domingo, 21 de dezembro de 2014

Metade dos brasileiros que tem curso superior se formaram nos últimos 10 anos



Fernando Haddad - Universidade Nacional de Cordoba- dezembro de 2014








Palestra-aula do professor Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, por ocasião da concessão do título de doutor honoris causa da Universidade Nacional de Córdoba – Argentina, dezembro de 2014.





Eu gostaria antes de mais nada de saudar o magnífico reitor da Universidade Nacional de Córdoba, Dr. Francisco Tabarite, cumprimentar a senhora vice-governadora da província de Córdoba, Alicia Pregno, o senhor intendente da cidade de Córdoba, o prefeito Ramón Javier Mestre, a senhora vice-reitora, a Dra. Silvia Barei, o cônsul geral da República Federativa do Brasil, embaixador Carmelito de Melo, cumprimentar os membros da comunidade acadêmica da Universidade Nacional de Córdoba, os estudantes, os professores, agradecer a presença da comitiva brasileira que me acompanha e dizer que eu me sinto extremamente honrado de estar neste momento em sua presença, senhor reitor, recebendo este distinto título de doutor honoris causa.

Quero dizer que é o primeiro título que recebo fora do meu país e não poderia para mim ser mais honroso receber das vossas mãos uma homenagem que me toca profundamente o coração. Em primeiro lugar pela tradição da Universidade Nacional de Córdoba, primeira universidade argentina, criada pelo menos 300 anos antes da primeira universidade brasileira. Em segundo lugar porque eu me sinto muito ligado ao povo da Argentina, às suas tradições, às suas lutas, ao seu sofrimento, ao que há de comum aos nossos povos, ao que há de diferente e complementar e ao desejo de união que vimos celebrando nas últimas décadas, sobretudo após ao período de redemocratização dos nossos países, período em que novas lideranças surgiram, novas agendas políticas surgiram no nosso continente e uma transformação social vem acompanhando a consciência política dos nossos povos.

Vejo com muita esperança o que o continente nos reserva. Penso que a América Latina vem se transformando mais radicalmente nos últimos anos em busca de justiça social e de reparação histórica. E no que diz respeito ao Brasil essa reparação se torna ainda mais urgente.

Eu gostaria de tecer alguns comentários sobre as marcantes diferenças entre os nossos dois países, sobretudo no que diz respeito ao atraso educacional brasileiro que só recentemente vem sendo enfrentado com dignidade, sobretudo após a redemocratização do nosso país.

Em primeiro lugar, senhor reitor, a nossa independência ela não veio acompanhada da república. A nossa independência, que ocorreu em 1822, estamos às vésperas do nosso bicentenário, ela ocorre ainda nos marcos da monarquia. E o rei que assume o Brasil é o filho do rei da metrópole cuja independência o Brasil celebra em 7 de setembro. Comemoraremos 200 anos de independência. Mas estamos longe de comemorar 200 anos de república no nosso país. E o arranjo de Estado que foi feito distanciou o Brasil dos ideais republicanos e dentre estes ideais a escola pública brasileira foi um sonho que foi postergado muitas décadas, mesmo depois da proclamação da República.

O segundo aspecto a considerar que distingue os nossos povos e a nossa história, a história argentina da história brasileira, é o peso da escravidão no Brasil.

O peso da escravidão no Brasil superou e muito todo sofrimento que pode ser pensado no contexto latino-americano. Não só a população indígena foi sobrepujada e em grande parte dizimada, mas a população trazida da África foi subjugada e o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, apenas em 1888, um ano antes da proclamação da República.

