, que haviam sobrevivido juntos até aquele momento, iria se separar. Salvatore, o mais velho, queria ir para os Estados Unidos. Genaro queria ir para a Argentina.

Ao final, embarcou com Genaro no vapor Giulio Cesare, com destino a Buenos Aires, com uma passagem que lhe dava direito apenas a respirar no porão do navio.
O vapor Giulio Cesare: na linha Genova-Santos-Buenos Aires

Foi uma viagem difícil, o mar estava agitado. Ele sentiu fome e se alimentou apenas da solidariedade dos companheiros de porão. Famílias inteiras que vinham para trabalhar no café no Brasil ou no comércio portenho.

Quando o Giulio Cesare lançou ferros no cais de Santos, o porto estava militarmente ocupado. Era a revolução legalista de Isidoro Lopes. Indiferentes as intempéries políticas, os imigrantes desciam em busca de seu sonho, quando um soldado provavelmente impaciente por não se fazer entender, apressou os passos de um velho camponês vêneto lançando-o ao chão com a coronha do fuzil.

Estava armada a confusão. O velho Nunzio pulou do tombadilho direto na garganta do soldado. Ao final, todo mundo foi levado às autoridades. Quando ele voltou o Giulio Cesare já estava ao largo do canal de Bertioga rumo a Buenos Aires. Genaro, seu irmão, permanecera a bordo.

Só, sem falar uma palavra de português, o velho Nunzio sobreviveu por conta de alguns trabalhos de estiva, enquanto imaginava tomar um próximo vapor que o levaria a capital portenha e ao encontro do irmão. Alguns dias depois, aproveitou a companhia de uma leva de estivadores que pretendia passar o final da semana em São Paulo. Tomou o trem da SPR (São Paulo Railway) subiu a Serra do Mar e desceu na estação do Brás. Era setembro de 1924, a revolução legalista já tinha ido para o ralo. O italiano era a língua corrente no Largo da Concórdia. O jovem Nunzio só iria nascer 28 anos e muitas histórias depois.

O velho Nunzio mudou a vida de centenas de trabalhadores imigrantes, gerou emprego, deu condições de moradia e sustentação. Fez greve, apoiou a nova legislação getulista. Em 1942 pegou outro vapor, desceu em Dacar e atravessou o Sahaara a pé e cruzou clandestino o Mediterrâneo para ajudar os aliados a desembarcarem na Sicilia. Depois juntou-se aos partisans para combater os nazistas no Norte.

Voltou. Fez fortuna e perdeu. Fez de novo, perdeu de novo. Aos domingos de manhã, me levava a visitar seus “lavoratori”, como dizia, nos cortiços da Mooca, e distribuía pães, as vezes frangos, que comprava em caixas, vivos. Criou-me em uma fábrica, onde eu era o “bambino de fuogo”, por conta dos meus cabelos então vermelhos. Junto do cheiro do suor dos operários, das faíscas das soldas e do som das prensas eu aprendi minha primeira lição: ou vamos todos para o paraíso, ou dane-se o paraíso.

Deixou-se uma herança difícil, as vezes pesada. Mostrou-me o lado certo das coisas, deu-me um coração para bater e uma causa por lutar.

É Nina, você tem razão, eu sou o velho Nunzio. O jovem Nunzio é o nonno!

A São Paulo dos anos 20: o Brás todo falava italiano

sábado, 12 de novembro de 2011

Ciao Coccodrillo!


Il Coccodrillo: foi preciso uma crise que quase derrubou o capitalismo para tirá-lo do poder



Coccodrillo é como o cineasta italiano Nani Moretti chama Silvio Berlusconi. Parece que depois de mais de 30 anos, a Itália, enfim, vai ficar livre deste réptil pré-histórico. Não bastaram as denúncias de corrupção, o exercício descarado do poder de intimidação, o gangsterismo, os escândalos sexuais. Foi preciso que o capitalismo e a unidade europeia entrassem em barafunda para apear o homem do poder. Uma amiga minha lembrou-me esta semana: “É a economia estúpido!”

Berlusconi é um cadinho de ingredientes malévolos. Tem a simpatia e a obstinação televisa de seu xará Sílvio Santos, a longevidade de Sarney, práticas políticas que fariam Jimmy Hoffa parecer um menino peralta, uma moral que faria Toto Riina enrubescer. E se pudesse, Benito Mussolini faria o seguinte comentário: “Puxa, eu pensei em fazer como ele, mas não tive coragem!”

