domingo, 30 de agosto de 2015

A volta triunfal da Siri ao Theatro Municipal





Maria José Siri no camarim: preparando-se para o primeiro ato




Mais uma estréia coroada de êxito. A Manon Lescaut de Puccini, a sexta produção deste ano do Theatro Municipal de São Paulo subiu ontem, sábado dia 29, e terá récitas ainda hoje, e nos dias 1, 3, 5, 6, 8 e 10 de setembro.

Trata-se de cara de uma produção marcada por dois gênios indiscutíveis da música e do teatro: o maestro John Neschling e a soprano uruguaia Maria José Siri. O profissionalismo dos dois impressiona de uma forma indelével e absoluta.

Neschling, veterano de tantas orquestras e de tantos teatros que dirigiu e formou, nunca esteve tão bem, como agora, à frente do Theatro Municipal de São Paulo e da Orquestra Sinfônica Municipal. Ele transmite segurança, competência e faz com que orquestra, coros e solistas entreguem o melhor.

Siri em Manon, primeiro ato: domínio perfeito da cena
Quanto a Maria José Siri, esta menina de olhos vivos e a força da personalidade charrua, quem a viu como Aída aqui mesmo em 2013, matou saudades de sua voz aveludada, firme, um instrumento perfeito. Como atriz esbanjou talento no difícil segundo ato e, sobretudo, no quarto. É bom que se registre: Manon Lescaut não é das óperas mais frequentes no Municipal de São Paulo. Siri foi antecedida, em 1928, pela mitológica Cláudia Muzio, e por uma pérola, em 1978, a delicada Gabriela Cigolea.

Que trio!

Manon Lescaut teve sua première no Brasil no Teatro São José, em 29 de agosto de 1893, com o mesmo elenco da estréia mundial em Turim, em fevereiro daquele ano. Em setembro de 1911 estava entre as óperas da primeira temporada do Theatro Municipal de São Paulo.   

A Manon de Puccini é a primeira das grandes óperas que transformou o gênio toscano no verdadeiro e principal herdeiro de Giuseppe Verdi. E é nos detalhes, tão caros ao verismo, que reside o perigo de sua montagem. Pode escapar a um diretor e até ao público, mais jamais a um perfeccionista como Neschling: o barítono brasileiro Paulo Szot, no papel do sargentão Lescaut, o Edmondo de Valentino Buzza e o Geronte de Saulo Javan e, sobretudo, a delicadeza com que a mezzo Malena Dayen fez um simplório músico no segundo ato, mostraram rigor e eficiência.


Siri em dois momentos: a futil do 2o. ato e a condenada do 3o.
Se Múzio foi acompanhada pelo não menos mitológico Beniamino Gigli e Cigolea pelo então flamante tenor argentino Nicola Martinucci, Siri teve como seu Des Grieux o tenor italiano, Marcello Giordani, estrela de ponta do Metropolitan de Nova York.    

Foi uma grande noite! Mais uma deste nosso teatro, que jamais viveu uma temporada igual em sua centenária existência. Não vai dar nem para respirar. Em outubro, o místico Lohengrin, de Richard Wagner e, depois, o humor e a picardia de Wolfgang Amadeus Mozart e sua Cosi fan tutti.





Siri brilhante: domínio da cena no 4o.ato foi brilhante 

sábado, 29 de agosto de 2015

Planalto em chamas



Soldados paranaenses de partida:defesa de território contestado


A semana foi marcada pela chegada da correspondência de meu amigo Paulo Ramos Derengoski, que me mandou seu último livro, A Sangrenta Guerra do Contestado, tema de obsessão dele, e de uma certa forma, meu também.

O texto apaixonado do Paulo me trouxe a reflexão as barbaridades perpetradas pelas elites brasileiras, sempre covardes, egoístas e prepotentes.

Outro amigo meu bastante ligado ao assunto, e que aliás anda sumido, é o cineasta paranaense Silvio Back, que rodou no passado até um longa-metragem sobre o assunto.

O Contestado tem elementos fantásticos de uma história verdadeira, dramática e reveladora. Batalhas de guerrilha e campais, cerco, romance, sedução, misticismo. Tudo isso em um dos cenários mais bonitos do país, o vale do rio do Peixe, em cuja margem direita começa a região contestada por Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Embora a questão fronteiriça fosse apenas periférica, ela é imperativa no início do conflito. Eternamente preocupados com a ameaça de uma aventura militar castelhana no Sul do país, os militares do Rio de Janeiro entenderam como fundamental a construção de uma estrada de ferro que ligasse São Paulo ao Rio Grande do Sul. Seria uma forma de deslocar tropas para a região da fronteira com velocidade.