Um outro fardo que pesa sobre os nossos ombros até hoje foi a contrarreforma que aconteceu no Brasil sem nenhum vestígio da reforma, ou seja, nós vivemos no nosso continente todas as agruras da contrarreforma sem respirar nenhum vento, nenhum oxigênio que trouxesse ventos de liberdade no nosso continente. A própria censura nasceu no Brasil antes da imprensa. Nós não tínhamos a imprensa e já tínhamos a censura. Tanto do ponto de vista econômico na escravidão, quanto do ponto de vista político com o estado monárquico, autocrático, quanto do ponto de vista cultural, o Brasil sofreu revezes muito importantes e mesmo após a revolução de 30, ainda assim os educadores mais progressistas foram derrotados pelos governos de turno.

O nosso Sarmiento foi derrotado nos anos 30.

Sabendo que a Argentina viveu sua primeira reforma educacional mais profunda 50 anos antes da nossa reforma. E a nossa reforma, mesmo tendo sido iniciada meio século depois ainda foi mais acanhada que a reforma argentina do século anterior.

Assim se deu durante muitos anos, porque no curto período de  democratização entre o regime Vargas e a ditadura militar o Brasil respirou poucos ares libertários. Houve avanços nos anos 50, mas avanços que não conseguiram se sedimentar no Brasil. E a ditadura tratou de fazer o resto do serviço, tratou de afastar dos nossos sonhos os ideais republicanos de uma escola pública para todos.

Vimos em 1964, com o golpe militar, os nossos melhores sonhos, dos educadores mais avançados, serem postergados por duas décadas. Apenas em 1988, com a constituinte brasileira, que nos entregou a carta que até hoje está em vigor, só naquele tempo é que nós conseguimos vislumbrar os primeiros fundamentos, os primeiros princípios do que viria a se tornar o sistema educacional brasileiro atual.

Ainda assim, mesmo depois da constituição promulgada, vivemos uma década ainda de neoliberalismo que restringiu o orçamento de educação aprovado pelos constituintes em 1988. Seis anos após a promulgação da carta constitucional, nós aprovamos uma emenda constitucional suprimindo recursos da educação em proveito de um ajuste fiscal supostamente necessário para a estabilização da nossa moeda.

Foi em 2002 que chegou ao poder na minha opinião um dos maiores brasileiros da história, o presidente Luis Inácio Lula da Silva, um operário que não teve acesso a educação formal, que não tem diploma universitário, embora hoje seja detentor de quase 100 títulos de doutor honoris causa mundo afora e no Brasil e seu vice-presidente um empresário extremamente bem-sucedido mas que tampouco teve acesso à educação formal, como o presidente Lula, que deram impulso à maior reforma educacional já vista no país.

O Brasil, a partir do começo da década passada, abraçou a causa da educação como nunca e passou a investir recursos cada vez mais vultosos em educação, a começar com a revogação do dispositivo de 1994 que suprimia recursos da educação. Um operário colocou no orçamento da educação o que um catedrático havia retirado do orçamento da educação. E a partir daí as coisas começaram efetivamente a mudar. Eu tive a honra de ser ministro do presidente Lula e da presidenta Dilma por quase sete anos, atuei no Ministério da Educação por oito anos e fui testemunha do desejo genuíno de dois presidentes de superar o tempo perdido. Em busca do tempo perdido, e de colocar o Brasil no mínimo em pé de igualdade com seus vizinhos latino-americanos, seja o Chile, a Argentina, o Uruguai ou o México.

Estávamos muito defasados em relação com os nossos irmãos latino-americanos, a nossa população universitária passava de pouco mais que 1,5% da população brasileira quando o presidente Lula tomou posse. Nos exames internacionais padronizados o Brasil figurava em último lugar de todos os países avaliados pelo Pisa, vinculado à OCDE. Tanto na educação superior, quanto na educação básica e mesmo na educação profissional o Brasil estampava indicadores muito vergonhosos para sua dimensão, para sua pujança, para o seu potencial.

