sábado, 16 de julho de 2016

A grande ruptura



Montagem do Teatro Helikon de Moscou: sucesso na Europa e em São Paulo





Em 1934, quando estreou no Teatro Mikhaylovsky, na então Leningrado, a montagem de Lady MacBeth do Distrito de Mtzensk, muito pouca gente conhecia a pequena novela de Nicolai Leskov, publicada em 1865, e que serviu de base para o libreto da ópera de Dimitri Shostakovitch.

Leskov, inspirado certamente por Flaubert, conta a história de Katerina, uma dona de casa provinciana que se entrega para um amante e inicia uma série de assassinatos. Adultério, sexo, estupros, coisas raras de se ver de forma tão explícita num palco de ópera. Ainda mais porque, como no caso da anti-heroína de Shakespeare, a história pode se passar nas Ilhas Britânicas da Idade Média, na Rússia tzarista do século XIX, no regime soviético, ou em qualquer ponto do planeta nos dias de hoje. Afinal, trata-se aqui de discutir o papel de submissão a que as mulheres são e continuam a ser condenadas.

A versão de Shostakovitch fez muito sucesso não só em Leningrado, como de resto em diversas cidades europeias, até que em 1936 uma badalada estréia levou Josef Stalin, apreciador de óperas e concertos, ao teatro Bolshoi, em Moscou.
    
Stalin não gostou. Acostumado aos acordes redondos de Rimsky Korsakoff e Modest Moussorgsky (sua ópera predileta era a genialíssima Boris Goudonov) estranhou as dissonâncias e as melodias interrompidas de Shostakovitch. Também não gostou da história, considerada pequeno-burguesa pouco condizente com o regime soviético.

Dizem que ele mesmo escreveu o editorial do Pravda, publicado no dia seguinte, 28 de janeiro de 1936. E a crítica foi tão feroz que assustou não só o compositor, como todo um grupo de intelectuais. Prokofiev se mandou para os Estados Unidos, Eisenstein caiu no limbo, entre outros poetas e escritores que procuraram o exílio ou o anonimato.

Stalin percebeu que errou na mão. Até porque Shostakovitch já era consagrado no mundo inteiro e a sua Macbeth havia feito sucesso na Europa antes da estréia em Moscou. Nomeou-o compositor oficial do partido, talvez a única coisa que Dimitri realmente não queria e encomendou uma grande sinfonia.

Foi assim que veio ao mundo a monumental quinta sinfonia.

As relações entre Stalin e Shostakovitch foram tensas até que o grande líder soviético foi para o politburo do além em 1952.

Pessoalmente tenho adoração pela música de Shostakovitch, além de suas sinfonias, em que destaco a primeira, a quinta, a sétima, a nona e a décima, recomendo sua série de quartetos e os dois concertos para piano, um deles também com solos e trompete.

Esta montagem da MacBeth produzida pelo Teatro Helikon de Moscou, antes de vir para São Paulo, percorreu os principais teatros da Europa, sempre dirigida pelo maestro Dimitri Bermann, que também rege a nossa Sinfônica Municipal. Chamo a atenção para os notáveis interlúdios orquestrais que separam os nove quadros que compõe a ópera.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Programa obrigatório no final de semana




Zemlinsky no piano com seu aluno de contraponto Schomberg:amigos inseparáveis


Depois do momento Boston Pops, o maestro Neschling e a Orquestra Sinfônica Municipal voltam a mergulhar nos programas mais intensos. Por isso mesmo, o concerto deste final de semana, sábado as 20 e domingo as 17, é imperdível para quem gosta de apreciar música na exata acepção do termo e mergulhar até a alma no existencialismo complexo do início do século XX.

A Sinfonia Lírica de Alexander von Zemlinsky é uma obra prima poucas vezes executada. Trata-se de uma série de sete canções extraídas do livro O Jardineiro, escrito pelo poeta indiano Rabindranath Tagore, prêmio Nobel de Literatura de 1913 e traduzido para o alemão por Hans Heffenberger. Uma soprano e um barítono cantam alternadamente acompanhados por uma gigantesca orquestra sinfônica, com todos os naipes dobrados.

A obra é de uma dificuldade tremenda. Exige absurdamente dos músicos e do regente. São famosos os efeitos de glissando nas cordas e nos trombones. Coisa de maluco!

Zemlinsky, entretanto, não tem nada de maluco. Suas origens compõem um cadinho exótico: seu avo migrou da Hungria para a Áustria e sua mãe era uma austríaca típica. Por outro lado, sua mãe nasceu em Sarajevo, filha de um pai sefardita e de uma mãe bósnia muçulmana. Ao final, todos se converteram ao judaísmo.

Musicalmente ele encantou Johannes Brahms com um trio de clarinetes composto em 1896. Depois tocou na Polyhymnia, uma orquestra criada em 1895 por Arnold Schoenberg. Mais tarde, ensinou contraponto e foi seu único professor formal de música. O que convenhamos é um feito inigualável.
Zemlinsky também foi amigo de Gustav Mahler que regeu a estréia de sua ópera Es war einmal, em 1900. Era apaixonado por Alma Schindler, que, entretanto, viria a se casar com Mahler, em 1902.

A Sinfonia Lírica estreou no dia 4 de junho de 1924 em Praga, sob a direção do compositor. E tornou-se a sua obra, digamos, mais conhecida.

Neschling escolheu a soprano sueca Malin Hartelius e o barítono brasileiro Paulo Szot para a apresentação.

