domingo, 21 de dezembro de 2014

Metade dos brasileiros que tem curso superior se formaram nos últimos 10 anos



Fernando Haddad - Universidade Nacional de Cordoba- dezembro de 2014








Palestra-aula do professor Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, por ocasião da concessão do título de doutor honoris causa da Universidade Nacional de Córdoba – Argentina, dezembro de 2014.





Eu gostaria antes de mais nada de saudar o magnífico reitor da Universidade Nacional de Córdoba, Dr. Francisco Tabarite, cumprimentar a senhora vice-governadora da província de Córdoba, Alicia Pregno, o senhor intendente da cidade de Córdoba, o prefeito Ramón Javier Mestre, a senhora vice-reitora, a Dra. Silvia Barei, o cônsul geral da República Federativa do Brasil, embaixador Carmelito de Melo, cumprimentar os membros da comunidade acadêmica da Universidade Nacional de Córdoba, os estudantes, os professores, agradecer a presença da comitiva brasileira que me acompanha e dizer que eu me sinto extremamente honrado de estar neste momento em sua presença, senhor reitor, recebendo este distinto título de doutor honoris causa.

Quero dizer que é o primeiro título que recebo fora do meu país e não poderia para mim ser mais honroso receber das vossas mãos uma homenagem que me toca profundamente o coração. Em primeiro lugar pela tradição da Universidade Nacional de Córdoba, primeira universidade argentina, criada pelo menos 300 anos antes da primeira universidade brasileira. Em segundo lugar porque eu me sinto muito ligado ao povo da Argentina, às suas tradições, às suas lutas, ao seu sofrimento, ao que há de comum aos nossos povos, ao que há de diferente e complementar e ao desejo de união que vimos celebrando nas últimas décadas, sobretudo após ao período de redemocratização dos nossos países, período em que novas lideranças surgiram, novas agendas políticas surgiram no nosso continente e uma transformação social vem acompanhando a consciência política dos nossos povos.

Vejo com muita esperança o que o continente nos reserva. Penso que a América Latina vem se transformando mais radicalmente nos últimos anos em busca de justiça social e de reparação histórica. E no que diz respeito ao Brasil essa reparação se torna ainda mais urgente.

Eu gostaria de tecer alguns comentários sobre as marcantes diferenças entre os nossos dois países, sobretudo no que diz respeito ao atraso educacional brasileiro que só recentemente vem sendo enfrentado com dignidade, sobretudo após a redemocratização do nosso país.

Em primeiro lugar, senhor reitor, a nossa independência ela não veio acompanhada da república. A nossa independência, que ocorreu em 1822, estamos às vésperas do nosso bicentenário, ela ocorre ainda nos marcos da monarquia. E o rei que assume o Brasil é o filho do rei da metrópole cuja independência o Brasil celebra em 7 de setembro. Comemoraremos 200 anos de independência. Mas estamos longe de comemorar 200 anos de república no nosso país. E o arranjo de Estado que foi feito distanciou o Brasil dos ideais republicanos e dentre estes ideais a escola pública brasileira foi um sonho que foi postergado muitas décadas, mesmo depois da proclamação da República.

O segundo aspecto a considerar que distingue os nossos povos e a nossa história, a história argentina da história brasileira, é o peso da escravidão no Brasil.

O peso da escravidão no Brasil superou e muito todo sofrimento que pode ser pensado no contexto latino-americano. Não só a população indígena foi sobrepujada e em grande parte dizimada, mas a população trazida da África foi subjugada e o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, apenas em 1888, um ano antes da proclamação da República.

Um outro fardo que pesa sobre os nossos ombros até hoje foi a contrarreforma que aconteceu no Brasil sem nenhum vestígio da reforma, ou seja, nós vivemos no nosso continente todas as agruras da contrarreforma sem respirar nenhum vento, nenhum oxigênio que trouxesse ventos de liberdade no nosso continente. A própria censura nasceu no Brasil antes da imprensa. Nós não tínhamos a imprensa e já tínhamos a censura. Tanto do ponto de vista econômico na escravidão, quanto do ponto de vista político com o estado monárquico, autocrático, quanto do ponto de vista cultural, o Brasil sofreu revezes muito importantes e mesmo após a revolução de 30, ainda assim os educadores mais progressistas foram derrotados pelos governos de turno.

O nosso Sarmiento foi derrotado nos anos 30.

Sabendo que a Argentina viveu sua primeira reforma educacional mais profunda 50 anos antes da nossa reforma. E a nossa reforma, mesmo tendo sido iniciada meio século depois ainda foi mais acanhada que a reforma argentina do século anterior.

Assim se deu durante muitos anos, porque no curto período de  democratização entre o regime Vargas e a ditadura militar o Brasil respirou poucos ares libertários. Houve avanços nos anos 50, mas avanços que não conseguiram se sedimentar no Brasil. E a ditadura tratou de fazer o resto do serviço, tratou de afastar dos nossos sonhos os ideais republicanos de uma escola pública para todos.

Vimos em 1964, com o golpe militar, os nossos melhores sonhos, dos educadores mais avançados, serem postergados por duas décadas. Apenas em 1988, com a constituinte brasileira, que nos entregou a carta que até hoje está em vigor, só naquele tempo é que nós conseguimos vislumbrar os primeiros fundamentos, os primeiros princípios do que viria a se tornar o sistema educacional brasileiro atual.

Ainda assim, mesmo depois da constituição promulgada, vivemos uma década ainda de neoliberalismo que restringiu o orçamento de educação aprovado pelos constituintes em 1988. Seis anos após a promulgação da carta constitucional, nós aprovamos uma emenda constitucional suprimindo recursos da educação em proveito de um ajuste fiscal supostamente necessário para a estabilização da nossa moeda.