Certa vez, lá pelos anos 90, eu degustava um glorioso bacalhau no Francisco, secundado por um copo de Barolo, com um amigo cuja função em Brasília era defender os interesses da família Marinho. Mais que isso, como ele dizia: “Eu não trabalho para a Globo. Trabalho para o dr.Roberto”.  O pescado tinha a qualidade de sempre e o vinho inundava o ambiente com seu aroma madeirado forte, quando este amigo sacou rápido:

- Venha cá, nós estamos com problemas com a Telemontecarlo na Itália. E o dr.Roberto vai para cima de um tal de Berlusconi. Você conhece o cara?

- Hummm! Conheço. Diga ao dr.Roberto que qualquer, repito, qualquer acordo é melhor. Se ele peitar este cara, acredite, todo o império da Globo no Brasil corre risco.

O recado chegou ao destinatário, tenho certeza. Outros recados também chegaram. A Globo teve um prejuízo tremendo, mas o pesadelo da Telemontecarlo acabou. Vida que segue. Jogo jogado, como diria meu mestre Gaspari.

Berlusconi amealhou nas últimas décadas do século XX um poder impressionante. De dono de uma modesta emissora de tevê passou a liderar um dos maiores conglomerados de comunicação da Europa. Uma meia dúzia de emissoras de tevê, editoras como a tradicionalíssima Mondadori, jornais, emissoras de rádio e até uma produtora de cinema tudo caiu nas mãos dele. Dizia-se que seus argumentos eram “irresistíveis”. 

Politicamente o Coccodrillo conseguiu sintetizar o que havia de pior em termos de ideologia. Aliás, ele representava a não ideologia. Defendia a oportunidade e o oportunismo. Surfou na onda do neo-liberalismo, com pitadas grotescas do fascismo mais barato. Justiça social? Solidariedade? Imigração? Desequilíbrio regional? Nada disso. Olhe para você, não para o seu vizinho. Faça como eu: seja feliz, ainda que todos ao seu redor estejam infelizes.

Pode parecer inacreditável, mas este ideário prosperou, e como, no mesmo lugar onde a luta pelo socialismo alcançou suas maiores vitórias. Apesar da Igreja Católica, do estado fascista, da democracia cristã e da máfia, inegavelmente foi na Itália onde o movimento social conquistou seus maiores avanços no século XX. Todo o castelo ideológico italiano que floresceu no imediato pós-guerra e que levou o mundo a refletir sobre o destino das massas trabalhadoras e que, na voz e na genialidade de um Enrico Berlinguer, se afastou do modelo totalitário soviético ou chinês e buscou a racionalidade e o pragmatismo do euro-comunismo, nascido nas alamedas da Universidade de Bolonha. Tudo isso ruiu diante do sorriso cínico e os cabelos cheios de brilhantina do Coccodrillo.

Eu estava na Itália em 2006 e acompanhei de perto o drama da eleição daquele ano, quando os votos de um senador na Argentina salvaram a eleição do professor Romano Prodi e deram ao país um gabinete tão instável que sua duração efêmera prenunciava a crise que viria e pela esquerda, é claro, onde os valores ideológicos fariam com que a ruptura fosse de fato irreversível.

Ainda me lembro da perplexidade que me acometeu quando estudava os mapas daquela eleição e não me conformava com a vitória do Coccodrillo na Liguria, no Piemonte, na Lombardia, no Veneto e na Emilia Romana. E as nossas vitórias na minha Sicilia, na Campana e na Reggio Calabria, ou seja, nos rincões mais profundos da Itália meridional, exceção a gloriosa Toscana que se manteve fiel. Mais grave era o perfil do eleitor: o voto jovem até 25 anos estava todo concentrado na direita.

A Itália pagaria caro por isso. Não bastassem as diversas cenas de constrangimento internacional, a crise deflagrada pelo Goldmann Sachs e pelos bancos americanos iria colocar a economia europeia em crise e diante disso iria aflorar a realidade. A velha Bota deve mais de 142% de seu PIB. Suas reservas estão exauridas. A capacidade de gestão do governo mínima.

Em entrevista na edição de hoje, dia 12 de novembro, publicada em O Globo, o professor Toni Negri define Berlusconi como um modelo de não representação política. O bom mestre, uma das mais lúcidas mentes do mundo pós-marxista, questiona, e com razão, a representatividade. Lembra que o estado do Bem-Estar Social, nos moldes do New Deal de Roosevelt , está definitivamente enterrado.

