segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Como um tirano promíscuo, deixou-se seduzir pela enteada, e entregou-lhe a cabeça do profeta



Dificil sair enlevado do teatro: seqüência final de Salomé é impressionante





O que levou Oscar Wilde, o polêmico escritor irlandês a abordar a trama bíblica de Salomé, a filha de Herodes Filipe e Herodíades, desejada pelo tio Herodes Antipas, que já havia se amaziado com a cunhada? Certamente não foi a menina mimada e poderosa, que habitava uma corte promíscua, e que ciente de seus poderes sedutores arrancou do tio, completamente seduzido e embriagado, a promessa de lhe entregar o que quisesse, até metade do seu reino, em troca de uma dança.

É pouco provável que Wilde também tenha se fascinado pelo poder profético de João Batista ou Iokanaan, primo de Jesus Nazareno, que anunciava a chegada do Messias, tão esperado pelos judeus. E sua influência assustadora sobre o rei Herodes, que o temia por julga-lo um homem tocado por Deus.

Mas, foi tudo isso que ele usou para mostrar que os desígnios da humanidade as vezes são tão simples e irreais que podem mudar os destinos do mundo. Uma menina mimada e desejada, uma corte promíscua e corrupta, um rei priápico e bajulador e lá se foi a cabeça do profeta.

Não é uma peça teatral que enleve a audiência e deixe o público extasiado com os personagens. Ao contrário. É pesada. Grave. Desconfortável.

O que dizer então da ópera de Richard Strauss, composta em 1905?

O compositor alemão inclui um elemento que a obra de Wilde não tem: a música. Os personagens não recitam, cantam.

É bem verdade que não se sai de Salomé, de Richard Strauss, como se sai da Traviata. Como diria minha filha Nina, é pesado.

Mas, não há como não ressalvar o trabalho do compositor. A sua coragem e o seu arrojo, numa composição de 110 minutos contínuos de música, sem um único compasso de silêncio, uma multiplicidade de ritmos impressionante, uma orquestração arrojadíssima e a exigência absurda dos cantores. Isso para não falar de um quinteto, dos rabinos a respeito do profeta Elias e de sua proximidade com Deus, todo calcado em um acorde dissonante.

A montagem atualmente em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo é um desafio impressionante. A direção cênica da competente Livia Sabag nos leva ao deserto e ao teto do Palácio de Herodes e repassa toda a aridez inerente ao cenário da tragédia. A direção musical de John Neschling e a performance da Orquestra Sinfônica Municipal chega a ser absurda, tal o grau de perfeição. Madeiras, trompas, trompetes, trombones perfeitos. Quinteto de cordas mágico e incisivo. Condução inquietante e provocante.  

Nadja Michael está perfeita como Salomé, papel aliás que ela já interpretou nos principais teatros do mundo, incluindo o Metropolitan Opera House, a Royal Opera House e o La Scala. Sensual, provocante, ela consegue cantar, dançar e interpretar. Peter Bronder faz um Herodes descarado em um primeiro momento e apavorado depois. Iris Vermillion faz uma Herodíades cínica. E Mark Steven Doss faz um profeta enlouquecido.

De todas as montagens feitas pela gestão Neschling não dá para dizer que esta foi a mais entusiasmante. É difícil dizer isso, com uma soprano que se esparrama com uma cabeça ensanguentada pelo palco. Mas, certamente foi a mais perfeita. A música de Strauss ficou certamente martelando na cabeça das pessoas e as imagens fortes ficaram vivas em suas lembranças. E isso certamente foi a intenção de Wilder e Strauss.