Foi em 2002 que chegou ao poder na minha opinião um dos maiores brasileiros da história, o presidente Luis Inácio Lula da Silva, um operário que não teve acesso a educação formal, que não tem diploma universitário, embora hoje seja detentor de quase 100 títulos de doutor honoris causa mundo afora e no Brasil e seu vice-presidente um empresário extremamente bem-sucedido mas que tampouco teve acesso à educação formal, como o presidente Lula, que deram impulso à maior reforma educacional já vista no país.

O Brasil, a partir do começo da década passada, abraçou a causa da educação como nunca e passou a investir recursos cada vez mais vultosos em educação, a começar com a revogação do dispositivo de 1994 que suprimia recursos da educação. Um operário colocou no orçamento da educação o que um catedrático havia retirado do orçamento da educação. E a partir daí as coisas começaram efetivamente a mudar. Eu tive a honra de ser ministro do presidente Lula e da presidenta Dilma por quase sete anos, atuei no Ministério da Educação por oito anos e fui testemunha do desejo genuíno de dois presidentes de superar o tempo perdido. Em busca do tempo perdido, e de colocar o Brasil no mínimo em pé de igualdade com seus vizinhos latino-americanos, seja o Chile, a Argentina, o Uruguai ou o México.

Estávamos muito defasados em relação com os nossos irmãos latino-americanos, a nossa população universitária passava de pouco mais que 1,5% da população brasileira quando o presidente Lula tomou posse. Nos exames internacionais padronizados o Brasil figurava em último lugar de todos os países avaliados pelo Pisa, vinculado à OCDE. Tanto na educação superior, quanto na educação básica e mesmo na educação profissional o Brasil estampava indicadores muito vergonhosos para sua dimensão, para sua pujança, para o seu potencial.

O que o período destes 12 anos demonstra é que sim com vontade política é possível reverter um quadro extremamente desfavorável na área educacional. Não se faz de um ano para o outro, mas em uma década você já começa a colher os frutos de uma política determinada para a educação. Hoje quase 4% dos brasileiros estão matriculados em universidade. Os negros que só entravam nas universidades para fazer a limpeza dos vidros e do chão, hoje estão nos melhores cursos do país: de medicina, de engenharia, de direito, de enfermagem, de administração, de economia. Não há universidade pública federal que não tenha um contingente expressivo de jovens egressos de escolas públicas e de todas as raças, brancos e negros e de todas as classes sociais, ricos e pobres convivendo em um espaço de pura excelência, que para ser considerado público tem que contemplar todos os perfis que a nossa sociedade enseja. Hoje a cor da universidade começa a mudar, a cor da pele da universidade. As vestimentas dos alunos começam a mudar: existem alunos hoje com os trajes típicos das nossas periferias. Hoje pessoas que não vislumbravam a possibilidade de entrar em uma universidade têm o seu primeiro diploma na família. Muitos brasileiros detêm hoje o primeiro diploma das suas famílias. Uma coisa espantosa: 40% dos brasileiros, quase metade dos brasileiros que têm curso superior se formaram nos últimos 10 anos.

O que eu estou querendo dizer é que em apenas 10 anos nós quase dobramos o número de brasileiros que têm diploma universitário. Isso nos coloca numa situação de igualdade na América Latina. Mesmo nos exames internacionais, e nós fizemos questão de apoiar as escolas públicas a partir do governo federal e no Brasil as escolas públicas não são federais, são municipais e estaduais, como aqui em Córdoba, ou seja, são mantidas pelos governos locais, mesmo assim nós fizemos questão de criar um mecanismo de financiamento da escola pública, a partir de recursos federais, mecanismos de gestão da escola pública a partir de instrumentos desenvolvidos pelo governo federal e um sistema nacional de avaliação escola por escola, avaliação que é divulgada para as famílias a cada dois anos, para a que monitorem os indicadores relativos à qualidade. Hoje a família brasileira acompanha os indicadores de quantidade, mas ela acompanha igualmente, com a mesma transparência os indicadores de qualidade.

E com isso o Brasil na década passada esteve entre os três países que mais evoluiu em qualidade de ensino no mundo, tendo saído de uma posição muito complexa, de uma base muito baixa, mas fomos o terceiro país que mais evoluiu nos indicadores educacionais. Isso não é motivo em si mesmo de celebração, porque o patamar atual ainda está muito aquém do potencial do nosso povo e da nossa gente. Mas para um país que vedou cursos superiores, que vedou a imprensa livre, que vedou a escola pública, que interrompeu processos históricos de emancipação e de superação, de garantia de direitos, como fez o Brasil, eu acho que este século deu testemunho de que nós podemos juntos acumular forças para superar estes desafios.

A nossa corrida, o nosso esforço, não é para superar a América Latina. O nosso esforço é para que nós estejamos no mínimo no mesmo patamar e para que nós possamos dar as mãos: argentinos, chilenos, uruguaios, bolivianos e brasileiros. Eu tenho certeza de que se nós tivermos um intercâmbio intenso, trocando as nossas experiências, nos visitando mais recorrentemente, compreendendo melhor a nossa história, preparando melhor o nosso futuro, nós vamos poder avançar juntos muito mais do que nós fizemos até aqui.

