sábado, 13 de abril de 2013

O dilema existencial de Tostines




Ataque da Cavalaria Ligeira na Criméia: cenário para uma noite no Pacaembu


Um dos mais instigantes slogans comerciais do passado teima em me provocar reflexões cotidianas. Afinal, Tostines é fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é fresquinho?

Quinta-feira junto com meu irmão André e meu sobrinho Arturo, e, sobretudo, por pressão deles, voltei depois de mais de 10 anos a um campo de futebol. Fui ver Palmeiras e Libertad, no glorioso e sempre belo Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu.  Fiquei, em um primeiro momento impressionado com o número de bedéis,  empoderados sabe deus por quem, que conduzem a massa ( e havia quase 40 mil pessoas) para lá e para cá. Aos gritos de pode e não pode.

Também me chamou a atenção o volume de soldados e oficiais da Polícia Militar, não tanto pela presença deles, mas pela postura ostensiva, equipados com aparatos de última geração tecnológica na repressão a turba. Claro, havia cavalos, muitos, tantos que reduziriam a Cavalaria Ligeira Britânica na Criméia a uma tropa.

Cavalos são ferramentas eficientes no controle da massa. Bem me lembra meu colega e amigo Leo, secretario de assuntos internacionais da Prefeitura: “Cavalo tem em estádio em todo o mundo”. E é verdade. Ficam em um canto, pacíficos e despercebidos, prontos para intervir na primeira necessidade.

Óbvio que no Pacaembu não foi assim. Os garbosos cavalarianos da Policia Militar desfilavam em meio os torcedores como se fossem soldados teutônicos,  atrapalhavam o trânsito de veículos e pessoas, empinavam os animais e promoviam um show de habilidade como se fossem Roy Rogers ou Hopalang Cassidys, ou cowboys tupiniquins, com o perdão do comparativo. Não tenho nada contra cowboys e menos ainda contra os índios tupiniquins.

Tá bom. Era um jogo de risco. A derrota poderia provocar uma inconformidade na massa. A Polícia Militar está lá para zelar pela segurança. Torcedores de futebol são seres irascíveis. Tudo isso é verdade. Mas, em nome de 40 mil palmeirenses que foram ao Pacaembu na quinta passada, quero registrar meu protesto. Não gostei nada, nada, de ser tratado como gado, apartado por cavalos e cavaleiros. Não sei se Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais. Quero comer meu biscoito em paz e com civilidade.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

"Não somos uma fábrica de músicos. Mas, sim de cidadãos”.




Dudamel e a Simon Bolivar: um concerto inesquecível e emocionante



Tenho umas dez gravações da Quinta Sinfonia de Beethoven. Algumas mitológicas: Furtwangler, Karl Bohm, Georg Schell, Solti, Bruno Walter e Charles Munch. Vi e ouvi pelo menos umas 30 execuções ao vivo. Algumas notáveis e inesquecíveis. Mas, o que eu ouvi ontem, na sala São Paulo, foi de tal forma espetacular que me assomou a perplexidade.

Gustavo Dudamel não é apenas um regente pop star. Ele é simplesmente espetacular. Perfeito. Fez um Beethoven grandioso, romântico como deve ser, redondo e instigante. A Sinfônica Simon Bolivar soou como uma orquestra soberana: o piccolo, as trompas, as cordas, as madeiras. O que falar dos tuttis e daqueles violoncelos.

Dudamel rege com os olhos e com o coração. Sua fraseologia é perfeita e sua dinâmica impressionante. E a orquestra reage as suas entradas com entusiasmo.

Depois de uma Quinta que já teria valido a noite, veio a Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, obra que apesar do seu centenário, na minha modestíssima opinião, ainda não encontrou o seu tempo.  Primitiva e arrebatadora, marcada por um impressionismo rude e pelos ritmos múltiplos entrecortados.

Vi no palco uma vez: com Ernest Bour e a nossa orquestra do Teatro Municipal, nos anos 70. Foram necessários dois anos de preparação. Meu primo Cláudio deu um show nos tímpanos. O professor Dino Pedini arrebentou na primeira trompa e o professor Tancredi maravilhou a todos no fagote obsessivo.

Dudamel regeu de cor. Sem partitura! Exigiu dos meninos e meninas da Simon Bolivar como se estivesse diante da Filarmônica de Berlim. Cada estante era um virtuosi.

O que foi aquilo?

Como pareceu pouco,  dois extras para arrebentar corações. O prelúdio de Lohengrin e o Liebstood do Tristão de Wagner.  Até agora não me recuperei da emoção.

E dizer que tudo isso começou com um projeto do professor Jose Antônio de Abreu , 40 anos atrás, em Maculay (100 kms de Caracas), com o objetivo de dar formação musical a crianças socialmente desassistidas. “Quando estes jovens estão sobre o palco, estão mandando um recado claro. Musica clássica não e  música de nossos avós, dos nossos pais, é a nossa música também. Quando se toca ou mesmo quando se ouve música, há a percepção de uma infinidade de possibilidades, e isso ajuda no dia a dia. A arte pode ser uma forma de se conectar com a realidade” – disse o maestro Dudamel ao Estadão, no sábado, recém chegado de Buenos Aires.

“Não somos uma fábrica de músicos. Mas, sim de cidadãos”.