Negri acredita que esta crise entre os países ricos da Europa, mais o habitual vilanato estadunidense, precipitam uma crise de modelo. Nas suas palavras, o Império alimentado e gerido pelas grandes corporações, acima e além das fronteiras geográficas e ideológicas, está em cheque.

Conheci ontem aqui em Brasília o professor e jornalista argentino Luis Tonelli. Ele me chamou a atenção para um fato que não me havia ocorrido. Tão cioso de seu poder e voltado apenas para seu próprio umbigo, o Império não se deu conta que a geografia do mundo havia mudado. Que surgiram os BRICs, que a América Latina aprendeu a conversar e entendeu que poderia se bastar. Em suma, que o desenho do mundo havia mudado e que nós, os bárbaros, no dizer de meu irmão Gustavo Iaies estamos ponendo el mundo de rodillas.

Pode ser. Tonelli tem razão. Gustavo expressa mais um sentimento. De qualquer maneira, o Coccodrillo terá que se aposentar. A Europa terá que repensar um pouco seu modelo. Estas ongs internacionais como a Unesco e similares terão que refrear a arrogância e nos olhar com outros olhos. Melhor assim.

sábado, 5 de novembro de 2011

Merlin e o acanhamento de Anton Bruckner

Anton Bruckner: genial e acanhado compositor austríaco


Merlin: exibido e poderoso bruxo e articulador político







Ando me movendo nos últimos dias entre a saborosa história de Anton Bruckner ( 1824-1896)         o genial compositor austríaco, que teve uma vida ultra discreta, e que debalde tenha reinventado o gênero sinfônico, só foi reconhecido na segunda metade do século xx, e a figura de um dos meus alter-egos, o pretensioso bruxo de Avalon, o mago Merlin, da lenda do rei Arthur.

Bruckner sempre foi um dos meus compositores prediletos. A quarta, a sétima e, sobretudo, a nona sinfonia estão entre as obras que eu mais escuto e que me servem, não raro, de inspiração, de consolo e de estímulo. Estou me divertindo muito lendo um pequeno livro chamado “O Menestrel de Deus”, de Lauro Machado Coelho, que trata das agruras do compositor, dos limites de sua ambição e do provincianismo de um músico de igreja do Interior da Áustria.

Como Beethoven, Bruckner era só. Tinha poucos amigos. Vivia enfunado em uma igreja de Linz. Não tinha uma Bem Amada Imortal, nem era celebrado em vida como um gênio irascível. Não tinha uma vida política, nem teve o privilégio do gênio de Bonn, de conhecer Schiller e Goethe. Tinha aversão ao teatro, mas contraditoriamente era obcecado pela obra de Richard Wagner, a quem idolatrava não tanto pelas gigantescas montagens operísticas, mas pelos acordes corajosos e pela forma sublime com que trabalhava as massas corais.

Bruckner não deixou discípulos. Ficou esquecido por muito tempo. Mais de 50 anos depois da sua morte. Encomendei na Alemanha uma coleção completa das suas sinfonias, gravação única do maestro Eugen Jochum, com a Staatskapelle de Dresden, gravada no início dos anos 60. Deve chegar nos próximos dias.

Mas, ao som da sua nona, na portentosa versão que eu tenho com Bruno Walter e a Filarmônica de Nova York, ando revisitando a figura do mago Merlin e seus dilemas. É incrível como a lenda do rei Arthur encerra uma lição política, como se fosse um prólogo para “O Príncipe”, de Maquiavel, escrito séculos depois, em pleno Renascimento, em Florença.

Merlin buscava um bom príncipe. Alguém que fosse capaz de unir o reino da Britânia e se sobrepor a um bando de senhores feudais, egoístas e cruéis. Ao mesmo tempo, queria confrontar os ritos ancestrais primitivos do povo. Por isso, sua primeira opção foi o rei Uther, filho do sanguinário rei Constant, o primeiro cristão a tentar comandar aquele conjunto de ilhas no Mar do Norte, e que acabou decepado pelo rei Vortinger,  em meio a sequência de embates civis que animavam os governantes.