E a América Latina tem pressa, não pode se manter estagnada do ponto de vista educacional. E todos nós provamos que podemos fazer muito pela nossa gente num período em que a democracia se consolida, que o debate de ideias se impõem, em novos instrumentos de trabalho e novas tecnologias sociais surgem a cada dia, tecnologia da informação revolucionando a comunicação entre as pessoas, nós podemos efetivamente a partir do intercâmbio cultural e educacional oferecer para os nossos povos desenvolvimento sustentável e de longo prazo, não apenas na economia, gerando do emprego e renda, mas sobretudo no plano da cultura.

A cultura latino-americana é uma das mais ricas e pujantes do mundo. Nós temos cultura, nós exalamos cultura, nós produzimos cultura incessantemente, nós iluminamos o mundo com a cultura que produzimos. Isso tem que se reverter também no campo educacional, no campo científico. Temos muita interação científica para fazer. O Brasil lançou um programa de interação internacional e envio 100 mil brasileiros para fazer cursos no exterior, mediante um programa chamado Ciência Sem Fronteiras. Quero crer que muitos brasileiros estejam hoje na Argentina estudando, nas universidades públicas do país, e há muitos argentinos hoje estudando no Brasil, no entanto a proporção ainda é muito baixa. Nós temos que fomentar novos mecanismos de intercâmbio.

Não pode ser tão difícil para um argentino fazer uma universidade no Brasil ou para um brasileiro fazer uma universidade na Argentina. Não pode ser tão difícil para um professor se manter seis meses ou um ano no Brasil levando os conhecimentos que ensina aqui aos alunos brasileiros, o mesmo vale para os professores brasileiros que se tivessem oportunidade estariam lecionando nas universidades argentinas.

Eu acho que há um caminho de intercâmbio muito grande e o continente europeu, que é muito mais diverso que o continente latino-americano, mediante mecanismos de integração universitária está liderando processos de intercâmbio a nível continental com resultados efetivos. A Europa se levanta novamente a partir da cooperação internacional, em termos de produção científica. Eu entendo que nós devemos explorar essas possibilidades muito mais do que fizemos até aqui. Nós ainda olhamos para o Mercosul como um arranjo econômico. Eu penso que os educadores devem olhar o Mercosul também como um arranjo cultural e educacional. Talvez se nós abraçarmos a ideia do Mercosul cultural e educacional, nós facilitemos a vida dos nossos diplomatas quando celebrarem acordos comerciais. A cultura e a educação dariam muito mais respaldo e tornariam muito mais generosos os nossos diplomatas e economistas que estão sentados às mesas e às vezes por um detalhe não chegam a um acordo em benefício dos nossos povos.


Resumindo a minha fala: eu, como ministro da educação no Brasil, pretendo explorar todas as possibilidades de interação, criamos uma universidadeem Foz do Iguaçu, a nossa Unila, Universidade de Integração Latino Americana, 50% dos estudantes da Unila têm que ser latino-americanos, assim como o corpo docente tem que ser obrigatoriamente metade latino-americana. Criamos uma universidade no Ceará, em Redenção, que é a primeira universidade voltada para a integração do Brasil com a África, em que 50% dos estudantes têm que ser oriundos do continente africano, assim como o corpo docente. O desejo portanto de integração está expresso em todas ações do governo brasileiro, sobretudo no período a partir do presidente Lula. Há uma vontade, um desejo de integração. E eu penso que os nossos sistemas educacionais, os sistemas de ensino e a nossa produção científica teriam muito a ganhar se solenidades como essas servirem para celebrar um entendimento dos nossos povos. Eu fico muito comovido com essa homenagem, vou levar no coração o resto da vida o dia de hoje por ter sido reconhecido fora do meu país, por um povo de um país que eu aprendi a amar. Viva a Argentina, viva o Brasil, viva a Universidade de Córdoba! Obrigado.

domingo, 14 de dezembro de 2014

A arte de incomodar um tirano

Dimitri Shostakovitch; um caroço na gargante de Stalin

A Macbeth de Mtsensk: montagem do MET de Nova York





Certa feita caminhava pelo píer do porto de Barcelona, na Espanha, dando tratos a imaginação, quando me chamou a atenção um ponto vermelho que se destacava no horizonte. O ponto logo se transformou em um navio e evidentemente chamou a atenção o tamanho do cargueiro que se aproximava do cais. Era a capitânea da frota mercante soviética, o Dimitri Shostakovitch.

Curiosa homenagem. Um compositor, maestro e professor emprestou seu nome para o maior cargueiro a singrar os sete mares. Coisa de comissários soviéticos, sem dúvida.  Seria difícil imagina-lo, em sua timidez quase doentia, aceitar tal batizado.

Shostakovitch tinha 11 anos quando eclodiu a revolução de outubro de 1917. Desde suas primeiras composições era de se esperar que ele estivesse entre os principais talentos que emergiram na União Soviética. Estudou e conviveu com outro gênio, Serguei Prokofiev. Era amigo e reverenciava o gênio de outro Sérgio, o Eisenstein. Que trio!

Revolucionário convicto, enxergava no realismo socialista a arte de seu tempo. Uma de suas obras mais marcantes foi a trilha sonora para nada menos que o clássico Encouraçado Potemkin, cujo material sonoro serviria de base para a monumental sinfonia número 5, com a qual fomos brindados no ano passado, graças ao talento do meu amigo John Neschling, à frente da Sinfônica Municipal.

Muito cedo, entretanto, os comissários soviéticos perderam-se na visão de que a arte ou a manifestação humana sobre a forma, a música e as imagens não poderiam revelar a visão única do artista, se não a expressão da coletividade. Caso contrário se constituíria em arte burguesa individualista.