O que o período destes 12 anos demonstra é que sim com vontade política é possível reverter um quadro extremamente desfavorável na área educacional. Não se faz de um ano para o outro, mas em uma década você já começa a colher os frutos de uma política determinada para a educação. Hoje quase 4% dos brasileiros estão matriculados em universidade. Os negros que só entravam nas universidades para fazer a limpeza dos vidros e do chão, hoje estão nos melhores cursos do país: de medicina, de engenharia, de direito, de enfermagem, de administração, de economia. Não há universidade pública federal que não tenha um contingente expressivo de jovens egressos de escolas públicas e de todas as raças, brancos e negros e de todas as classes sociais, ricos e pobres convivendo em um espaço de pura excelência, que para ser considerado público tem que contemplar todos os perfis que a nossa sociedade enseja. Hoje a cor da universidade começa a mudar, a cor da pele da universidade. As vestimentas dos alunos começam a mudar: existem alunos hoje com os trajes típicos das nossas periferias. Hoje pessoas que não vislumbravam a possibilidade de entrar em uma universidade têm o seu primeiro diploma na família. Muitos brasileiros detêm hoje o primeiro diploma das suas famílias. Uma coisa espantosa: 40% dos brasileiros, quase metade dos brasileiros que têm curso superior se formaram nos últimos 10 anos.

O que eu estou querendo dizer é que em apenas 10 anos nós quase dobramos o número de brasileiros que têm diploma universitário. Isso nos coloca numa situação de igualdade na América Latina. Mesmo nos exames internacionais, e nós fizemos questão de apoiar as escolas públicas a partir do governo federal e no Brasil as escolas públicas não são federais, são municipais e estaduais, como aqui em Córdoba, ou seja, são mantidas pelos governos locais, mesmo assim nós fizemos questão de criar um mecanismo de financiamento da escola pública, a partir de recursos federais, mecanismos de gestão da escola pública a partir de instrumentos desenvolvidos pelo governo federal e um sistema nacional de avaliação escola por escola, avaliação que é divulgada para as famílias a cada dois anos, para a que monitorem os indicadores relativos à qualidade. Hoje a família brasileira acompanha os indicadores de quantidade, mas ela acompanha igualmente, com a mesma transparência os indicadores de qualidade.

E com isso o Brasil na década passada esteve entre os três países que mais evoluiu em qualidade de ensino no mundo, tendo saído de uma posição muito complexa, de uma base muito baixa, mas fomos o terceiro país que mais evoluiu nos indicadores educacionais. Isso não é motivo em si mesmo de celebração, porque o patamar atual ainda está muito aquém do potencial do nosso povo e da nossa gente. Mas para um país que vedou cursos superiores, que vedou a imprensa livre, que vedou a escola pública, que interrompeu processos históricos de emancipação e de superação, de garantia de direitos, como fez o Brasil, eu acho que este século deu testemunho de que nós podemos juntos acumular forças para superar estes desafios.

A nossa corrida, o nosso esforço, não é para superar a América Latina. O nosso esforço é para que nós estejamos no mínimo no mesmo patamar e para que nós possamos dar as mãos: argentinos, chilenos, uruguaios, bolivianos e brasileiros. Eu tenho certeza de que se nós tivermos um intercâmbio intenso, trocando as nossas experiências, nos visitando mais recorrentemente, compreendendo melhor a nossa história, preparando melhor o nosso futuro, nós vamos poder avançar juntos muito mais do que nós fizemos até aqui.

E a América Latina tem pressa, não pode se manter estagnada do ponto de vista educacional. E todos nós provamos que podemos fazer muito pela nossa gente num período em que a democracia se consolida, que o debate de ideias se impõem, em novos instrumentos de trabalho e novas tecnologias sociais surgem a cada dia, tecnologia da informação revolucionando a comunicação entre as pessoas, nós podemos efetivamente a partir do intercâmbio cultural e educacional oferecer para os nossos povos desenvolvimento sustentável e de longo prazo, não apenas na economia, gerando do emprego e renda, mas sobretudo no plano da cultura.