Completam o programa o concerto número 5 para piano de Camille Saint Saens, chamado o Egipcio, com o pianista chileno Gustavo Miranda Bernales. E a Abertura Trágica de Johannes Brahms.

Música! Mas, muita música. 

Ainda há ingressos disponíveis a preços populares.


Vamos exercitar um pouco os ouvidos e a imaginação.  

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Contra o quê estamos lutando?


Morador de rua em São Paulo: situação perene ou precária

Confesso que tenho perdido algum tempo preocupado com a minha sanidade mental. Não é raro eu me confrontar com a perplexidade. Menos ainda entender que eu não tenho capacidade intelectual para “entender os novos tempos”. Nesta semana lidei com várias críticas a política da Prefeitura com moradores de rua.

Pois bem. Foi comum ouvir que os abrigos municipais impõem regras rígidas para abrigar a população de rua. Horários. Hábitos de higiene. Proibição de consumo de bebidas alcóolicas e de drogas. “Os abrigos da prefeitura não atendem as minhas necessidades”, foi o que ouvimos. “Os banheiros são sujos. Tratam-me como se eu fosse um número. Falta carinho”.    

A condição precária da vida destas pessoas evidentemente não justifica que os serviços oferecidos pela Prefeitura sejam desumanos, precários, etc... Mas, em sã consciência, será que uma noite com temperatura abaixo de 10 graus, sensação térmica de três graus, embaixo de um viaduto ou numa praça pública, com ratos, pombos e outros bichanos é melhor que o pior abrigo municipal?

Algumas frases veiculadas pela CBN:

Valderi Israel da Luz: “É. Tem que acordar cedo, a gente vai para lá e às vezes acabam te roubando”.

Morador não identificado: “O banheiro é sujo, as privadas estão muito entupidas. Não tem descarga e o banho é gelado. E também falta um pouco de organização na hora da janta. Alguns moradores de rua furam a fila”.

Pedro Vila Nova: “Os banheiros todos sujos. Os caras fumam maconha lá dentro. Minha droga é cachaça e cigarro”.

Reportagem de Luiz Fernando Toledo publicada no Estadão de hoje:

Claudemir Cassiano: “Sou livre. Não gosto de ter hora para entrar e sair, hora para comer, hora para tudo. Gosto de fazer minhas regras”.

Ana Paula dos Reis: “Não gosto de albergue. Eu me sinto mais em casa na rua. Já conheço as pessoas e posso usar droga à vontade”.

Reportagem da Folha (Agora) sobre sete mulheres que vivem em comunidade embaixo de um viaduto na Zona Sul:

Ângela dos Santos: “Os abrigos são sujos e somos tratados como animais. Temos que sair de lá as cinco horas (não é verdade!)”.  

Sou de um tempo em que as bandeiras da esquerda eram por salário e moradia digna. E que a população de rua, ou aquela que vivia em acampamentos, ocupações, etc, lutavam para sair desta condição. Não para se perenizar nela.
O PT no poder trabalhou muito para tirar 30 milhões de brasileiros da miséria. Lutou para garantir educação e saúde pública para todos. Trabalhou para o pleno emprego.

A Prefeitura ofereceu na última semana 12 mil vagas em abrigos municipais. Em nenhum destes dias houve falta de oferta. Na noite de quinta para sexta feira 350 vagas ficaram ociosas.

A Guarda Civil Metropolitana não faz rondas noturnas na cidade. Não aborda moradores de rua de noite. Tem ordens para não recolher pertences pessoais, nem nada que possa ser carregado pelos moradores de rua. Entretanto, barracos e abrigos perenes são proibidos.

Contra o quê estamos lutando?

Seis moradores de rua morreram na última semana. Eles fazem parte de uma soma de 12 a 15 que morrem todos os meses na cidade, independente da estação do ano. Pode fazer frio ou calor. Morrem de doenças crônicas hepáticas, de pneumonia, de tuberculose, doenças cardio-vasculares, em sua maioria. O frio agrava este quadro. Sem dúvida. Mas, ninguém morreu por falta de atendimento ou por intervenção da Guarda Civil Metropolitana ou de qualquer funcionário da Prefeitura. O próprio Instituto Médico Legal informou que nenhum dos óbitos se deu por hipotermia.

Querem nos acusar de higienismo porque o prefeito não quer permitir que prosperem acampamentos, ou favelas, na cidade. Ele trabalha duro para garantir moradia digna para a população, inclusive de rua.

Ontem anunciou que vai instalar quatro tendas (as mesmas usadas na campanha contra a dengue) para abrigar e tratar moradores de rua, sobretudo, nas noites frias que ainda virão com o inverno. Institucionalizou um protocolo com a Defensoria Pública definindo o comportamento aceitável dos agentes públicos. O que pode e o que não pode ser apreendido. Ampliou o programa Braços Abertos, praticamente dobrou, para atender a população que quer trabalho e moradia, como forma de lutar contra o vício do crack.

De novo, contra o quê estamos lutando? E pelo quê estamos lutando?



segunda-feira, 13 de junho de 2016

Um deus no céu e um maestro no podium

Aida, primeira montagem desta gestão: participação de todos os corpos estáveis


Gosto de música desde que me conheço por gente. Aos seis anos debutei no Theatro Municipal numa matiné de Rigoletto. Acho que minhas duas primeiras paixões foram o futebol e os concertos matinais que ocupavam as manhãs dominicais. 
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Não tive a sorte de me dedicar a um instrumento, embora tenha dedilhado um piano e aprendido a ler uma partitura. Desta forma, decidi investir na capacidade de ouvir, de distinguir intérpretes, de analisar execuções. Por conta própria estudei um pouco de regência, história da música, harmonia, solfejo e fraseologia.