O governo Prudente de Morais (1894-1898) decidiu então por uma negociata. Cedeu ao Sindicato Farcquar 15 quilômetros de terras em cada margem da ferrovia, que atravessaria o Paraná, cruzaria Santa Catarina pelo vale do rio do Peixe e desembocaria no Rio Grande do Sul. As terras catarinenses eram marcadas sobretudo pela existência de pinhais e madeirais centenários.

A ferrovia evidentemente foi traçada de forma a abarcar toda esta madeira. O Sindicato entre outras coisas logo instalou ali uma serraria, à época uma das maiores do mundo, chamada Lumbert.



Ataque de colonos: ferrovia era alvo da guerrilha
Claro, havia uns poucos diabos, posseiros e colonos, que viviam na região da lavoura de subsistência. A estas criaturas sobrou a expulsão e para os que resistiram se raspava a cabeça, colocava-se sal em suas bocas, e dá-lhe chibata.

Esta gente andou perambulando sem destino pelo Oeste do Estado, até que ouviram falar que na cidade de Curitibanos, mais precisamente em seus arredores, um monge arregimentava almas sofredoras e defendia o reino do Altíssimo.

O monge auto-batizado José Maria, seguia a tradição dos profetas que se multiplicavam pelo interior do país, a exemplo de Antônio Conselheiro, na Bahia, pregando um mundo novo e abjurando o novo regime, a República, que havia expulsado os colonos de suas terras.

Zé Maria não era um Conselheiro. Na verdade era um desertor da Força Pública do Paraná. Não queria saber de briga. Tanto que quando o governador de Santa Catarina, Hercílio Luz, mandou tropas do Estado para dispersar os colonos que se agrupavam em sua volta, não teve dúvidas. Juntou a todos e atravessou o rio do Peixe em direção as colinas do Irani.

O monge não tinha a menor idéia da encrenca que estava a criar. Ao atravessar o rio do Peixe entrou na região contestada pelos três estados. O Paraná queria sua fronteira no rio Canoas-Uruguai, o Rio Grande no Iguaçu e Santa Catarina queria chegar até o rio Paraná.

Para os paranaenses, liderados por um governador estúpido como Affonso Camargo, tratava-se da incursão de catarinenses em território do Paraná. Motivo mais do que suficiente para uma aventura militar. E, assim, dentro de um enredo que se mostraria macabro, armou um exército com canhões e metralhadoras austríacas para, como diziam na época, “trazer amarrados os invasores catarinenses para Curitiba”.

Os soldados foram confiados a um garboso oficial do exército brasileiro, comandante da Força Pública do Paraná, o coronel João Gualberto (nome de uma avenida em Curitiba). Partiram sob vivas e gritos embarcados nos trens da São Paulo-Rio Grande.

Ao chegar na região, o coronel mandou uma patrulha avançada propor a rendição a Zé Maria. Por alguma razão, o desertor da Força Pública do Paraná não aceitou. Ao contrário, arregimentou os colonos mais experientes. Alguns armados com velhos mosquetões, refugos da Guerra do Paraguai, outros com facas de madeira apropriadas apenas para quebrar a erva mate. Privilegiado pela questão geográfica, encastelou-se com duas linhas de defesa no alto da Serra do Irani. E decidiu esperar pelo ataque.

Na noite da vigília da batalha, sentados em torno de uma fogueira e sob um céu estrelado, Zé Maria profetizou que a batalha se daria embaixo de chuva, embora não houvesse uma única nuvem no céu. Ele e o coronel João Gualberto tombariam mortos. Mas, os colonos seriam vencedores. Ciente, agora, do equívoco que havia perpetrado, orientou seu exército a atravessar de volta o rio do Peixe para terras de Santa Catarina e se entrincheirar em uma localidade chamada Taquaruçu do Bom Sossego e aguardar, pois ele voltaria do além à frente do exército de São Sebastião para enfrentar as tropas invasoras e garantir um reino de felicidade para aquela pobre gente expulsa de suas terras.

Desgraça pouca é bobagem. O dia amanheceu sob tremendo aguaceiro. Os soldados paranaenses literalmente atolaram no barral. As metralhadoras engasgaram. Os colonos caíram sobre os soldados com uma fúria impressionante. Zé Maria e João Gualberto tombaram e os paranaenses foram repelidos.

Como o monge orientara, os colonos catarinenses atravessaram o rio do Peixe de volta para terras de Santa Catarina e construíram um reduto, formado por um quadrado de 40 quilômetros de lado no município de Campos Novos, onde a cabeça era Taquaruçu do Bom Sossego.


