sábado, 23 de março de 2013

Os primeiros sinais de Francisco




Francisco com Bartolomeu I: final de um cisma que data de 1025




O papa Francisco já está operando milagres. D.Odilo Scherer viajando de classe econômica, na poltrona do meio, de Roma para Guarulhos por 12 horas, parece coisa mesmo do Espírito Santo. Piadas a parte, entretanto, o cura argentino deu mesmo ar de sua graça e já transcendeu o óbvio ineditismo: primeiro jesuíta, primeiro latino-americano, primeiro torcedor do San Lorenzo.

A reação da direita ultra conservadora católica, a Sé Vacante, formada por saudosistas de Pio XII, da Santa Inquisição e adversários contumazes do Concilio Vaticano II, foi outro sinal claro que o colégio cardinalício acertou em cheio na sua escolha. Estes senhores que consideram a Opus Dei e a TFP organizações progressistas tem um problema sério com o ecumenismo.  Entusiastas dos templários das grandes cruzadas, eles entendem que a fé católica apostólica romana, aquela inspirada pelo Vaticano, é a única que tem linha direta com o criador. Todas as demais, portanto, são hereges e devem ser banidas ou corrigidas. Aí se incluem os budistas, os hindus, os islâmicos e todos os cismas e reformas.

Roma não erra!

Enquanto cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, iniciou interessante diálogo com a comunidade judaica, influente e preponderante na Argentina. Meus melhores amigos portenhos  são judeus e foram os primeiros a celebrar a sua eleição.

Convém ressaltar que desde Paulo VI e o espetacular Vaticano II, Roma empreendeu um extraordinário trabalho em direção aos cultos orientais e, sobretudo, na busca de uma aproximação com árabes e judeus. O cardeal Bergoglio, portanto, seguiu apenas o caminho que o Vaticano apontava pós João XXIII.

À parte as cenas midiáticas de andar de ônibus, pagar a conta do hotel, ajoelhar-se à frente dos fiéis e pedir a benção do povo, Francisco já inseriu o seu nome na história de forma indelével quando recepcionou para sua primeira missa, como papa, o patriarca ortodoxo da igreja de Constantinopla, Bartolomeu I. Para quem não sabe, trata-se da reconciliação de um cisma que data de 1025.  

Claro, a direita urrou. Sinal que o jesuíta está no caminho certo.

sábado, 9 de março de 2013

O badalar de um tempo que passou




O relógio da Luz: não indicava nada. Apenas as horas



Uma taça de Chablis bem fresco, algumas reminiscências e, de repente, as lembranças de um tempo que, com certeza, não volta mais. Barbara Tuchow, Pullitzer de 1962, no monumental Guns in August, diz que as badaladas do Big Ben no féretro de Eduardo VII, representavam o fim de uma era no Velho Mundo. E lá se foi mesmo a Belle Epoque para o ralo, superada pela atrocidade da Grande Guerra.

Lembrar do João Sebastião Bar e do Riviera é lembrar de uma São Paulo sonhadora, romântica e acolhedora, que também não existe mais.  É buscar o reflexo de uma cidade que correu na enxurrada por sobre os paralelepípedos, ao som de um piano nostálgico tocado ao ritmo de notas espaçadas como o Road to Zion, de Adrian Iaies.

Não se enganem os mais jovens. Eram tempos bicudos, difíceis, como sempre são. O dinheiro era curto, como sempre é. A noite em São Paulo se dividia entre a Boca do Lixo e a Boca do Luxo, cuja fronteira, imperceptível ficava em algum lugar entre os Campos Elíseos e a Vila Buarque. Os burgueses endinheirados sorviam doses enormes de White Horse no Lalicorne. Estudantes mais pobres se bastavam no Drurys e depois no Old Eight do Le Masque, do La Vie en Rose, ou em alguma casa obscura onde se podia ouvir Cyll Farney, Pedrinho Mattar e Claudete Soares. Com sorte até Cauby Peixoto, cuja eterna decadência cedia lugar a um interprete mágico ao som de Conceição ou de Cole Porter.

No João ou no Riviera, o vinho quente aquecia idéias políticas. Debates acalorados. Utopias irrealizáveis. A revolução parecia estar na calçada.

A noite terminava numa pequena kitchnete da rua dona Veridiana, onde olhos verdes, azuis ou castanhos apertados imploravam para que o escuro e a intimidade não dessem importância ao fim do glamour. Na maioria das vezes o que começara como uma relação comercial acabava em cumplicidade. Em uma fusão de almas em desespero.