Este conhecimento me permitiu, por exemplo, perceber que Milton Nascimento é um compositor complexo. Não é qualquer cantor ou cantora que se aventura nas suas canções. Que Cauby Peixoto era um monstro de um cantor, capaz de transitar tranquilamente entre Conceição e Irving Berlin, ou Cole Porter. Que algumas canções de Chico Buarque, notadamente aquelas compostas para o teatro, tinham a estrutura de um musical, para não dizer de uma ópera.

E, claro! Meu ouvido educado permitiu distinguir a Filarmônica de Viena da Banda da Guarda Civil Metropolitana de Osasco. 

Nada contra nada. Adoro, por exemplo, ouvir um cantor de cantina se esgoelando com o Sole Mio ou com Por una Cabeza. Cansei de ouvir o Champagne per brindare un incontro, na voz do Giovanni Bruno (Ah! Que saudades!).

Na minha juventude frequentei muito o Teatro Lírico de Equipe, que às vezes se apresentava numa garagem com cantores amadores, outras tantas no Teatro Arthur de Azevedo, com high lights de grandes óperas acompanhadas apenas por piano. Era um prazer inenarrável ouvir um mecânico de automóvel se transformar no Conde de Luna, ou a gostosinha do bairro em Mimi.

Guiado por mestres fui levado a conhecer os grandes templos da ópera e das orquestras sinfônicas. Primeiro em gravações e depois, graças a minha profissão e a sorte de ter percorrido as principais cidades do mundo, presencialmente.

Falstaff: montagem criativa de alto nível artístico
Sempre soube que o maestro John Neschling é genial e genioso. E que entre suas maiores qualidades está a capacidade, só conferida aos gigantes mitológicos, de transformar um conjunto musical numa orquestra sinfônica. Não afeito às pachecadas ou aos lances midiáticos, ele é rigoroso ao extremo. Vive da música e para a música e assim construiu uma carreira que o transformou no século XXI em um dos maiores regentes do planeta.

Transformar o Theatro Municipal em uma casa de ópera e, eventualmente, de concertos em padrões internacionais, é uma destas missões que se confia a uma personalidade como Neschling.

Ainda me lembro da execução dos interlúdios orquestrais do Peter Grimes, de Benjamin Britten, nos primeiros concertos, em 2013. Poucos minutos antes da apresentação, o prefeito me questionou porque eu estava tão aflito. Na verdade, suava frio, tinha as mãos constritas, o batimento cardíaco acelerado. Era um divisor de águas. Depois daquela noite, pensava eu, nada mais voltaria a ser como antes. E não foi. 

Começamos a produzir em série: Aida, Falstaff, Il Trovatore, Salomé, Carmem, Tosca, Eugen Oneguin, D.Giovanni, Lohengrin, entre outras.

Fora do poço, a série completa das sinfonias de Mahler. Faltam apenas a 7ª e a 8ª. O Tríptico Romano de Respighi com a Fura del Bauls, As Quatro Últimas Canções de Strauss. Foram três anos de realizações que levaram o casarão de Ramos de Azevedo a figurar entre os maiores teatros do mundo, literalmente.

Sonhar era permitido: D.Carlos, Boris Goudonov, Contos de Hoffmann, Parsifal, Peter Grimes, o Tríptico de Puccini, La Fanciulla del West, Der Freischutz, O Cavaleiro da Rosa. A série integral das sinfonias de Bruckner. O Réquiem de Guerra, de Britten, quem sabe as duas sinfonias de Elgar. Com os corpos estáveis celetizados, o céu era o limite.

Mas, forças estranhas se articularam em uma espantosa velocidade para punir os sonhadores. Apoiados em um modelo jurídico ultrapassado, perpetraram descaradamente um assalto aos recursos do Theatro. Não se sabe ainda ao certo, se 10, 12 ou 15 milhões, em três anos. Mas, se sabe quem são os autores. Estão às portas do cárcere. Pelo menos eu espero.

Na ânsia de se livrar da cadeia e do fato de que foram pegos com a boca na botija, jogaram lama em pessoas honradas, que sonhavam com o melhor para a cidade e que vibravam a cada acorde e a cada ária.

Pior. Reabriram as portas para um debate oportunista. Se agora era a hora de discutir o aprimoramento do modelo jurídico, valendo-se inclusive do bem sucedido da exemplo da OSESP , preferem questionar a via artística. Exatamente o que deu e está dando certo. 

Com base em um democratismo ultrapassado, querem rebaixar tudo a um nível primário e devolver o Theatro à mediocridade de antes. Quem sabe com concertos de funk ou rap, apresentação de corais de igrejas, bandas militares, formaturas e assim por diante.

Nada contra estas atividades. A Prefeitura dispõe de uma dezena de teatros municipais para este fim.

Também não tenho nada contra a formação de conselhos artísticos, de administração ou do que quer que seja, desde que seus membros saibam com o que estão lidando. Um especialista em artes plásticas, não necessariamente entende de Robert Schumann, ou de Claude Debussy. Um carnavalesco não entende de uma montagem de ópera. Um diretor de cinema pode muito bem aprender, mas sua habilidade com uma câmara não é suficiente para que ele entenda de balé.
Adoraria que a nossa orquestra tivesse a maturidade e a experiência da Filarmônica de Viena, que escolhe ela mesma os regentes que a dirigem. Ou a Concertgebown de Amsterdam, cujos músicos participam da sua programação artística. Quem sabe um dia a gente chega lá. Por enquanto, é fundamental termos uma direção autoral, assessorada e fiscalizada. Um deus no céu e um regente no podium.