A cultura latino-americana é uma das mais ricas e pujantes do mundo. Nós temos cultura, nós exalamos cultura, nós produzimos cultura incessantemente, nós iluminamos o mundo com a cultura que produzimos. Isso tem que se reverter também no campo educacional, no campo científico. Temos muita interação científica para fazer. O Brasil lançou um programa de interação internacional e envio 100 mil brasileiros para fazer cursos no exterior, mediante um programa chamado Ciência Sem Fronteiras. Quero crer que muitos brasileiros estejam hoje na Argentina estudando, nas universidades públicas do país, e há muitos argentinos hoje estudando no Brasil, no entanto a proporção ainda é muito baixa. Nós temos que fomentar novos mecanismos de intercâmbio.

Não pode ser tão difícil para um argentino fazer uma universidade no Brasil ou para um brasileiro fazer uma universidade na Argentina. Não pode ser tão difícil para um professor se manter seis meses ou um ano no Brasil levando os conhecimentos que ensina aqui aos alunos brasileiros, o mesmo vale para os professores brasileiros que se tivessem oportunidade estariam lecionando nas universidades argentinas.

Eu acho que há um caminho de intercâmbio muito grande e o continente europeu, que é muito mais diverso que o continente latino-americano, mediante mecanismos de integração universitária está liderando processos de intercâmbio a nível continental com resultados efetivos. A Europa se levanta novamente a partir da cooperação internacional, em termos de produção científica. Eu entendo que nós devemos explorar essas possibilidades muito mais do que fizemos até aqui. Nós ainda olhamos para o Mercosul como um arranjo econômico. Eu penso que os educadores devem olhar o Mercosul também como um arranjo cultural e educacional. Talvez se nós abraçarmos a ideia do Mercosul cultural e educacional, nós facilitemos a vida dos nossos diplomatas quando celebrarem acordos comerciais. A cultura e a educação dariam muito mais respaldo e tornariam muito mais generosos os nossos diplomatas e economistas que estão sentados às mesas e às vezes por um detalhe não chegam a um acordo em benefício dos nossos povos.


Resumindo a minha fala: eu, como ministro da educação no Brasil, pretendo explorar todas as possibilidades de interação, criamos uma universidadeem Foz do Iguaçu, a nossa Unila, Universidade de Integração Latino Americana, 50% dos estudantes da Unila têm que ser latino-americanos, assim como o corpo docente tem que ser obrigatoriamente metade latino-americana. Criamos uma universidade no Ceará, em Redenção, que é a primeira universidade voltada para a integração do Brasil com a África, em que 50% dos estudantes têm que ser oriundos do continente africano, assim como o corpo docente. O desejo portanto de integração está expresso em todas ações do governo brasileiro, sobretudo no período a partir do presidente Lula. Há uma vontade, um desejo de integração. E eu penso que os nossos sistemas educacionais, os sistemas de ensino e a nossa produção científica teriam muito a ganhar se solenidades como essas servirem para celebrar um entendimento dos nossos povos. Eu fico muito comovido com essa homenagem, vou levar no coração o resto da vida o dia de hoje por ter sido reconhecido fora do meu país, por um povo de um país que eu aprendi a amar. Viva a Argentina, viva o Brasil, viva a Universidade de Córdoba! Obrigado.

domingo, 14 de dezembro de 2014

A arte de incomodar um tirano

Dimitri Shostakovitch; um caroço na gargante de Stalin

A Macbeth de Mtsensk: montagem do MET de Nova York





Certa feita caminhava pelo píer do porto de Barcelona, na Espanha, dando tratos a imaginação, quando me chamou a atenção um ponto vermelho que se destacava no horizonte. O ponto logo se transformou em um navio e evidentemente chamou a atenção o tamanho do cargueiro que se aproximava do cais. Era a capitânea da frota mercante soviética, o Dimitri Shostakovitch.