Excalibur: presente da Dama do Lago tornou-se o símbolo do poder de Avalon




Merlin recebera uma espada cantante da Dama do Lago, a Excalibur, e com ela ajudou Uther a tomar o poder. Ato contínuo o imbecil do Uther lançou o país em nova guerra civil cujo único objetivo era possuir Igraine, mulher do cavaleiro Cornwall.

Afoito, Merlin ajuda Uther, na vã ilusão de que consumado o adultério, acabaria com a mortandade. Com o poder da magia, empresta a Uther as feições de Cornwall.  O adultério acaba com um banho de sangue. Mas, Igraine fica grávida e deste episódio nasce Arthur.

Até para compensar a besteira que havia feito, Merlin prepara Arthur para ser o grande rei que foi. Construir Avalon e o sistema democrático da Távola Redonda, onde todos os senhores feudais tinham assento e voz.

Ia tudo muito bem, até que Arthur meteu na cabeça que precisava largar tudo e sair em busca do cálice do Santo Graal. Como se sabe o tal cálice com que José de Arimatéia teria colhido o sangue de Cristo na cruz. Acreditava-se naquela época, no século XII, que depois dos célebres episódios na Palestina, o bom Arimatéia teria migrado para as ilhas britânicas.

Por que diabos a tal busca do cálice era tão importante? Nunca saberemos. Merlin ficou novamente em pânico. Sabe-se lá quanto tempo Arthur ficaria peregrinando em busca do tal artefato sagrado. E, claro, o equilíbrio político do reino e a távola redonda iriam para o brejo.

Claramente angustiado, Merlin procurou novamente a Dama do Lago, que lhe indicou uma ilha onde ele poderia encontrar um cavaleiro audaz e honesto, um homem de coração puro, capaz de substituir Arthur e manter intacto o reino de Avalon.

Merlin aportou em Joyous Guard adormecido e foi despertado por um menino, que o levou ao seu pai, o vistoso cavaleiro Lancelot, que encantou os seus olhos. Introduzido na Távola Redonda, ele seduziu a todos e tornou-se fraterno de Arthur. Os planos de mago estavam dando certo, não fosse por um singelo detalhe. Lancelot se apaixonou por Guinevere e foi correspondido.

Quando Arthur voltou, não quis acreditar nos rumores, até que ele mesmo surpreendeu os dois dormindo nus na floresta. Elegante como convém a um rei britânico, limitou-se a fincar a espada entre eles, o que horrorizou os amantes quando despertaram.

Ainda que ferido no seu coração, Arthur permitiu que Guinevere e Lancelot, a quem amava, se escafedessem de Avalon. Mas, não conseguiu impedir a Guerra Civil que se seguiria, motivada por seu filho incestuoso Mordred (nascido de uma de suas aventuras com ninguém menos que sua meia-irmã Morgana) que queria o trono.

Um dos argumentos de Mordred era justamente a fraqueza de Arthur ao permitir que o casal de pombinhos fugisse.

Merlin pagou o pato. Até porque fora ele que introduzira Lancelot na Távola Redonda. Os cavaleiros exigiram de Arthur que ele fosse banido. Desconsolado, o mago voltou a Dama do Lago e cobrou-lhe a solução equivocada que resultou em toda aquela desgraça.

- Mas, eu apontei-lhe a solução. Lancelot? Quem foi que falou em Lancelot?

E Merlin se deu conta que havia cometido um erro. Era o menino, Galahad, e não seu pai.

- Não se amargure Merlin – confortou-lhe a Dama. Afinal, você é meio humano e também comete erros.

Arthur morreu ferido por um morimbundo Mordred na Guerra Civil. Seu corpo foi levado pelas ninfas do Lago. Avalon desapareceu. A Távola Redonda foi destruída. Os ritos ancestrais foram esquecidos. O país viveu por mais uma década na escuridão. Até que Galahad reapareceu com o Graal e restabeleceu o reino.

Uma lição política e tanto. A exuberância do Merlin e o acanhamento de Anton Bruckner se confrontam na minha mente. Não sei se Bruckner queria uma vida como a de seus contemporâneos Liszt e Berlioz, verdadeiros deuses durante a sua carreira, ou conturbada como a Richard Wagner. O campônio austríaco ao que parece se conformou apenas em levar uma vida exaltando o Todo-Poderoso, a quem dedicou todas as suas obras.