Neschling: um dos dez maiores regentes em todo o mundo
E este regente tem de ser o melhor. Ter experiência. Formar músicos e cantores. Ser distinguido em todo o mundo. Atrair público de toda a parte. Desenvolver uma programação específica para formar plateias, sem rebaixar o nível artístico. Oferecer o melhor. É o que temos com Neschling.

Deve ser apoiado por uma política de marketing que desenvolva o orgulho da população em ter um teatro de ponta, reconhecido internacionalmente, com história e excelência. Possa angariar apoios financeiros que assegurem sua independência e não onerem o poder público. Foi assim que as maiores orquestras americanas foram criadas. Foi assim que as principais orquestras europeias passaram pelo horror da segunda guerra e ressurgiram.

São Paulo se orgulha muito da sua vida cultural. E tem razão para isso. Pode ser também um dos maiores centros de difusão de música clássica e ópera em todo o planeta. Para isso, basta levar a sério e aprimorar o bem sucedido projeto que está em execução. Os teatros de ópera e de concerto de todo o país foram dizimados pelo voluntarismo de uma meia dúzia de “entendidos”. Não vamos, nós também, cometer este mesmo erro.

sábado, 4 de junho de 2016

Lá se vai o maior atleta do século XX


Na manhã de hoje Alá abriu as portas do paraiso: adivinhem quem ele encontrou lá


Tenho um grande amigo que se pauta tanto por posições politicamente corretas que até a seleção de um singelo picolé é avaliada sobre esta luz. Certa vez, revelava a ele minha paixão por Ernest Hemingway. Dizia a ele que me fascinava o vulcão que habitava o seu interior, a capacidade de unir o repórter ao escritor, a ficção a realidade, o narcisismo e o sentimento de derrota que permeou toda a sua vida e culminou com o suicídio.

Este amigo me olhou com aquele ar superior, próprio de quem tem a posse de um sentimento de verdade e sentenciou: mas este cara era um merda. Ele adorava boxe.

Confesso que fui atingido por um raio. Não só porque nutro pela amigo um sentimento de profundo respeito, mas porque eu também sou apaixonado pelo que chamam, ou chamavam, esporte dos reis.

O que há de tão errado no boxe¿

Hoje pela manhã recebi de outro amigo querido a notícia de que Cassius Marcellus Clay Jr. ou Muhammad Ali deixou este mundo.

Ali é certamente o maior atleta do século. Está em uma galeria onde despontam Pelé, Emil Zatopek, George Babe Ruth, Mark Spitz e Michael Jordan. Especificamente no ring, ele superou mitos como Joe Louis, Rock Marciano, Jack La Motta, entre outros.

Seu estilo era impressionante. Comportava-se como um bailarino. Lutava na ponta dos pés, com a guarda na altura do ventre e não parava um minuto sobre o ringue, circundava o contendor e vez por outro desferia seus potentes jabs, que segundo um estudo da época, equivaliam ao deslocamento de um bloco monolítico de concreto.

Na primeira hesitação do adversário, despejava seu repertório inteiro com uma velocidade espantosa e em segundos colocava-o na lona.

Arrogante, convencido, prepotente. Verdade. Mas, parecia humilde quando conversava sobre o esporte que o consagraria. Certa vez, em São Paulo, no Ginásio do Ibirapuera, apresentou-se numa clínica para uma dezena de lutadores. No embate final enfrentaria o campeão brasileiro dos pesos pesados, um capitão da PM de nome Luís Faustino.

Não era uma luta para valer. Apenas exibição. Faustino estava com capacete protetor e nutria uma enorme admiração por seu contendor. Trocaram jabs. Ali dançava em volta do brasileiro. Até que, sem se controlar, o americano despejou uma série de golpes. Quebrou o braço direito do seu oponente. Ficou mortificado sobre o ringue. Durante décadas sustentou a família do PM.

Fora do ringue, Ali se equiparou aos gigantes Martin Luther King Jr.  e Malcolm X na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Confrontou o governo americano ao recusar convocação para servir na Guerra do Vietnam. Valeu-se da sua condição de deus do esporte para defender o seu povo e a liberdade.


Vai Ali, que Alá o receba no Paraíso.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

A culpa foi do Olavo

Coisa de velho né? Bodas de ouro, filhos que se formam, outros que encaminham a vida, amigos que se vão, a respiração ofegante, a emoção incontida e as lágrimas no rosto ao ouvir Puccini, as lembranças de momentos marcantes, de aventuras vividas. Definitivamente não é fácil completar 45 anos de profissão.

Foi no dia 5 de maio de 1971 que eu me apresentei para o trabalho na velha redação do jornal “O Estado de S.Paulo”, na rua Major Quedinho, para ser duble de recepcionista de noticiário e rádio-escuta. No dia anterior, eu estava sentado em um banco (havia bancos naquela época) na praça D.José Gaspar. Experimentava a horrível sensação de um desiludido estudante de Física, diante de um futuro incerto, com dinheiro suficiente para um maço de Hollywood sem filtro e um café coado.

Sob a sombra da imponente biblioteca Mário de Andrade, me apareceu um anjo negro chamado Olavo. Amigo de família, que eu conhecia de vista. Não sabia o que fazia para ganhar a vida. Mas, que transpirava a dignidade daqueles que vivem do trabalho.