Curiosa homenagem. Um compositor, maestro e professor emprestou seu nome para o maior cargueiro a singrar os sete mares. Coisa de comissários soviéticos, sem dúvida.  Seria difícil imagina-lo, em sua timidez quase doentia, aceitar tal batizado.

Shostakovitch tinha 11 anos quando eclodiu a revolução de outubro de 1917. Desde suas primeiras composições era de se esperar que ele estivesse entre os principais talentos que emergiram na União Soviética. Estudou e conviveu com outro gênio, Serguei Prokofiev. Era amigo e reverenciava o gênio de outro Sérgio, o Eisenstein. Que trio!

Revolucionário convicto, enxergava no realismo socialista a arte de seu tempo. Uma de suas obras mais marcantes foi a trilha sonora para nada menos que o clássico Encouraçado Potemkin, cujo material sonoro serviria de base para a monumental sinfonia número 5, com a qual fomos brindados no ano passado, graças ao talento do meu amigo John Neschling, à frente da Sinfônica Municipal.

Muito cedo, entretanto, os comissários soviéticos perderam-se na visão de que a arte ou a manifestação humana sobre a forma, a música e as imagens não poderiam revelar a visão única do artista, se não a expressão da coletividade. Caso contrário se constituíria em arte burguesa individualista.

O que isso quer dizer, na prática, nunca ninguém soube explicar. Mas, é óbvio, um conceito de tal maneira difuso serviu para perseguir talentos, reforçar invejas e assim por diante. Uma cantata como Alexandr Nevsky, composto por Prokofiev, ainda que conte a história da unificação russa, na Idade Média, seria uma obra burguesa individualista¿
O camarada Stalin já travestido de todo poderoso secretário geral do Partido Comunista Soviético não tinha lá um gosto musical tão expressivo. Enxergou nos grandes bales de Tchaikowsky e na eterna habilidade russa para a dança uma ferramenta de propaganda. E elegeu como sua ópera predileta a monumental Boris Goudonov, de Modest Moussorgsky, com revisão e edição final de Nicolai Rimsky-Korsakoff.

Por alguma razão que foge à minha compreensão, Stalin elegeu Shostakovitch como o compositor do regime. O que incomodou profundamente o maestro. De tal sorte que a cada encomenda, como se quisesse revelar a sua insatisfação, ele reagia com uma malcriação. Sutil malcriação. Mas perceptível.

Ao final da Segunda Guerra, por exemplo, Stalin encomendou uma grande sinfonia. Seria, como foi a 9ª de Shostakovitch. E como nona deveria guardar relação com a monumentalidade de suas irmãs, de Beethoven, de Schubert, de Mahler e de Bruckner. Uma composição que incorporasse à massa orquestral, uma massa coral gigantesca, solistas, canhões a la 1808.

Shostakovitch fez uma sinfonia mínima, em mi maior. Batizou-a de pequena. Introduziu elementos claros de jazz e de música instrumental.  É uma linda sinfonia. Mas, o camarada espumou de ódio.


Apesar disso, o compositor escapou ao ódio do regime. A comunidade musical internacional o protegia. Desde sempre, Shostakovitch era admirado em toda a Europa e nos Estados Unidos. Morreu em 1975. Compôs 15 sinfonias e 15 quartetos de cordas, diversas obras de câmara, música para o cinema, para ballet, cantatas e, pelo menos, uma ópera monumental, Lady Macbeth of the Mtsensk District. Além de concertos para piano, para violino e para violoncelo.  

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O grande duelo da Tosca de São Paulo


Ainhoa Arteta(Tosca) com Roberto Frontali(Scarpia): segundo ato. Avanti a lui...



A primeira coisa que salta aos olhos, ou mais apropriadamente aos ouvidos, nesta monumental montagem de Tosca, no Theatro Municipal de São Paulo, é a condução orquestral soberba do maestro ítalo-suiço Oleg Caetani. Em uma palavra: impressionante!