O que isso quer dizer, na prática, nunca ninguém soube explicar. Mas, é óbvio, um conceito de tal maneira difuso serviu para perseguir talentos, reforçar invejas e assim por diante. Uma cantata como Alexandr Nevsky, composto por Prokofiev, ainda que conte a história da unificação russa, na Idade Média, seria uma obra burguesa individualista¿
O camarada Stalin já travestido de todo poderoso secretário geral do Partido Comunista Soviético não tinha lá um gosto musical tão expressivo. Enxergou nos grandes bales de Tchaikowsky e na eterna habilidade russa para a dança uma ferramenta de propaganda. E elegeu como sua ópera predileta a monumental Boris Goudonov, de Modest Moussorgsky, com revisão e edição final de Nicolai Rimsky-Korsakoff.

Por alguma razão que foge à minha compreensão, Stalin elegeu Shostakovitch como o compositor do regime. O que incomodou profundamente o maestro. De tal sorte que a cada encomenda, como se quisesse revelar a sua insatisfação, ele reagia com uma malcriação. Sutil malcriação. Mas perceptível.

Ao final da Segunda Guerra, por exemplo, Stalin encomendou uma grande sinfonia. Seria, como foi a 9ª de Shostakovitch. E como nona deveria guardar relação com a monumentalidade de suas irmãs, de Beethoven, de Schubert, de Mahler e de Bruckner. Uma composição que incorporasse à massa orquestral, uma massa coral gigantesca, solistas, canhões a la 1808.

Shostakovitch fez uma sinfonia mínima, em mi maior. Batizou-a de pequena. Introduziu elementos claros de jazz e de música instrumental.  É uma linda sinfonia. Mas, o camarada espumou de ódio.


Apesar disso, o compositor escapou ao ódio do regime. A comunidade musical internacional o protegia. Desde sempre, Shostakovitch era admirado em toda a Europa e nos Estados Unidos. Morreu em 1975. Compôs 15 sinfonias e 15 quartetos de cordas, diversas obras de câmara, música para o cinema, para ballet, cantatas e, pelo menos, uma ópera monumental, Lady Macbeth of the Mtsensk District. Além de concertos para piano, para violino e para violoncelo.  

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O grande duelo da Tosca de São Paulo


Ainhoa Arteta(Tosca) com Roberto Frontali(Scarpia): segundo ato. Avanti a lui...



A primeira coisa que salta aos olhos, ou mais apropriadamente aos ouvidos, nesta monumental montagem de Tosca, no Theatro Municipal de São Paulo, é a condução orquestral soberba do maestro ítalo-suiço Oleg Caetani. Em uma palavra: impressionante!

Conto mais de 30 montagens de Tosca. Algumas exuberantes, em teatros majestosos, como o MET, o Scala e o Colon. Cantores consagrados como Domingo ou Carreras, ou Guelfi, ou Bruson, ou Freni ou Caballet. Ou, por outro lado, montagens amadoras, em teatros pequenos, uma delas até na garagem de um casarão, acompanhada apenas por um píano. Mas, esta de Caetani revela uma releitura inimaginável da partitura de Puccini.

Ele simplesmente fez a música fluir. Sem ênfases excessivas, sem atropelar o andamento como se tudo fosse uma tarantela ou uma canção napolitana. Pontuou com notável clareza as frases. Fez fluir a orquestração original e apostou nos solos e nos naipes, notadamente das madeiras e das trompas. O solo de clarineta na abertura do terceiro ato, na introdução do E Lucevan le stelle,  foi marcante. Perfeito.

Nossa orquestra se comportou a altura do maestro que ocupava o podium.

Bem, outro ponto marcante foi a seleção de cantores. Basicamente do trio principal. As duas sopranos são maravilhosas. Ainhoa Arteta, mais experiente fez uma Flória  Tosca mais interiorizada. Mais reflexiva. Seu Vissi  D’Arte provocou arrepios. A lituana Ausrine Stundyte, mais jovem, fez uma personagem mais vigorosa e mais teatral. Duas performances memoráveis.

Os barítonos, ao contrário, tiveram participações distintas. Embora ambos estivessem muito bem caracterizados no papel do barão Scarpia, o italiano Roberto Frontali foi superior com uma voz mais ampla, redonda e convincente. O cubano Nelson Martinez – excelente cantor diga-se – esteve um ponto abaixo, mas compensou com uma performance teatral magistral.

Convém registrar que o Barão Scarpia é um dos vilões mais cínicos da história da ópera.

Frontali (Scarpia): um dos mais cruéis vilões de todas as óperas
Bom chegamos ao ponto nevrálgico desta montagem: os tenores. Muito bem. O badalado Marcelo Alvarez, flamante tenor argentino que granjeia fama nos maiores teatros do mundo, teve uma crise de diva, mas ao final apresentou-se de forma correta. Fez um Cavaradossi comedido, sobretudo nas grandes árias, Recondita Armonia e E luceven en stelle. Saiu-se melhor nos duetos com a espanhola Arteta.

O americano Stuart Neill, por outro lado, arrebentou a boca do balão. Mais integrado com a leitura de Caetani, ele fez um Mário Cavaradossi maravilhoso. No domingo, após a grande ária do terceiro ato, teve uma consagração de quase 10 minutos de aplauso. A química com a soprano Ausrine Stundyte funcionou perfeitamente. Ambos deram um show no palco. Sobretudo no segundo ato, quando a intensidade dramática beira a insanidade.