Olavo era meio bruxo. Sempre achei isso. Sentou-se ao meu lado com uma atitude terna e me provocou: “O que acontece? Você está triste”.
Debulhei um rosário de lamentações. Nunca entendi porque me abri tanto para alguém que afinal não era tão íntimo. Que eu só conhecia de vista. Mas, foi...

“Você precisa de um emprego. Sabe datilografar?”

Claro.

“Mas, você é bom mesmo numa máquina de escrever?”

Em um minuto eu estava diante do chefe das Comunicações do poderoso Estadão, Alaur Martins. No momento seguinte estava diante de uma máquina de escrever.

Nunca mais sai. As máquinas de escrever tornaram-se peças de museu. E eu também. Acho que o jornalismo mudou muito nestes 45 anos. Alguns dos modelos nos quais eu me inspirei deixaram a lida e foram desta para a melhor: Cláudio e Perseu Abramo, por exemplo. Ramão Gomes Portão, Otávio Pena Branca Ribeiro. Outros saíram da redação: Tão Gomes Pinto (mestre, mentor e amigo), Sílvio Lancellotti (meu irmão querido), Armando Salém. Outros ainda estão na lida: Mino Carta (farol de várias gerações), Clóvis Rossi (parceiro e condutor). A lista é interminável e eu vou parar por aqui.


Vou terminar com a milésima repetição da mensagem que me mandou a amada Anna Muggiati, quando eu sai da revista Manchete, no final de 1997. “Existe um paraíso especial para os jornalistas. É uma redação onde eles trabalham apenas com as pessoas de quem gostam e em quem confiam. Tenho certeza que vou te encontrar no meu paraíso”. 

terça-feira, 3 de maio de 2016

A Bohème de São Paulo


Portari e Kovalevska: Rodolfo e Mimi apaixonados no segundo ato





Certamente La Bohème é a ópera que mais vezes eu vi nos palcos. Vi em Londres, em Paris, em Milão, em Buenos Aires, em Santiago, em Nova York, em Pádua, em Nápoles, em Veneza e, claro, em São Paulo.

Aliás, embora tenha estreado em solo brasileiro no Teatro da Paz, de Belém, em 1900, quatro anos após a première em Turim, sob a regência de Arturo Toscanini, esta obra prima de Puccini guarda uma estranha e simpática relação com São Paulo, mais precisamente com o seu Theatro Municipal.

Puccini é um gigante capaz de embasbacar um profundo conhecedor ou um completo neófito. Suas árias e duetos são extremamente populares. Principalmente nas óperas mais conhecidas, Manon Lescaut, Tosca, La Boheme e Madame Butterfly. Trata-se de um quarteto capaz de encher os teatros de ópera de todo o mundo, tantas quantas récitas forem montadas.

Há várias formas de se encenar Puccini, desde a mais singela, em forma de música de cantina, até as monumentais interpretações que consagraram cantores e maestros.

La Bohème é quase uma brincadeira. A história de quatro estudantes miseráveis na Paris dos anos 70 do século XIX, que vivem em uma república apertada, e as peripécias de uma professora de canto mais a solidão de uma florista que desenhava rosas e lírios sem perfume.

Rodolfo, o poeta que escreve,  se apaixona pela florista Mimi, sua vizinha que o incomoda em hora imprópria; Marcelo, o pintor, sofre com o poder e a sensualidade de sua amada, Musetta; Coline e Schaunard (o músico e o filósofo) mais se divertem que qualquer outra coisa. Afinal, a comédia é estupenda!
Mas, se o libreto é simples assim, a música de Puccini propõe um desafio tremendo: fazer soar simples, melódico e envolvente. Dois exemplos marcantes de dificuldade, o segundo ato praticamente inteiro e o quarteto do final do terceiro ato. Muita, mas muita música!

Esta La Bohème que o Theatro Municipal de São Paulo apresenta em sete récitas e dois elencos neste início de maio ainda acrescenta algumas novidades extremamente bem-vindas. A concepção cênica de Arnaud Bernard e os figurinos de Carla Ricotti criados para a primeira apresentação em 2013, e que se incorporaram ao repertório definitivo da nossa casa de ópera. Juliana Santos a diretora da remontagem conseguiu ainda dar mais vigor, mais espaço, para um cenário tão criativo.

Os dois elencos por sua vez fizeram duas interpretações completamente diferentes: Cristina Pasaroiu e Ivan Magri  fizeram Mimi e Rodolfo mais introvertidos, mais sérios, enquanto Mihaela Marcu e Mattia Olivieri, como Musetta e Marcelo, se encarregaram de um show não só na interpretação vocal como cênica. Na outra versão, ocorreu exatamente o contrário, Maija Kovalevska fez uma Mimi vigorosa, rara, e Fernando Portari fez um Rodolfo mais engraçado, despreendido e apaixonado; Zheng Zhong Zhou e Anna Maria Sarra, por sua vez, deram tintas mais sofridas aos seus personagens.

O coro lírico e a Orquestra Sinfônica Municipal, em comparação com a récita de 2013, permitiram visualizar de forma escancarada a evolução destes dois corpos estáveis nestes últimos anos. O maestro residente da OSM, o jovem Eduardo Strausser , passeou pela partitura com uma naturalidade impressionante. Sabia que a orquestra atenderia sem esforço a sua condução. O resultado dignifica uma partitura tão rica em harmonias e melodias.