Merlin, por outro lado, desapareceu mesmo. Uma versão diz que ele viveu seus últimos anos vagando de colônia em colônia contando a sua história para uns poucos camponeses assustados. Ao fazer com que os ritos ancestrais fossem esquecidos, perdeu também o poder de sua magia, que ficou restrito a seu cavalo falante, sir Rupert, que teria morrido com ele.

Felizmente tanto a lenda do rei Arthur como as sinfonias de Bruckner sobrevivem. E são pontos de reflexão em um momento tão difícil como esse. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Crônica de humor negro - Morte ou Nabal?

Poderosa tribo de descendentes dos pigmeus bandar: Morte ou Nabal?




Diz a piada que um grupo de exploradores ingleses foi preso por uma tribo violentíssima no Interior da África subsaariana, que seria descendente dos temíveis pigmeus bandar. Aos britânicos foi dada a seguinte opção: Morte ou Nabal?

Uma destas inglesas típicas, vermelha e dentuça, arqueóloga de profissão, assustada com a possibilidade de enfrentar a morte, logo se manifestou: Nabal.
A tribo começou a entrar em êxtase e a pobre moça foi violentada por todos os varões da tribo, até que finalmente foi empalada e pendurada no meio da aldeia. Os outros exploradores não tiveram mais dúvidas. Todos gritaram: morte, morte, morte...

Ao que o chefe respondeu. Tá bem. Tá bem! Mas, antes de mata-los, a gente vai fazer um pouquinho de Nabal.

Trata-se, como se pode depreender de uma piada ingênua, que sempre traz a tona o dilema de defender a própria vida. No início do inverno de 1942, em Stalingrado, a situação do exército vermelho era terrível. Tão grave que o tovarich Josef Stalin mandou para lá um poderoso comissário político ucraniano chamado Nikita Serguei Kruschov, que anos depois seria seu sucessor como todo-poderoso da União Soviética.]

Kruschov reuniu o estado-maior do exército vermelho sob violento bombardeio da Wermacht. E ouviu pacientemente as alegações do comandante, general Panov, de que não tinha munições, artilharia, soldados e que pouco poderia fazer.
Sem mexer um músculo da face, Kruschov sacou a pistola do coldre, colocou sobre a mesa do general e disse: “Tá bem, por favor, poupe a papelada”.

O general pegou a pistola e estourou os miolos.

No Japão feudal, os samurais envergonhados por uma derrota militar se prostavam diante de Buda, e depois de um pequeno ritual, enfiavam seus sabres no ventre, o famoso hara-kiri. A prática se disseminou. Até na Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, a doce Cio-cio-san quando descobre que o amante americano voltara ao Japão para levar o filho de ambos para a América, também opta pelo hara-kiri.

Claro que esta situação de submissão à morte pelo intolerância com a vida ganhou também contornos de caricatura. Em MASH, o dentista bem-dotado, que passara pela experiência de ter falhado em uma aventura sexual, delira com o ocorrido. Se imagina um homossexual enrustido e pede aos amigos Okay e Rasga-Peito a opção do suicídio. É uma das cenas mais engraçadas da comédia rodada em 1970 por Robert Altmann. E justifica a canção tema do filme, uma preciosidade chamada The Suicide is Painless.

Eu era bem criança quando os moradores da rua onde vivia, na minha Mooca, ficaram totalmente traumatizados com a morte de um dos nossos vizinhos, que simplesmente saltara do viaduto Maria Paula e se esborrachara onde algum tempo depois seria construída a avenida 23 de maio.  O que poderia levar alguém a abrir mão de um bem tão precioso como a vida? Inquietou-me uma dúvida infantil.

Outra vez, caminhava pelo Viaduto Santa Efigênia, já era jovem, quando uma mulher belíssima, à minha frente, saltou para a morte no Anhangabaú. Ainda fiquei com um pedaço da blusa dela nas mãos, no afã de evitar a sua morte. E me surpreendi novamente com as mesmas indagações da minha infância.
Mais tarde, um mestre muito querido, diante da impossibilidade de encontrar trabalho, também optou pela morte. Outro colega jornalista, quando conheceu um diagnóstico de câncer no cérebro, irreversível, também preferiu abreviar tudo, apavorado com a certeza do sofrimento e da drenagem dos recursos da família, como ele explicitou em sua carta de despedida.