O enterro de João Gualberto: vítima dos colonos catarinenses
Em  Curitiba a euforia e os gritos entusiasmados da partida dos soldados foram substituídos pelo desespero das famílias quando o trem chegou transportando os corpos dos soldados mortos. Affonso Camargo, o governador genial, providenciou um enterro jamais visto na cidade para João Gualberto. E na borda do túmulo não se conteve e descreveu com detalhes como milhares de soldados paranaenses foram vítimas de um grupo de covardes colonos catarinenses.

A batalha do Irani ocorreu em outubro de 1912 e deu início a Guerra do Contestado que terminou quatro anos depois em 1916. Mais de 90% de todas as tropas do Exército brasileiro foram deslocadas para enfrentar os colonos e jagunços catarinenses. Um avião foi utilizado como arma de guerra pela primeira vez, muito antes das célebres batalhas da Primeira Guerra Mundial da Europa.


O primeiro aeroplano usado como arma militar
O presidente Cleveland, dos Estados Unidos, foi chamado a mediar o conflito de fronteiras no sul do país. Prevaleceu a tese sempre defendida pelos catarinenses, que ganharam sua fronteira com a Argentina. O esdrúxulo é que a divisa entre as cidades de Porto União (SC) e União da Vitória (PR) até hoje é a linha férrea da antiga São Paulo-Rio Grande. Como tributo a sua contribuição, o Estado do Paraná nomeou uma cidade da região Norte como Clevelândia.


Voltarei ao assunto no futuro. Parabéns Paulo pelo novo livro, realmente emocionante.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Viver em São Paulo tem suas vantagens


Anna Caterina Antonacci e Tatjana Vassiljeva: musas do
canto e do arco,  na mesma noite em São Paulo


E não me refiro apenas a pizza, a gastronomia, o pão ou as feiras livres. Noite de terça-feira, 5 de agosto. Na sala São Paulo, a grande cantora Anna Caterina Antonacci, oferece o segundo recital patrocinado pelo Mozarteum. No Theatro Municipal, a nossa orquestra dirigida por Christian Arming, flamante regente austríaco, acompanha a violoncelista Tatjana Vassiljeva, no Concerto para violoncelo de Edward Elgar.

Coração dividido. Falou mais alto a minha paixão pela OSM. E pela  música sinfônica.

Edward Elgar (1857-1934) é um dos compositores mais instigantes da passagem do século XIX para o século XX. Britânico compôs uma série de marchas para comemorar a ascensão do rei Edward Sétimo ao trono.

Em 1899, Elgar criou as Enigma Variations, o bom e velho temas e variações, mas com uma ponta de mistério, rara mesmo naquele momento. Ficava clara a sua condição de solidão, afinal ele dialogava com os compositores continentais e não com seus compatriotas insulares.

Em 1907, Elgar compôs uma sinfonia e um concerto para violino. Com o advento da Primeira Guerra e a morte de sua esposa, Alice, o compositor deixou de compor. Se sentia superado pela carnificina no continente. Justamente esta perplexidade é facilmente compreendida na sua segunda sinfonia. E de maneira genial em seu concerto para violoncelo.

Nenhuma das duas obras foi muito bem aceito pelo público britânico.  Na verdade, o concerto foi praticamente recomposto por Jacqueline Du Pre e sir John Barbirolli, que captaram perfeitamente este sentimento de vazio existencial e de perplexidade diante dos fatos.

Foi exatamente isso que Tatjana Vassiljeva capturou em sua interpretação. Da nova geração de musicistas que impõe ardor e vigor a sua interpretação, sem esquecer de fazer ressaltar  o fraseado e as nuances da fraseologia, a violoncelista russa impressionou. E muito.

Christian Arming fez ressaltar a delicadeza de nossa Sinfônica Municipal. Zelou pelos solos e mostrou que lidava com um conjunto preparado para o desafio de tocar uma das obras mais enigmáticas do século XX.

Mas, foi na segunda parte, na Sinfonia em Ré Menor de César Franck, que Arming testou mesmo a Sinfônica Municipal. Sua visão da obra de Franck não é de uma sinfonia. Arming não se limitou aos andamentos duros. Encarou a obra como se fosse um poema sinfônico de Franz Liszt, a quem Franck adorava.  O resultado foi espetacular.


Grande noite! Soube que La Antonacci também foi brilhante. Principalmente a sua Chanson Boheme, da Carmem de Bizet e as canções de Ravel e Berlioz. 

Pena! Fica para uma outra vez.