O  maestro John Neschling tem razões de sobra para se orgulhar de seu assistente e, principalmente da orquestra que ele recriou e que nunca, repito, nunca na história de 105 anos do Theatro Municipal atingiu um nível técnico de excelência profissional como agora. 


Eduardo Strausser, maestro residente da OSM: orgulho de Neschling
  

domingo, 6 de março de 2016

O poder da inspiração




Mahler e Richard Strauss no início do século XX: amigos inspirados




Não é raro que alguns filhos e amigos me perguntem: “Então qual é a sua música preferida¿ Qual é a composição musical que você mais gosta de ouvir¿ Qual considera a mais completa, mais marcante para a humanidade¿”

A expectativa é sempre que eu cite uma ópera gigantesca, uma sinfonia de arromba, uma missa tonitroante. Mas, como alguém já disse com propriedade, é nos pequenos detalhes que mora o perigo.

Uma das minhas paixões é o quarteto opus 131 de Beethoven. Acho que o gênio de Bonn, no final da vida teve uma inspiração transcendental. Sobretudo na marca que apôs ao pentagrama: “Atacca!Atacca!”.

Se alguém acha que a Sinfonia número 3, a Eroica, jogou a música no romantismo, com os acordes iniciais que anunciavam um novo tempo. Com este quarteto composto bem no ocaso de sua vida, Beethoven quis dizer assim: “Vocês não viram nada ainda”.

Richard Strauss e Gustav Mahler gravaram o seu nome na história da música, um por óperas espetaculares como Salomé e O Cavaleiro da Rosa, outro por sinfonias magistrais, orquestrações impiedosas. Mas, na hora da onça beber água, foram buscar acordes que ressoavam muito mais no coração do que nos ouvidos. A última canção do ciclo Das Lied von der Erde, de Mahler, quando o velho camponês chinês se despede da vida e do planeta e se entrega a eternidade é algo tão impressionante quanto grandioso na simplicidade. Quem quiser conferir, há várias gravações na internet ou na indústria fonográfica. Experimente a versão de Bruno Walter com a contralto britânica Katleen Ferrer.

Tão marcante quanto, embora com um intervalo temporal de quase quatro décadas, são as Quatro Últimas Canções de Richard Strauss. Três delas com poemas de Herman Hesse e a última com texto de Joseph von Eichendorff. Um vigoroso adeus do maestro e compositor a sua esposa Pauline. Dá para imaginar a emoção da estreia, pouco depois da sua morte.

No dia 22 de maio de 1950, em Londres, o mitológico Wilhelm Furtwangler, regeu a Philarmonia Orchestra tendo como solista ninguém menos que Kirsten Flagstad. Uma bobagem!

A força das Quatro Últimas Canções de Strauss é tão grande, que na semana passada, tocada com maestria pela Orquestra Sinfônica Municipal, resultou num pranto contido de todos os músicos, do maestro John Neschling e da soprano americana Emily Magee. A bem da verdade, a despeito do calor (que eu confesso não senti) o teatro inteiro ficou tomado pela emoção.

Foi uma das tantas noites brilhantes que a cidade tem vivido nos últimos três anos.     

A genialidade pode ser divisada tanto na monumental Missa em Si, de Johann Sebastian Bach, no oratório Messias de Haendel, como numa canção que Erik Satie escreveu para homenagear seu cachorro. Num coral que Verdi regeu na cozinha da fazenda de seu padrinho-sogro, quando ainda rascunhava Nabuco. Na suíte A História de um Soldado, de Igor Stravinsky. Ou no poema Saudades das Selvas Brasileiras, uma joia impressionista que Villa Lobos escreveu em Paris, no início do século XX.

O poder da música não está apenas nos recursos que os compositores usaram para se expressar. Mas, na capacidade dos intérpretes de executarem e dos ouvintes em se disporem a ouvir sem preconceitos. Um Noturno de Chopin executado numa noite chuvosa de sábado, em um conservatório da periferia, pode ser tão emocionante quanto uma execução na Sala Pleyel, em Paris.


A música tem este poder.   

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Umberto e Harper, mais dois que se vão


Umberto Eco: via os tempos modernos de forma corrosiva

Harper Lee: autora de um só livro. Criou um personagem mágico


Este espaço vai acabar virando um necrológico. Mas, não tenho como deixar de comentar as mortes de Umberto Eco e de Harper Lee.

Conheci Umberto quando era editor da Manchete. Marcelo Mastroianni tinha acabado de morrer e eu tive a petulância de conseguir o telefone da casa do escritor em Milão. Mais petulante ainda pedi a ele um texto sobre o grande ator italiano.

Com um tom de ironia e mordacidade ele me questionou: “Você não era repórter da Panorama¿ Não é da sua lavra a entrevista com o Toni Negri no Chile¿”

Confirmei humildemente.

Umberto era meticuloso. Praticamente passou a limpo as idéias que tinha sobre Mastroianni  e compartilhou comigo a admiração pelo ator morto, sobretudo em “Uma giornata particulare”, de Ettore Scola, e “Oito e meio”, do grande Fellini.

Não tive coragem de dizer-lhe do meu apreço, sobretudo pela forma ácida com que ele via os tempos modernos. Também não disse o quanto havia me impressionado com “O Nome da Rosa” e, principalmente, “O Pêndulo de Foucault”.

A Manchete fez uma edição praticamente inteira sobre Mastroianni. Pilotamos eu e o grande Otávio Costa, um dos mais competentes e expressivos jornalistas da minha geração.