Aos 32 anos, ele próprio egresso do projeto El Sistema, de Abreu, Dudamel é um dos maestros mais requisitados no cenário musical internacional. Ele se apresenta à frente das mais renomadas orquestras do mundo. Seu estilo é carinhoso com os músicos, cria junto com eles. Rege com alegria, respeito e devoção a partitura.

Para acabar, com uma sala São Paulo lotada, enlouquecida, Dudamel não retornou ao podium para sorver os aplausos e afirmar merecidamente o seu mérito. Limitou-se a abraçar os músicos e se misturou com eles.

Esta foi a gota d’ água de uma noite, que eu definiria em uma palavra: eletrizante e emocionante.      

sábado, 6 de abril de 2013

Os primeiros amores



Jennifer Jones: minha primeira paixão irresistível e obsessiva






Uma das poucas coisas agradáveis da chamada “melhor idade” é poder olhar pelo retrovisor da existência e contemplar os arroubos da adolescência e da juventude. Meu primeiro grande amor, irresistível e obsessivo, foi a atriz Jennifer Jones. Nunca me esquecerei do impacto que aquele personagem eurasiano de Suplício de uma Saudade provocou no minha mente infantil.

Curioso é que as meninas de verdade, de carne e osso, eram mesmo um transtorno. Dos 12 aos 14, nenhuma delas poderia rivalizar com uma boa pelada jogada na rua, nem mesmo com um torneio de “bafo”, ou um desafio de bolinhas de gude, de preferência jogado na terra. Tinha ainda os botões, os piões, as pipas, a bicicleta.

Não. Definitivamente elas não tinham nenhuma chance.

Mas, vieram as espinhas e a imagem angelical da doutora eurasiana começou a ser insuficiente. Uma das grandes sacanagens que eu aprontei na minha adolescência foi reescrever grandes cartas de amor, contidas em um livro que, não sei por que nem como, foi parar nas minhas mãos, e enviar pelo correio com a firma de um pseudônimo e mandar a todas as meninas da rua.

Foi um fuzuê danado. Mal sabia eu onde estava me metendo.  A maldade eu havia tirado de algumas peças da commedie dell’arte, que devorava freneticamente. Deliciava-me com as maldades de D.Giovanni ou do Tartufo.

Mas, o tiro saiu pela culatra. O que era para ser uma provocação virou um frisson. Descobri depois de acompanhar a prudente distância o trabalho do carteiro, que a chegada das ditas correspondências provocava um certo conforto nas pobres criaturas. Conseguia mesmo divisar uma ponta de orgulho. Que seres estranhos estas meninas, capazes de se reconfortar com algumas palavras tiradas de um livro barato e jogadas com algum talento em uma folha de papel.

Seria superestimar os efeitos das cartas de amor, mas o certo é que depois delas, as próprias meninas passaram a nos olhar com olhos diferentes. Não éramos mais os cafajestes da esquina. E não é que algumas delas passaram a frequentar as nossas rodas de conversa fiada. As primeiras experiências sexuais vieram do escurinho do cinema, eventualmente da garagem escura, ou da escada do prédio. Nada de sério. Apenas a descoberta dos corpos e uma avalanche de fantasias.

Este período ingênuo de relacionamentos passou muito rápido. A minha geração amadureceu muito depressa. De um dia para o outro fomos chamados a assumir responsabilidades. A bola, a bicicleta, o pião e a pipa desaparecem do nosso cotidiano. Aos 15 anos, quase todos nós tivemos que conciliar o primeiro emprego com o estudo do curso médio noturno.

Ainda dava tempo para uma partidinha de futebol, sempre contra o Sucena (nosso arquirrival) nas quadras do Distrital da Moóca; uma sessão de cinema no Moderno ou no Ouro Verde; ou todo mundo enfiado na varanda da casa do Tadeu para ver o Festival Internacional da Canção no Maracanazinho e repartir a inconformidade com a vitória de Tom Jobim.

O mundo fervia a nossa volta. Algo de muito sério estava acontecendo. O quinteto mágico do poderoso Mônaco da Leocádia parecia insuficiente para enfrentar o mundo que nos desafiava: Renato (ou André, meu irmão), Tadeu e Nunzio; Odair e Ciro.

O último relance da minha juventude veio pelas mãos delicadas de uma colega de classe: uma pianista sensível, de fartos cabelos negros e olhos suplicantes. Sem saber, ela me deu a base para uma catapulta que me projetaria para o outro lado do Tamanduateí.


A doutora eurasiana:guardada no DVD
Outro dia estava revendo Suplício de uma Saudade. Jennifer Jones e a doutora eurasiana ainda me provocam sentimentos de afeto. Felizmente o filme está guardado em um DVD e eu posso vê-lo, quantas vezes eu quiser.

As meninas vítimas das minhas cartas hoje são, com certeza, vetustas senhoras sexagenárias, avós, tias e esposas diligentes. Os meninos desapareceram. Vez por outra, meu irmão André me dá notícias. Alguns passaram desta para a melhor precocemente. Ana Lúcia, a pianista, me cobra ainda uma pizza, que eu não consigo agendar. Celina, a rainha das revelações, grita por socorro, inconformada provavelmente com a solidão.

Pena que as paixões do passado, a amizade, a ingenuidade e os sentimentos juvenis não possam ser guardados em um dispositivo eletrônico qualquer. Não há caminho de volta.