É claro. Tem os monges do Tibet, do Nepal ou sabe-se lá de que gruta do Himalaia, que embebedam as próprias roupas com gasolina e se incendiam em protesto contra alguma coisa. Mais hilária é a versão rodriguiana do cidadão que mantinha uma vida dupla por 20 anos e que depois de se fartar na casa da amante com seu prato preferido, uma rabada, chegou em casa e a mulher toda serelepe lhe comunica que havia feito a sua iguaria predileta, a mesma rabada. O cara se fechou no banheiro e preferiu a morte. Duas rabadas no mesmo dia era demais!

Bem mais dramática é a cena no filme A Queda, quando a mulher de Goebbels, inconformada com a vida que se seguiria a queda do Reich da Infâmia, envenena seus filhos porque não suportaria vê-los sobreviver à nova ordem política alemã. Ela e o imbecil do marido se matariam mutuamente antes que os soldados do Exército Vermelho tomassem o bunker de Hitler, em maio de 1945.

Jim Jones: viagem com laranja e cianureto

O suicídio é quase sempre uma decisão individual. Mas, um pastor evangélico chamado Jim Jones conseguiu o feito de provocar um suicídio coletivo, em Georgetown, capital da República da Guiana, ao convencer seus 913 seguidores de que Deus iria passar por lá com um transporte coletivo para leva-los ao Paraíso. E os caras acreditaram! Isso foi em 1978 e os devotos tomaram suco de laranja com cianeto. Uma coquetel bem agradável.

Para os seguidores de Alan Kardec e para os judeus o suicídio é um delito contra Deus. Os primeiros defendem que em outras dimensões este acerto de contas é caríssimo, com sequelas em outras existências. Já a turma do Sinai também vê a coisa com tal gravidade, que um suicida é enterrado apenas nas bordas do cemitério, sem identificação. Sobre o assunto, há uma comédia mexicana estupenda chamada Cinco Dias sem Nora. Filhos e o marido de uma suicida tentam convencer a comunidade a relativizar as causas de sua decisão. Vale a pena!

Fernando Rey, o notável ator espanhol, interpreta um curioso personagem em Pasqualino Sete Belezas, de Lina Wertmuller. Diante da decadência humana que ele testemunha em uma prisão nazista, simplesmente exclama: “Cansei da vida”. E se joga em uma latrina gigante.

Bem real e marcante na política brasileira, o presidente Getúlio Vargas, deixou a vida para entrar na história no dia 24 de agosto de 1954, com um tiro no coração no seu quarto do Palácio do Catete. Deixou uma carta testamento, que se transformaria em um dos mais celebrados documentos políticos da história da República.

Getulio Vargas: suicidio por conta de um empréstimo no BB

Mais tarde se descobriria que uma das razões do Mar de Lama entoado com vigor por Carlos Lacerda e que foi decisivo na opção do dr.Getúlio, foi um empréstimo favorecido do Banco do Brasil para seu guarda-costas de uma quantia equivalente hoje a US$ 10 mil.

Se os políticos brasileiros seguissem o exemplo do dr.Getúlio, a insanidade de Jim Jones seria uma bobagem comparada ao volume de corpos nos jardins do Congresso Nacional ou da Esplanada dos Ministérios.

E claro, para terminar esta bobajada sobre suicídio, tem o mais célebre do século XX, o da atriz Marylin Monroe, batizada Norma, que acabou com a própria vida ingerindo uma dose altíssima de soníferos.

Marylin: a mulher mais desejada do sec.XX
Marylin foi uma das mulheres mais desejadas do mundo. A maior pin-up do século XX. Comediante talentosa, atriz nem tanto. Fracassou como produtora. Perdeu  um filho nas filmagens de Quanto mais quente melhor. Vivia deprimida, a base de drogas. John Huston ainda tentou salvá-la dando-lhe um papel, certamente um dos melhores de sua carreira, em Os Desajustados. Logo ele, um dos maiores cronistas do fracasso, que a havia lançado como coadjuvante em Asphalt Junction, não conseguiu reverter o que todo mundo sabia e ninguém conseguiu evitar. A moça embarcou para o Além.

Poderia ainda falar da meiga e infeliz Romy Schneider, uma das mais belas e competentes atrizes. Que não suportou a morte do filho em um acidente e que também abriu mão da própria vida. Ou de outros tantos casos. Mas, todos eles, por razões políticas, religiosas e até fisiológicas tem em comum uma coisa: é uma pena. 

Romy Schneider: uma das atrizes mais lindas da história do cinema