Harper Lee, para mim, sempre foi um mistério. Para mim e para a humanidade. Assistente do grande Truman Capote (eta alminha perturbada). Ela atuou bastante na apuração do caso “A Sangue Frio”. Deixou o grande escritor e repórter americano com uma tremenda inveja com o sucesso de “O Sol é para todos”. Ainda mais com o Pullitzer de 62.

Capote tinha razão em se corroer. O livro de Harper é brilhante. Tem uma leitura fácil, típica de uma repórter. Além de uma sacada impressionante, a narração da história pela menina Jean Louis. Pena que ela se recolheu para o seu Alabama natal e nunca mais produziu nada.

Eco tinha horror a uma propalada revolução de intelectuais. E se sentia mal, não com os avanços tecnológicos da sociedade, mas com a mediocrização, que segundo ele é uma tendência irreversível. Recentemente, instado a falar da revolução digital saiu-se com essa sobre a internet: “Deram um palanque para os imbecis”.

Não sei o que Harper pensava da luta dos direitos civis americanos. Tudo o que podemos deduzir está na personalidade de Atticus Finch, o advogado provinciano de uma aldeia no Alabama que se insurgiu contra a discriminação racial ao defender um negro, injustamente acusado de um estupro contra uma garota branca.


Ela deixou o rascunho de um outro livro, no qual Jean Louis já adolescente se choca ao descobrir que o pai advogado, na verdade defendia o segregacionismo. Não publicou. Talvez por achar que a humanidade precise do Atticus Finch original. A simples existência de um personagem como ele já é mais do que uma revolução.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Adeus amigo! Até breve


Cláudio Sthepan: amigo verdadeiro, espelho para a vida



Talvez seja um problema de geração. Ou uma questão de ascendência peninsular. Pode ser a forma de criação. Não sei o que dizer. Mas, o fato é que ao longo dos meus 63, quase 64 anos, amealhei grandes amigos. Amigos mesmo. Companheiros nesta imensa viagem que é a existência. E não hesito em dizer que este é, sem dúvida, o meu maior patrimônio.

Toda esta introdução para dizer que neste final de semana perdi talvez o meu mais querido amigo. Querido e importante! Tão amigo, mas tão amigo, que mesmo afastado por quase 20 anos, bastaram algumas palavras para sentir novamente a presença, o companheirismo, o respeito e, sobretudo, o carinho. Neste sábado, meu amigo Cláudio Stephan se foi para outra dimensão.

Dizer o quê de quem foi mestre, condutor, me ensinou a jogar bola, a empinar pipa, a andar de bicicleta. A dedilhar um piano. A ouvir uma sonata de Beethoven e  uma sinfonia de Schumann.  Levou-me à primeira matiné no cine Bertioguinha. Foi espelho para a vida.

Difícil suprir tanta perda.


Clarice, Celso, Cássio e Cecília, sei que vocês estão confortados. Suas convicções são bastante fortes. Mas, a lacuna e a saudade também. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Ressurreição!

Gustav Mahler, regente e compositor: o máximo do sinfonismo pós romântico






Gustav Mahler já era reconhecido como um regente importante, admirado por seus contemporâneos, quando decidiu compor sua primeira sinfonia, o que demorou nove anos: entre o verão de 1881 e o outono de 1890. A estréia se deu quatro anos depois em 1894, em Budapeste e não teve uma recepção muito acalorada nem do público, nem da crítica.

Antes ele havia trabalhado três ciclos de canções, Lieder Eines Fahreden Gesellen, Das Klagend Lied e o monumental Das Knaben Wunderhorn, que também alcançaram pouco sucesso. A forte influência de Robert Schumann, as dificuldades colocadas no pentagrama, além da tentativa de se criar uma escola expressionista pós-wagneriana, eram algumas das queixas.

Mas, o mundo da música, regentes, compositores e estudiosos naquele final de século, sabiam que isso tudo era uma bobagem. E que o maestro boêmio estava propondo uma nova forma de composição, rigorosa é verdade, mas que propunha uma inusitada interação entre a orquestra sinfônica e a partitura.

Por esta razão, quando ele anunciou ainda em 1894 que apresentaria uma segunda sinfonia, criou-se uma grande expectativa nos meios musicais. De tal forma, que Richard Strauss, outro gigante, não esperou nem a sua conclusão. Em março de 1895, ele regeu os três primeiros movimentos, em Berlim, para uma plateia de embevecidos visionários.

Mahler não tinha pressa em concluir sua segunda sinfonia. Entretanto, ao participar das cerimônias fúnebres do maestro Hans von Bulow, ele se apaixonou por um coral juvenil que cantava um hino com letra de Friederich Klopstock chamado Auferstehen (Ressureição) e decidiu colocá-lo no último movimento, com solos de uma soprano e de uma contralto, ou meio soprano.

No processo criativo de Mahler, nada é linear ou descompromissado. Desta forma, no quarto movimento ele ainda colocou uma canção do ciclo Das Knaben Wunderhorn, Urlicht (Luz Primordial). No que se refere a orquestração e desenvolvimento de temas e melodias de toda a sinfonia, o compositor usou todo o seu conhecimento e experiência de regente. Embora o conjunto orquestral seja formado por 120 músicos, com formações back stage (fora do palco) e instrumentos dobrados, todos, simplesmente todos os músicos são exigidos no limite de suas competências.

Em dezembro de 1895, o próprio Mahler regeu a estréia completa da obra, também em Berlim. O frisson foi tão grande nos meios musicais que três regentes se ofereceram para assisti-lo na preparação: Arthur Nikisch, Bruno Walter e Felix Weingartner. Nikisch e Weingartner já consagrados e Bruno Walter ainda despontando em sua carreira.