Conto mais de 30 montagens de Tosca. Algumas exuberantes, em teatros majestosos, como o MET, o Scala e o Colon. Cantores consagrados como Domingo ou Carreras, ou Guelfi, ou Bruson, ou Freni ou Caballet. Ou, por outro lado, montagens amadoras, em teatros pequenos, uma delas até na garagem de um casarão, acompanhada apenas por um píano. Mas, esta de Caetani revela uma releitura inimaginável da partitura de Puccini.

Ele simplesmente fez a música fluir. Sem ênfases excessivas, sem atropelar o andamento como se tudo fosse uma tarantela ou uma canção napolitana. Pontuou com notável clareza as frases. Fez fluir a orquestração original e apostou nos solos e nos naipes, notadamente das madeiras e das trompas. O solo de clarineta na abertura do terceiro ato, na introdução do E Lucevan le stelle,  foi marcante. Perfeito.

Nossa orquestra se comportou a altura do maestro que ocupava o podium.

Bem, outro ponto marcante foi a seleção de cantores. Basicamente do trio principal. As duas sopranos são maravilhosas. Ainhoa Arteta, mais experiente fez uma Flória  Tosca mais interiorizada. Mais reflexiva. Seu Vissi  D’Arte provocou arrepios. A lituana Ausrine Stundyte, mais jovem, fez uma personagem mais vigorosa e mais teatral. Duas performances memoráveis.

Os barítonos, ao contrário, tiveram participações distintas. Embora ambos estivessem muito bem caracterizados no papel do barão Scarpia, o italiano Roberto Frontali foi superior com uma voz mais ampla, redonda e convincente. O cubano Nelson Martinez – excelente cantor diga-se – esteve um ponto abaixo, mas compensou com uma performance teatral magistral.

Convém registrar que o Barão Scarpia é um dos vilões mais cínicos da história da ópera.

Frontali (Scarpia): um dos mais cruéis vilões de todas as óperas
Bom chegamos ao ponto nevrálgico desta montagem: os tenores. Muito bem. O badalado Marcelo Alvarez, flamante tenor argentino que granjeia fama nos maiores teatros do mundo, teve uma crise de diva, mas ao final apresentou-se de forma correta. Fez um Cavaradossi comedido, sobretudo nas grandes árias, Recondita Armonia e E luceven en stelle. Saiu-se melhor nos duetos com a espanhola Arteta.

O americano Stuart Neill, por outro lado, arrebentou a boca do balão. Mais integrado com a leitura de Caetani, ele fez um Mário Cavaradossi maravilhoso. No domingo, após a grande ária do terceiro ato, teve uma consagração de quase 10 minutos de aplauso. A química com a soprano Ausrine Stundyte funcionou perfeitamente. Ambos deram um show no palco. Sobretudo no segundo ato, quando a intensidade dramática beira a insanidade.

Uma palavra sobre o aggiornamento da trama e a montagem de Marco Gandini. Não são todas as óperas que se prestam a isso.  Sempre achei que Tosca era uma delas. Afinal a ação é bastante datada: a célebre batalha de Marengo, em 14 de junho de 1800; os cenários também: a Igreja de Santo André dell Valle, o Palazzo Farnese e o Castelo de Sant’Angelo, todos em Roma.

Ausrine Stundyte(Tosca): ambientação nos anos 70 funcionou 


Gandini, entretanto, trouxe a trama para os anos 70 do século XX.  É verdade que entre o estado autoritário e policial de Pio VII e as ditaduras militares latino-americanas vai uma grande diferença. Mas, o barão Scarpia bem que poderia ser comparado ao delegado Fleury. Algum desconforto em imaginar uma diva liberada, tão piedosa. Mas, são pequenos detalhes que não incomodam. A verdade é que os cenários funcionaram muito bem, inclusive o teto da prisão com o anjo caído, no terceiro ato.


Neill e Alvarez terão ainda sete récitas de duelo. Será muito interessante acompanhar o confronto.