Uma palavra sobre o aggiornamento da trama e a montagem de Marco Gandini. Não são todas as óperas que se prestam a isso.  Sempre achei que Tosca era uma delas. Afinal a ação é bastante datada: a célebre batalha de Marengo, em 14 de junho de 1800; os cenários também: a Igreja de Santo André dell Valle, o Palazzo Farnese e o Castelo de Sant’Angelo, todos em Roma.

Ausrine Stundyte(Tosca): ambientação nos anos 70 funcionou 


Gandini, entretanto, trouxe a trama para os anos 70 do século XX.  É verdade que entre o estado autoritário e policial de Pio VII e as ditaduras militares latino-americanas vai uma grande diferença. Mas, o barão Scarpia bem que poderia ser comparado ao delegado Fleury. Algum desconforto em imaginar uma diva liberada, tão piedosa. Mas, são pequenos detalhes que não incomodam. A verdade é que os cenários funcionaram muito bem, inclusive o teto da prisão com o anjo caído, no terceiro ato.


Neill e Alvarez terão ainda sete récitas de duelo. Será muito interessante acompanhar o confronto.



sábado, 29 de novembro de 2014

O dia da fúria


O dia da Fúria: de William Foster e do engenheiro portenho 




Confesso que nos anos 90, me identifiquei muito com um personagem vivido por Michael Douglas, no clássico Um Dia de Fúria, dirigido por Joel Schumacher e escrito por Ebbe Roe Smith. Quem nunca passou por uma situação limite, mais ou menos como aquela manhã de William Foster, que jogue a primeira pedra.
Quando o dia começa ruim, diz a sabedoria que o ideal é voltar para a cama e passar o tempo todo sem sequer ligar o interruptor de luz.
As coisas começam de forma gradativa e na maioria das vezes usual:
1)   Você acorda com um telefonema que te cobra ou te responsabiliza por providências que deveriam ter sido tomadas por outra pessoa. E precisa se controlar muito quando descobre que justamente a pessoa que deveria ter empreendido aquela ação foi  quem te acusou.
2)   Depois de se recuperar, você vai fazer a barba e descobre que a única lâmina disponível foi usada por sua filha adolescente.
3)   O seu telefone celular subitamente tem uma pane e você não consegue ligar ou receber chamadas.
4)   A jarra de sua cafeteira elétrica está mal encaixada e inunda a pia da cozinha com café.
5)   A primeira camisa que você quer vestir está sem botão no colarinho; você arrebenta o cadarço dos sapatos ao amarrá-los.
6)   Você desce esbaforido, mas descobre que seu motorista não chegou.
7)   Finalmente você entra no carro e o rádio está ligado na Bandeirantes. Você muda de estação, vai para a Pan e ouve uma senhora de nome Rachel Scherazade (quem é esta criatura¿) falando um monte de bobagens sem nexo.
8)   Enfim o telefone volta a funcionar e você recebe uma chamada da sua secretária com a informação de que seu chefe procurou falar com você, mas que ela sem saber o que fazer, disse que não sabia se você iria trabalhar.
9)   Mas, não é só. Ela avisa que o almoço com aquele velho amigo que vinha de Brasília e que você não via há muito tempo, foi cancelado.
10)               O pneu do carro furou. Clássico. E o macaco está quebrado.
11)               Você pega um taxi. O motorista insiste em falar de futebol e muito mal, justamente do teu trabalho.
12)               Quando você chega na repartição o teu crachá não passa na roleta eletrônica e a segurança insiste em fazer uma ficha cadastral completa para que você acesse o seu local de trabalho.

Não são nem 10 horas da manhã, o dia nem começou, ou melhor, os problemas de fato nem começaram e você começa a pensar na solução de William Foster.

Recentemente uma comédia de humor negro argentina (redundância, pois não¿), chamada Relatos Selvagens aborda seis relatos de situações limites. Gostei muito do filme de Damián Szifron, mas confesso que fiquei um pouco desconfortável com as histórias. O engenheiro que tem problemas com o Departamento de Trânsito e, sobretudo, o pai que desperta no meio da madrugada com a informação que o filho bêbado havia atropelado e matado uma mulher grávida possuem soluções previsíveis e hilárias. Mas, a realidade não é bem assim.

A vida moderna é marcada por situações estapafúrdias: certa vez em um fim de semana em um hotel em Araxá-Minas Gerais, fiquei perplexo quando o maitre do restaurante tentava se justificar pelo fato de que não havia queijo mineiro no Buffet. Outra engraçada foi em um resort em Alagoas, onde o gerente dizia alto e bom som que o estabelecimento não trabalhava com água de coco.

Uma vez em uma pizzaria em Brasília depois do maitre nos reacomodar três vezes, ele nos entregou o cardápio e avisou: “Infelizmente não temos mais pizza”.

Como assim¿

“Acabou a massa”.

Mas, o que tem para comer então¿

“Uma sobremesa, talvez”.  

Os brasileiros se levam muito a sério. Eu concordo com isso. Ficam revoltados quando a ilusão se desfaz e acabam se conformando da forma mais insólita possível.

Quem não se lembra da onda de ataques aos caixas automáticos dos bancos na cidade¿ A solução foi limitar o serviço até às 22 horas e reduzir o valor dos saques.

Mais brasileiro, diria mais paulistano que isso, impossível. Na impossibilidade de enfrentar o problema, retirem o sofá da sala.

Esta semana a Sabesp anunciou que vai aumentar a tarifa da água. Como assim¿ A cidade está numa penúria tremenda, os reservatórios estão secos e rachados. Pior, a empresa está fazendo uma gigantesca campanha no rádio e na televisão conclamando os paulistanos a economizar água em troca de descontos na conta e aí aumentam as tarifas!!!!!!!!!!!!