Ao final da execução, uma certeza. Mahler chegara até aquele momento ao limite máximo da criação. Sua segunda sinfonia era, sem dúvida, o máximo que o sinfonismo poderia alcançar.

Neschling, Mahler e a OSM



John Neschling ensaia Mahler com a OSM: condução mágica 




Mahler morreu em 1911. Sua obra permaneceu então escondida em um escaninho onde só os gigantes como Bruno Walter, Furtwangler, Klemperer ou Toscanini, eventualmente sacavam uma ou outra peça. Só saiu de lá, definitivamente, no inicio dos anos 70, quando Lucchino Visconti valeu-se do adágio da quinta sinfonia para ilustrar a abertura de seu filme Morte em Veneza, adaptação do romance de Thomas Mann.

Quase todos os grandes maestros passaram a ser obcecados por Mahler. Justa obsessão eu diria.

Cabe aqui uma observação pessoal, muito pessoal, se os meus leitores, bem poucos é verdade, me permitem. Nestes últimos três anos tenho acompanhado o trabalho do maestro John Neschling à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Há que se registrar o que ele fez com as partituras de Verdi, Aída, Falstaff, Otello, Il Trovatore. Também o esmero com que ele se dedicou a difícil Sinfonia Dramática de Respighi. Ou ainda a sua versão tonitroante e inquieta da Salomé de Richard Strauss. Inesquecível a suíte orquestral de Peter Grimes, de Benjamin Britten. Ou a Quinta Sinfonia de Shostakovitch. Entretanto, quando ele se debruça sobre Mahler, parece se transfigurar. É como se ele estivesse em Berlim em 1895.

O mais curioso é que este sentimento é percebido pelos músicos que se contagiam pela precisão dos movimentos do maestro e se entregam a leitura e a interpretação que a composição exige. Neste final de semana, 13 e 14 de fevereiro, Neschling chegou à perfeição regendo a segunda sinfonia de Mahler e elevou a Orquestra Sinfônica Municipal ao panteão das grandes orquestras sinfônicas do mundo.  Conduziu com firmeza o Coral Lírico e permitiu as duas cantoras brasileiras, a mezzo Lídia Schäffer e a soprano Camila Titinger, brilharem no ponto exato da partitura mahleriana.

Depois da primeira, da terceira, da quarta, da quinta e da nona, Neschling encarou o desafio de reger a segunda e mostrou que entre ele e Mahler há algo mais que uma partitura e uma orquestra. Para que não fique com gosto de pouco, este ano ainda teremos a raríssima sexta.


Não e qualquer cidade que tem um privilégio desses.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Brahms, Bruckner e as curvas da estrada de Santos

Depois de uma quarta de Brahms notável, onde o jovem Eduardo Strausser mostrou todo o seu talento e a Orquestra Sinfônica Municipal revelou porque John Neschling, seu titular, é um dos maiores regentes do mundo, desci a Serra do Mar com os ouvidos fixados na Nona Sinfonia de Anton Bruckner. O último trabalho sinfônico do compositor austríaco.

Já ouvi esta sinfonia incontáveis vezes. Tenho dois registros, o de Bruno Walter com a Columbia Symhony e o de Eugen Jochum com a Bavária. Sempre que os ouço, tenho a impressão que estou ouvindo pela primeira vez.

Trata-se de um trabalho marcante, ainda mais porque Bruckner, um humilde maestro-capela, adorador de Richard Wagner, decidiu espontaneamente não concluir sua composição. A exemplo do que seu conterrâneo Franz Schubert havia feito décadas atrás, quando imaginava compor sua nona sinfonia, quando na verdade compunha sua oitava, ele também justificou com a máxima que nona sinfonia, só a de Beethoven.



Bruckner: no final da vida escreveu três sinfonias que apontaram para o futuro




Bobagem ou não, esta nona inacabada de Bruckner em três movimentos é uma pancada. Acordes menores, apoiados por tubas wagnerianas na orquestração, o que acentua o início obscuro, para depois, em contraste, iluminar a partitura com um contraponto genial entre os trompetes, as trompas, os trombones e as cordas graves, sobretudo os contra-baixos.

A quarta de Brahms na leitura do jovem Strausser teve o dom de ressaltar o carater terminativo de um período histórico da música alemã, que começou com Beethoven e foi marcante com Schubert e Schumann. Era como se o compositor estivesse dizendo: “olha este é o máximo que podemos chegar. Agora é com vocês”.

De fato, na linha paralela o wagnerianismo corria solto. E o pós romantismo com Bruckner, Mahler, Richard Strauss mostrava um novo caminho.

Curiosamente, ainda que acometido por uma humildade artística e histórica impressionante, o que o relegou a um segundo plano, Bruckner viveu intensamente todos os movimentos musicais do século XIX. Nasceu em 1824 e faleceu em 1896. E sua obra mostra isso. Suas primeiras sinfonias mostram mesmo as contradições de um século generoso em termos de descobertas musicais. Nas três últimas, entretanto, a sétima, a oitava e a nona, ele marca uma transição sinfônica impressionante. Ao contrário de Brahms que disse chegamos até aqui, Bruckner diz: este é o futuro.


Há quem diga, e eu concordo, que os primeiros acordes do século XX são aqueles da clarinete no início da Salomé. Mas, para chegar lá, Richard Strauss teve por trás de si muita escola. Muito caminho percorrido.