domingo, 23 de fevereiro de 2014

O mau humor do mundo e a busca das origens

Toni Servillo, como Gap Gambardelli: filme de Sorrentino é uma pancada


Fim de semana de múltiplas apreensões. Enquanto a cidade – quem diria – dá vazão a sua verve carnavalesca com dezenas de blocos nas ruas, um grupelho de mil manifestantes, aparentemente contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil tumultua as ruas, depreda agências bancárias e o patrimônio público como lixeiras e orelhões.

O mundo está mesmo confuso. Reina um mau humor tremendo, uma inconformidade inexplicável. Na Venezuela, setores de classe média decidiram confrontar o governo do presidente Nicolas Maduro. Uma menininha a bordo de seus 17 ou 18 aninhos, loira como personagem de A Noviça Rebelde diz que não viu ou viveu o seu pais no passado. Mas, que ouvira de seus pais que era um país lindo (sic).

Lindo para quem¿

Não consigo, nem tenho a pretensão de entender o que se passa na Ucrânia. Mas, salta aos olhos que “as ruas”, como ocorreu na primavera árabe, inconformadas, reverteram decisões institucionais. Colocaram em xeque governos e governantes, etc, etc, etc....

Bem, a Primavera Árabe revelou-se um Inverno Árabe. É só ver o que aconteceu com o Egito.

Já-já vamos comemorar os 50 anos da Redentora. E até onde eu me lembro, a classe média também foi para as ruas para defender o país da ameaça comunista, com Deus pela Família e pela Propriedade.

Claro, a direita defende a balburdia no quintal dos outros: as manifestações em Caracas são legítimas. No Brasil, nem tanto. A esquerda faz o caminho contrário.

Recentemente, instado pela colega Joon, vi o filme de Paolo Sorrentino, A Grande Beleza. Candidato italiano ao Oscar de filme estrangeiro.

Não sei se Sorrentino tinha a intenção de explicar o mundo contemporâneo, ou apenas contar uma história. Mas, que pancada!

O personagem principal, um jornalista de 65 anos, de nome Gap Gambardelli, habitue das rodas da classe média romana, simplesmente destrói com uma ironia e um sarcasmo inigualável não só tudo ao seu redor como os últimos 50 anos da vida romana, vale dizer do mundo ocidental. Não sobra pedra sobre pedra.

Gambardelli, na minha opinião, é o mesmo personagem de Fellini em La Dolce Vita, em Oito e Meio e, em menor escala, em Cidade das Mulheres. Mas, agora, envelhecido, ele mostra o sexismo dos tempos atuais, o vazio dos discursos da classe média, a caricatura dos personagens vivos que estão ao nosso lado e o nada, absolutamente nada, que ressurge da reflexão neste mar de mediocridade do século XXI.

Alguns momentos são inesquecíveis: a atriz que se lança contra uma pedra e de rosto sangrando se dirige a plateia aos gritos de “Eu me odeio”. Mais tarde, confrontada pelo jornalista que queria entender a sua motivação diz: “Tenho uma vibração interior”.

Muito bem, diz o jornalista. Mas, que vibração é essa¿ Gambardelli insiste, mas não consegue arrancar um único suspiro racional.

Outro personagem notável é o cardeal que só consegue se expressar através de receitas culinárias, que ele recitava como um mantra.

E, finalmente, a mais hilária e comum de todas: a personagem burguesa que defende sua militância esquerdista e a publicação de diversos livros sobre o movimento operário italiano: “Stephania querida. Nós gostamos muito de você. E nunca confrontamos o seu desempenho progressista. Mas, vamos combinar que seus livros são ruins e que você só os publicou porque era amante do editor”.

Sorrrentino tirou meu sono. Não porque tenha feito uma revelação. Mas, porque organizou numa história ambientada no cenário mais bonito do mundo, a cidade de Roma, o desastre absoluto de um mundo de faz-de-conta, cujas referências se desmancham  a um simples sopro racional.

Gambardelli lembrou-me uma passagem curiosa que eu vivi em Helsinque, em meados dos anos 90. A capital da Finlândia é uma cidade fria, cinza, como de resto o país inteiro, parece uma maquete de trem elétrico, onde tudo funciona azeitadinho, direitinho. Um saco!
A única nota fora do diapasão era uma boate, que explodia durante a noite com a apresentação de uma bomba sexual chamada Anita, vendida como brasileira, cujas fotos difundidas por toda a cidade e todos os hotéis, mostravam uma negra escultural, de formas delirantes e generosas.  Decidi conferir os poderes da minha compatriota, até porque imaginei que poderia haver uma boa história ai.

De fato, a boate fervilhava. Havia uma ansiedade incontida no rosto de homens e mulheres que se aglomeravam no ambiente. Aquele sorriso cúmplice de quem estava rompendo a barreira do permitido e do proibido.

Por fim, depois de litros e litros de álcool e outras cositas mas, servidos nas mesas e nos balcões, apareceu a moça. Definitivamente linda. Suas formas não eram tão esculturais, nem tão generosas como a propaganda fazia crer. E sua performance não acrescentava nada que não pudesse ser visto num cabaré brasileiro qualquer.

A moça se esforçava e muito, com caras e bocas, e se enrolava naquele pau de sebo de uma maneira quase anti-natural.  Chegar até ela depois de duas de suas performances, quando a noite já acabava, não foi nada fácil. Mesmo tendo me identificado como jornalista italiano, o que o meu nome, para um gerente finlandês, era um atestado suficiente.