Por falar em água, certa vez durante uma festa de crianças na cobertura do meu prédio, em Brasília, acho que aniversário da Nina, uma de suas convidadas, vai saber por qual razão, encheu uma bexiga com água e mandou lá de cima para o teto de um Corolla.

Claro, fez um estrago danado. O proprietário algumas horas depois bateu na minha porta amparado por um oficial da gloriosa Polícia Militar, que insistia em me levar para a delegacia.

- Cara, eu sou teu vizinho, tua filha estava na festa, nossas filhas cresceram juntas. É claro que eu vou honrar o prejuízo que você teve.

Devia ser o Dia da Fúria dele. Alguns dias depois ele me mandou a conta. Mas, nunca mais me dirigiu a palavra. Vai entender...

Tem também o célebre caso da reforma no apartamento dos Jardins. Edifício de classe média alta, a proprietária decidiu reforma-lo. Durante um ano, foi aquele entra e sai de material de construção e pior, o chamado martelo hidráulico que batia durante todo o dia. Não havia como saber o que estava acontecendo e a reforma não acabava. Até que um dos vizinhos, um renomado e conhecido jornalista, decidiu interpelar a proprietária com um revolver, uma Beretta 47. Era o Dia da Fúria dele. Acabou todo mundo na delegacia.

Mas, nenhuma ganha de um português, situação que eu testemunhei quando ainda era criança. Um padeiro passava pelas ruas a vender pão, pão doce, roscas, em uma linda carroça vermelha. Uma bela tarde, uma senhora decidiu implicar. Reclamou que o filão de pão italiano estava muito duro, depois que estava muito assado. Depois reclamou do troco. Do papel que envolvia o pão. Reclamou do tempo, da vida. Era o Dia dela.

O pobre do português da carroça segurou olimpicamente. Apenas afinava o bigode de tempos em tempos.

A mulher havia ido embora, ela já estava na boleia da carroça, quando divisou uma trava de madeira à sua frente. Desceu resmungando se abaixou para pegar o pau, quando subitamente o pobre do cavalo, que usava antolho, decidiu morder a cabeleira ruiva do carroceiro.

O português enlouqueceu e desferiu um soco tremendo na testa do cavalo, que imediatamente, dobrou os joelhos.

Finalmente tem também a história do cara que morava com a família ao lado de um lago, na periferia de Belo Horizonte. Com o salário no bolso, depois de meses  de desemprego, ele chegou em casa e deu tudo para a mulher que foi para o supermercado para, finalmente, fazer as compras do mês.  Em casa restava um pedaço de queijo duro e meio pacote de café.

A mulher ao sair do supermercado com as compras foi assaltada por um bando de arruaceiros. Tomaram as compras e o resto do dinheiro.

Quando chegou em casa, machucada e humilhada, o marido ainda a confortou. Depois pegou o velho caniço atrás da porta e foi para o lago, na esperança de pegar um lambari que servisse de jantar.

No meio do escuro, quando banhava as minhocas, luzes de lanterna o denunciaram na beira do lago. A Polícia Ambiental  levou o pobre coitado para a delegacia. Crime inafiançável. Ficou preso por mais de 40 dias. Para piorar, os arruaceiros que assaltaram a mulher foram presos, na mesma delegacia, e soltos três dias depois.

Bem, como se pode ver situações limites são frequentes. Um pouco de fluoxetina, bom-senso e tolerância podem servir de bálsamo numa situação dessas. Caso contrário, os resultados podem ser imprevisíveis.



terça-feira, 18 de novembro de 2014

Uma lição do passado que nunca é aprendida


Westfront 1918: a insanidade da guerra das trincheiras não serviu de lição 



De volta a um assunto recorrente, a Grande Guerra, que completa 100 anos, matou mais de 10 milhões de jovens, redesenhou a Europa e deixou uma ferida que infeccionaria com a Segunda Guerra, mais potente e arrasadora, com o holocausto, a bomba atômica no Japão e assim por diante.

O que mais impressiona nos documentários e nos registros cinematográficos da Primeira Guerra é o entusiasmo que movia toda uma geração para um conflito militar confuso, cujos objetivos nunca ficaram muito claros e que, nem de longe, poderiam ser profetizados em agosto de 1914, quando o exército alemão passou por Luxemburgo em direção à Bélgica.

No livro clássico de Erique Maria Remarche, Sem Novidade no Front, fica patente a mobilização exacerbada promovida por professores para que seus alunos deixassem as bancas escolares e se deslocassem para as trincheiras. Era um fervor tremendo, sem que se entendesse afinal o que se pretendia: certamente não era apenas uma guerra de retaliação pelo assassinato de um arquiduque da casa dos Habsburgo, em Sarajevo, promovido por um grupo anarquista sérvio.

Remarche: Professores incentivavam seus alunos para a guerra

É farta a documentação hoje que atesta que tanto os generais alemães, como os franceses, se dedicaram a preparação da guerra, pelo menos desde 1908. Animados pelos arroubos nacionalistas de ambos os lados, os políticos deram vazão aos anseios dos militares e quando acordaram estavam encalacrados em uma guerra que ninguém sabia ao certo como começou e muito menos como ia acabar.

Remarche destrói o ânimo belicista alemão e se tornaria um dos mais importantes livros pacifistas de todos os tempos. Em 1930, Lewis Milleston levou o romance para o cinema. No mesmo ano, George Pabst rodaria na Alemanha Westfront 1918: Vier Von der Infanterie. Antes em 1925, os americanos rodaram sob a direção de King Vidor, o clássico The Big Parade. Em 1933, os franceses fizeram Les Croix de Bois, dirigido por Raymond Bernard. E em 1937, Jean Renoir construiria uma obra prima chamada A Grande Ilusão. Em 1939, Dalton Trumbo publicaria o clássico Johnny vai a Guerra, uma cacetada definitiva no ânimo belicista.