Mas, isso era em noites raras, bafejadas pela sorte. Na quase esmagadora totalidade daquelas madrugadas, restava apenas a caminhada pela cidade deserta, onde os sons pareciam uma sinfonia dodecafônica. Uma fantasia e o velho negreiro, o 27, que circulava toda a noite, entre a Praça Clóvis e a Vila Oratório.

O cotidiano não dava tréguas. A fantasia cedia lugar à realidade. A vida não permitia intervalos contemplativos. Tudo seguia igual ou pior. O relato da noite revelava o massacre do dia. Alguns mudavam de vida, mudavam de noite. Outros desapareciam, outros sumiam, muitos se despediam. Para alguns o exílio acomodava, para outros apenas o anonimato restava.

Numa noite, Claudete, com sua voz pequena e cristalina, quase sussurrava o velho Lupicinio. Ninguém ousava produzir o menor ruído. Era uma noite como todas as noites, que misturava sonhos, solidão e utopia. “Estes moços, pobres moços. Ah se soubessem o que eu sei....”

Eu não sabia. Queria muito saber, mas não sabia. O relógio da Luz não apontava nada. Dizia apenas que era hora de tomar o 27. O novo dia serviria para que todos se reinventassem.


domingo, 3 de março de 2013

A música e a Guerra Fria



Wolfgang Sawallisch: regente competente, morto em 22 de fevereiro 






Na árida leitura dos jornais dominicais, cada vez mais cáustica, chamou-me a atenção uma reportagem de João Marcos Coelho, competente crítico de música erudita, com o registro de três passamentos terríveis: o da organista francesa Marie Claire Alain, do pianista americano Van Cliburn, e do excepcional regente alemão Wolfgang Sawallisch.

 O artigo está publicado no Estadão de hoje, no Caderno 2. Não conheço João Marcos pessoalmente. Mas, costumo corroborar suas críticas. Na leitura de hoje, me chamou a atenção o seu cuidado em definir o que foi a Guerra Fria: “ Conflito político-ideológico entre Estados Unidos e União Soviética, as duas superpotências do pós-guerra, que usou armas atômicas como um cutelo pairando sobre todos os habitantes do planeta por quase meio século, entre 1947 e 1989”.

E eis que, de repente, me dei conta que as novas gerações realmente precisam destas informações. Tão mal informadas que são, poderiam por exemplo imaginar uma guerra comercial entre fabricantes de refrigeradores.

João Marcos diz que os três músicos desaparecidos recentemente afirmaram suas carreiras durante a Guerra Fria. E ele tem razão. Van Cliburn, por exemplo, foi chamado de o Sputinik americano. Nunca apreciei suas performances. Sempre as considerei pirotécnicas. E admito que não estou preparado para falar de Marie Claire, embora tenha ouvido algumas interpretações dela, sobretudo de Bach, onde mostrou talento e perfeição técnica. Já do bávaro Sawallisch, posso arriscar aqui algumas linhas.  

Grande regente. Sobretudo na discrição e diria até na humildade. Não se deixou levar pelo sucesso efêmero. Sua interpretação para a Segunda Sinfonia de Brahms está entre as mais perfeitas que eu conheço. Também merece destaque o ciclo das quatro sinfonias de Robert Schumann, uma notável leitura de O Navio Fantasma, de Richard Wagner. Honestamente, nunca vi nele qualquer ponto de tangência política. Mas, acho muito feliz o contraponto que ele estabeleceu entre reger ópera e música sinfônica em entrevista ao João Marcos, em 2003: “Pessoalmente, sempre gostei dos dois gêneros. Cada um tem desafios diferentes: as longas frases das óperas de Wagner, Mozart, Strauss e Verdi, com longas respirações, me ajudaram a fazer o mesmo na música sinfônica de Bruckner e Mahler. Por outro lado, a performance muito mais concentrada nas sinfonias me ajudou a ser mais preciso durante uma ópera”.

Simples assim!

Com relação à Guerra Fria, uma análise histórica vai provar que a humanidade perdeu o seu tempo e jogou boa parte de suas riquezas em um confronto ridículo Leste-Oeste, quando desde sempre o dualismo foi Norte (rico) e Sul (pobre). Hoje sabemos que nem o american-way-of-live avançou em coisa nenhuma, muito menos a onda vermelha revolucionária tinha muito a dizer. Parece que foi tudo uma grande trama dos militares dos dois lados para manter seu poder de influência nos dois regimes e assegurar investimentos absurdos em tecnologia.

A história dirá. Com certeza.