A tal Anita, num primeiro momento, em uma cena perfeitamente ensaiada, respondia em inglês atrás de um biombo em seu camarim, as obviedades previsíveis. Que havia nascido em uma favela no Rio, que a sensualidade era natural nas mulheres brasileiras e assim por diante.

Tinha a sensação de estar falando com uma máquina. Foi quando decidi perguntar em português: “Mas, que diabos uma negra carioca está fazendo aqui no fim-do-mundo¿”

Olhei para os seguranças que permaneciam à porta do camarim e eles continuavam impassíveis. O silêncio que vinha de trás do biombo era prenúncio de um desastre. De repente, o monstro brasileiro do sexo apareceu como se fosse uma criança surpreendida em sua traquinagem e me respondeu em espanhol: “Voce é brasileiro, não é¿”

A partir daí veio a história real: ela era caribenha, nunca tinha colocado os pés no Brasil, como tantas meninas, bem dotadas ou nem tão dotadas, havia deixado a terra natal para se prostituir na Europa. Um inglês louco havia tirado ela das ruas, criado um personagem para ela, treinado a sua performance, e desde então ela fazia muito sucesso no Bas-Fond de países nórdicos. Com os olhos cheios de lagrimas, ela me disse que depois do inferno das ruas, ela levava agora uma vida digamos menos atribulada. Ganhava muito dinheiro e dizia que o único equipamento que ela possuía era o próprio corpo, que usado de forma apropriada e apoiado em alguma campanha de marketing e muito diz-que-diz, trabalhava com a imaginação de homens e mulheres.

“Voce gostou da minha apresentação¿”

Gostei muito, respondi. Você é linda. Desculpe ter me metido na sua vida.

Sai da boate e fui caminhando umas seis quadras até o hotel onde estava hospedado. Fazia muito frio, coisa de cinco graus abaixo de zero. Alguns flocos de neve pareciam pendurados no ar. Que diferença fazia o fato de Anita ter nascido em Trinidad ou no Rio. Nada disso interferiria na realidade de ninguém.

Muitos anos antes, tive meu momento de Gambardelli. Mas, só agora, depois de ver o filme de Sorrentino, ficou claro para mim que a resposta de tudo está na origem, nas raízes que nos alimentam.


Quanto ao mundo, vai se alimentar da ficção e dos factoides, e continuará mergulhado na sua própria mediocridade. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Eternamente Roma


A Fontana de Trevi ao meio dia: descrição imponente de Respighi






Meu querido avô postiço, mestre e arquiteto da minha personalidade, teria coçado os bigodes fartos e dito: “Mas seria preciso¿ Respighi não teria bastado¿”.

Tenho que admitir, o impacto do concerto de abertura da temporada 2014  da Orquestra Sinfônica Municipal, ontem, foi muito grande. Perturbador mesmo. Repassei cada compasso da tríade romana de Respighi e poucas vezes na minha modesta vida de apreciador de música, contemplei uma apresentação tão perfeita.

Que orgulho!

Um ano depois de catar os cacos do mais tradicional conjunto sinfônico da cidade, o maestro John Neschling derrubou o mito de que uma orquestra precisa de décadas para se afirmar, mas confirmou outro: liderança é tudo, como diria o grande regente Herman Scherchen, mestre de toda uma geração do passado.

Dos três poemas sinfônicos que Respighi escreveu para a Cidade Eterna confesso a minha predileção pelas Festas Romanas, o último a ser composto e o primeiro apresentado ontem. As dificuldades apostas no pentagrama, na orquestração, o contraste de ritmos, a exigência dos solos de trombone, trompa e, sobretudo, das madeiras estão entre as partituras mais complexas que eu conheço. E tudo isso resulta leve, envolvente e sedutor.

Minhas referências são as versões mágicas de George Schell e de Eugene Goosens. Neschling fez uma leitura fraseológica distinta. Segurou um pouco o andamento, marcou mais os compassos do Circus Maximus, e depois fez com que os acordes jorrassem naturalmente. Na parte central da peça permitiu que os solistas brilhassem sem jamais encobri-los. Respirou fundo para atacar a Epiphania e a orquestra atenta correspondeu. Acatou os comandos com precisão e enfrentou aquela loucura sinfônica com garbo e elegância.

Vô querido, foi perfeito. Você teria se orgulhado.

Nas fontes, sobretudo na descrição da Fontana de Trevi ao meio dia, as trompas deram um show ao arrancar o carro de Netuno no meio das águas. E os trompetes, mágicos, insistentes. Que beleza!

Finalmente os Pinheiros, a mais intimista das três, com  vento entre as suas folhas, a sombra, os pássaros e finalmente a marcha das hordas na via Appia.

A diferença deste concerto foi a apresentação de um espetáculo vídeo-cênico criado pelo grupo catalão La Fura dels Bals, com imagens selecionadas e captadas pelo fotógrafo francês Emmanuel Carlier. A ideia é induzir o público na compreensão da música e compor um espetáculo multi modal.

Este modelo foi apresentado em Caracalla e em outros teatros da Europa. A concepção de Carlier com La Fura sob a música de Respighi foi considerado um dos melhores espetáculos apresentados no ano passado. Ontem, dividiu opiniões.

Tá legal vô. Também acho que o Respighi não precisa disso. Nem o Orff, nem o Holst e muito menos o Richard Strauss. Mas, vamos combinar: o teatro estava lotado. Os ingressos para o concerto de hoje estão esgotados e teremos que fazer uma apresentação extra na terça. E é só o começo da temporada. Estamos todos ansiosos pela 4ª. Sinfonia de Mahler, sem La Fura.

A nossa orquestra vô está, como dizem os gaúchos, nos trinques.