A Grande Ilusão: resgatado em Munique nos anos 50


Tanto o filme de Pabst como o de Renoir sofreram tentativas da Gestapo de destruí-los. Foram salvos porque os originais estavam escondidos em uma cinemateca obscura em Munique e puderam ser restaurados na década de 50. Isso significa que havia uma preocupação na máquina de propaganda nazista de esconder as feridas da primeira guerra no ânimo alemão.

Esta tendência da humanidade em repetir e minimizar os erros do passado parece uma constante na história. Ainda mais quando a experiência é marcada pela dominação, pela vergonha e pelo sadismo. Há quem diga que o estopim da Segunda Guerra foi aceso na Conferência de Versailles, quando os alemães foram totalmente humilhados. E que a insistência do presidente francês Clemanceau em manter francesas as províncias da Alsácia e da Lorena, teria sido o gérmen da insatisfação. Outros dirão que a Liga das Nações, nos moldes propostos pelo presidente americano Woodrow Wilson poderia ter evitado o conflito.

The Big Parade (1925): incursão yankee na Europa em 1918

Bobagem. O século XX mostrou que o ânimo imperialista das potências econômicas precisa da guerra como nós, cidadãos comuns, precisamos de oxigênio. Depois de Hiroshima, ainda veio a Coréia, o Vietnam, Israel, os Balcãs, o Afeganistão e assim por diante. O mundo está sempre ameaçado pelo passado sombrio das guerras que promoveu e parece se esquecer de seus efeitos.

Os militares alemães prometeram ao Kaiser uma guerra de 90 dias. Durou quatro anos. Os militares brasileiros prometeram devolver o Brasil a normalidade democrática em dois anos, demorou 25 anos. Os resultados são bastante visíveis.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O jornalismo não morreu

Minha filha Bianca costuma funcionar como uma espécie de grilo falante, sobretudo, nas minhas convicções. Daí me resulta desconfortável quando ela me qualifica como o último dos românticos. Não se trata aqui do romantismo aplicado a Cyrano ou a Camilo Castelo Branco, ou até a Alexandre Dumas. Mas, ao fato dela identificar em mim a renitente crença em valores e comportamentos ultrapassados.

Não está sozinha. Outras pessoas tão queridas, mas não tão influentes, também tem este diagnóstico.

Sempre vi o jornalismo como a última trincheira da história. Por isso me inspirei em figuras marcantes no seu exercício: Hemingway, Graham Greene, Kappa, John Steinback, Woodword, Arnett  entre outros.

Talvez o meu romantismo se deva ao fato de ter sido forjado na trincheira da reportagem. De nunca me incomodar em viajar com quatro gordos em um Gordini para a Bolívia, se isso significasse alcançar uma notícia.

Sempre tive horror ao yuppismo dos anos 90, quando o jornalismo deixou de ser uma profissão maldita. Quando o repórter deixou de ser um personagem incômodo para ser objeto de sedução.

Sou do tempo em que a liberdade para escrever fazia parte da remuneração, ainda que fôsse em um hebdomadário impresso em um mimeógrafo.

Meu mestre Tão Gomes Pinto me ensinou que o repórter tinha que capturar o cheiro da notícia. Cláudio Abramo falava em faca entre os dentes.

Com quatro gordos em um Gordini estive na América Central, na África, nas ditaduras do Cone Sul, na Bolívia e no Peru. Na maioria das vezes com o dinheiro contado para dormir em uma pensão e fazer uma só refeição. Não foram poucas as vezes em que sai do país escondido em kombis da VARIG, ou atravessei fronteiras a pé, com medo de ser enfrentado por um bando de meninos armados.

Quantas vezes não enfrentei a morte, cara-a-cara, senti o bafo dela no meu cangote ou temi pela tortura inútil e inconsequente sentado no chão gelado de uma cela.

E tudo isso por quê?

Porque eu acredito que o jornalista, o repórter, é a testemunha da história. A ele compete narrar os fatos que a história vai documentar. Sim. Eu gostaria de estar na Normandia no dia D, em Hiroshima, antes da bomba cair, no Vietnam durante a guerra, em Paris na primavera de 68, na Revolução Espanhola e assim sucessivamente.

Hoje, velho e cansado, não sinto mais as forças que me moviam para o perigo, para o inusitado.

Bem, mas já faz algum tempo em que eu deixei a redação, na verdade 14 anos, e mudei de lado. Coloquei como objetivo que iria trabalhar para orientar os repórteres e editores, sempre em busca da verdade, da informação clara.

Nunca intimidei um colega. Nunca neguei um fato. Nunca reagi a uma crítica. Não tolero a crítica pessoal, a plantação fria de informações falsas.

O jornalismo é heróico e romântico, Bianca. Tem que ser. Não importa o lado da notícia que você está. Um episódio marcante e ilustrativo para mim ocorreu no final da Segunda Grande Guerra na Europa. Um grupo de 17 correspondentes de guerra fizeram um combinado com o supremo comando aliado, no dia 7 de maio de 1945,quando se deslocavam de Paris para Reims, onde os alemães assinariam a rendição incondicional no dia seguinte. O supremo comando americano queria fazer o anúncio bombástico com os generais alemães. Tudo certinho, bonitinho, para colocar mais umas moedas políticas na bolsa política do general Dwight Eisenhower, o comandante supremo da Europa.

Ed Kennedy, repórter da Associated Press, não concordou com isso. Ainda havia combate sobretudo na Tchecoslováquia, na Itália, nos balcãs e na própria Alemanha, aliás, onde alguns nazistas insistiam em escaramuças tanto contra o exército vermelho, como contra ingleses, americanos e franceses.

Vamos combinar que um jornalista que se preza seria incapaz de dormir com uma notícia dessas: o fim de uma guerra que ceifou nada menos do que 50 milhões de vidas.

Kennedy mandou um despacho para Londres por volta das 15 horas: por um telefone livre, sem censura: “Escreva aí. A Alemanha capitulou incondicionalmente. A guerra acabou”.

Ed Kennedy pagou caro pela audácia. Foi expulso da Europa e só conseguiu emprego em jornais menores do interior dos Estados Unidos, até que morreu em um acidente de automóvel em 1958.

Tenho certeza que ele não se arrependeu jamais de ter quebrado o embargo político americano.

No outro lado da moeda, na Nicarágua pré-sandinista, uma agência americana de Relações Públicas havia sido contratada pelo ditador Anastácio Somoza para defender a sua imagem. Tarefa hercúlea eu diria, para não dizer nojenta, ainda que aqueles profissionais tivessem suas hipotecas para pagar. “Vocês tem que ver que sempre há o lado do presidente e do governo”, repetiam a exaustão.  

Estas agências americanas procriaram em todo o mundo e, sobretudo, no Brasil. Atuam com uma força descomunal. É comum um repórter de um jornal procurar o “outro lado” da notícia, sobretudo quando relacionada a um governo ou a uma estatal e a resposta ser passada diretamente para o seu editor, acompanhada de um corolário de ameaças e de argumentos do tipo: vocês podem se queimar, ou pior, vocês estão entrando no jogo político. Fulano vai ligar para o dono do jornal.

Meu Deus! Que argumento poderoso é esse que convenceu editores experientes e donos de veículos a descartar a informação de que São Paulo vive uma das piores crises de abastecimento de água de sua história? Muito bem, o governador Geraldo Alckmin ganhou mais um mandato, mas a população corre o risco de tomar banho de canequinha. Escolas e hospitais correm o risco de fechar por absoluta falta de abastecimento de água. E não se iludam, o único plano de contingência da SABESP é rezar. Rezar muito para chover. A píncaros.

Certa vez fui tostado pela assessoria do Palácio dos Bandeirantes porque questionei o governador Franco Montoro em uma coletiva. Ele havia informado que uma grande conspiração de forças reacionárias estava em marcha em São Paulo. Ora, ele era o governador, eleito, tinha toda a legitimidade. Não podia fazer uma denúncia como se fosse senador ou deputado. Cobrei dele as medidas necessárias para garantir o estado de direito.

Fui acusado de fazer o jogo político da ditadura, ou ainda pior, do PT.

Na última década do século XX, passei semanas no Nordeste em busca de poços que seriam perfurados com recursos públicos. A reportagem evoluiu para obras com mais de 100 anos, e que recebiam religiosamente recursos federais, todos os anos. Trombei com um potentado “progressista” ligado ao governo do presidente Itamar Franco.

A reportagem nunca foi publicada e eu ainda fui taxado de estar a serviço de poderosas forças de esquerda, cujo objetivo era desacreditar as instituições republicanas. Mais tarde, devidamente selecionadas, estas obras compuseram uma investigação no Congresso batizada pomposamente de CPI das Obras Inacabadas. Deu em nada, óbvio.

A reportagem de Veja distribuída as vésperas do segundo turno do último pleito eleitoral, segundo a qual, Dilma e Lula sabiam de tudo o que rolava na Petrobrás, merece uma qualificação só: LIXO!

Feita as pressas, tinha como objetivo claro interferir diretamente no resultado das eleições. Pior. Nenhuma das informações veiculadas se confirmou.

É jogo jogado, como diria o Elio Gaspari. Afinal, a Editora Abril não foi a única que tentou interferir nas eleições. Muitos veículos fizeram isso por dinheiro ou para se cacifar numa eventual eleição da oposição. E outros fizeram isso apenas para se identificar com uma parte do eleitorado que rejeitava o governo.

Veja foi descarada. A Editora Abril nunca teve simpatias por teses e governos progressistas. Nem no Brasil nem no mundo. É um direito dela. Já havia até feito conluios com criminosos, vide o celebre caso Carlinhos Cachoeira. Desta vez, entretanto, passou da conta. Colocou mais um tijolo no túmulo que erigiu ao jornalismo ali na avenida Marginal do rio Pinheiros. A  sociedade tem mecanismos jurídicos para se defender, o governo também. Pessoalmente, duvido que aconteça alguma coisa. Passado o frisson eleitoral, todos vão se refestelar no banquete dos rapapés, como se nada tivesse acontecido.

O jornalismo é a arte de incomodar os poderosos e confortar os desassistidos. Eu acredito nisso. Ao longo de mais de 40 anos de carreira, testemunhei vários casos de heroísmo, ou de romantismo, que mudaram o rumo da história. E eu me orgulho bastante de ter contribuído, ainda que modestamente. Na redação ou na assessoria. Se isso é ser romântico, que seja.Se romântico é sinônimo de ingênuo, isso também não me incomoda. Felizmente não estou sozinho. Tenho testemunhado o surgimento de novas gerações de repórteres que ainda carregam consigo o brilho nos olhos, que se colocam humildes diante da notícia. O jornalismo mudou, mas não morreu.