sábado, 20 de fevereiro de 2016

Umberto e Harper, mais dois que se vão


Umberto Eco: via os tempos modernos de forma corrosiva

Harper Lee: autora de um só livro. Criou um personagem mágico


Este espaço vai acabar virando um necrológico. Mas, não tenho como deixar de comentar as mortes de Umberto Eco e de Harper Lee.

Conheci Umberto quando era editor da Manchete. Marcelo Mastroianni tinha acabado de morrer e eu tive a petulância de conseguir o telefone da casa do escritor em Milão. Mais petulante ainda pedi a ele um texto sobre o grande ator italiano.

Com um tom de ironia e mordacidade ele me questionou: “Você não era repórter da Panorama¿ Não é da sua lavra a entrevista com o Toni Negri no Chile¿”

Confirmei humildemente.

Umberto era meticuloso. Praticamente passou a limpo as idéias que tinha sobre Mastroianni  e compartilhou comigo a admiração pelo ator morto, sobretudo em “Uma giornata particulare”, de Ettore Scola, e “Oito e meio”, do grande Fellini.

Não tive coragem de dizer-lhe do meu apreço, sobretudo pela forma ácida com que ele via os tempos modernos. Também não disse o quanto havia me impressionado com “O Nome da Rosa” e, principalmente, “O Pêndulo de Foucault”.

A Manchete fez uma edição praticamente inteira sobre Mastroianni. Pilotamos eu e o grande Otávio Costa, um dos mais competentes e expressivos jornalistas da minha geração.

Harper Lee, para mim, sempre foi um mistério. Para mim e para a humanidade. Assistente do grande Truman Capote (eta alminha perturbada). Ela atuou bastante na apuração do caso “A Sangue Frio”. Deixou o grande escritor e repórter americano com uma tremenda inveja com o sucesso de “O Sol é para todos”. Ainda mais com o Pullitzer de 62.

Capote tinha razão em se corroer. O livro de Harper é brilhante. Tem uma leitura fácil, típica de uma repórter. Além de uma sacada impressionante, a narração da história pela menina Jean Louis. Pena que ela se recolheu para o seu Alabama natal e nunca mais produziu nada.

Eco tinha horror a uma propalada revolução de intelectuais. E se sentia mal, não com os avanços tecnológicos da sociedade, mas com a mediocrização, que segundo ele é uma tendência irreversível. Recentemente, instado a falar da revolução digital saiu-se com essa sobre a internet: “Deram um palanque para os imbecis”.

Não sei o que Harper pensava da luta dos direitos civis americanos. Tudo o que podemos deduzir está na personalidade de Atticus Finch, o advogado provinciano de uma aldeia no Alabama que se insurgiu contra a discriminação racial ao defender um negro, injustamente acusado de um estupro contra uma garota branca.


Ela deixou o rascunho de um outro livro, no qual Jean Louis já adolescente se choca ao descobrir que o pai advogado, na verdade defendia o segregacionismo. Não publicou. Talvez por achar que a humanidade precise do Atticus Finch original. A simples existência de um personagem como ele já é mais do que uma revolução.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Adeus amigo! Até breve


Cláudio Sthepan: amigo verdadeiro, espelho para a vida



Talvez seja um problema de geração. Ou uma questão de ascendência peninsular. Pode ser a forma de criação. Não sei o que dizer. Mas, o fato é que ao longo dos meus 63, quase 64 anos, amealhei grandes amigos. Amigos mesmo. Companheiros nesta imensa viagem que é a existência. E não hesito em dizer que este é, sem dúvida, o meu maior patrimônio.

Toda esta introdução para dizer que neste final de semana perdi talvez o meu mais querido amigo. Querido e importante! Tão amigo, mas tão amigo, que mesmo afastado por quase 20 anos, bastaram algumas palavras para sentir novamente a presença, o companheirismo, o respeito e, sobretudo, o carinho. Neste sábado, meu amigo Cláudio Stephan se foi para outra dimensão.

Dizer o quê de quem foi mestre, condutor, me ensinou a jogar bola, a empinar pipa, a andar de bicicleta. A dedilhar um piano. A ouvir uma sonata de Beethoven e  uma sinfonia de Schumann.  Levou-me à primeira matiné no cine Bertioguinha. Foi espelho para a vida.

Difícil suprir tanta perda.


Clarice, Celso, Cássio e Cecília, sei que vocês estão confortados. Suas convicções são bastante fortes. Mas, a lacuna e a saudade também. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Ressurreição!

Gustav Mahler, regente e compositor: o máximo do sinfonismo pós romântico






Gustav Mahler já era reconhecido como um regente importante, admirado por seus contemporâneos, quando decidiu compor sua primeira sinfonia, o que demorou nove anos: entre o verão de 1881 e o outono de 1890. A estréia se deu quatro anos depois em 1894, em Budapeste e não teve uma recepção muito acalorada nem do público, nem da crítica.

Antes ele havia trabalhado três ciclos de canções, Lieder Eines Fahreden Gesellen, Das Klagend Lied e o monumental Das Knaben Wunderhorn, que também alcançaram pouco sucesso. A forte influência de Robert Schumann, as dificuldades colocadas no pentagrama, além da tentativa de se criar uma escola expressionista pós-wagneriana, eram algumas das queixas.

Mas, o mundo da música, regentes, compositores e estudiosos naquele final de século, sabiam que isso tudo era uma bobagem. E que o maestro boêmio estava propondo uma nova forma de composição, rigorosa é verdade, mas que propunha uma inusitada interação entre a orquestra sinfônica e a partitura.

Por esta razão, quando ele anunciou ainda em 1894 que apresentaria uma segunda sinfonia, criou-se uma grande expectativa nos meios musicais. De tal forma, que Richard Strauss, outro gigante, não esperou nem a sua conclusão. Em março de 1895, ele regeu os três primeiros movimentos, em Berlim, para uma plateia de embevecidos visionários.

Mahler não tinha pressa em concluir sua segunda sinfonia. Entretanto, ao participar das cerimônias fúnebres do maestro Hans von Bulow, ele se apaixonou por um coral juvenil que cantava um hino com letra de Friederich Klopstock chamado Auferstehen (Ressureição) e decidiu colocá-lo no último movimento, com solos de uma soprano e de uma contralto, ou meio soprano.

No processo criativo de Mahler, nada é linear ou descompromissado. Desta forma, no quarto movimento ele ainda colocou uma canção do ciclo Das Knaben Wunderhorn, Urlicht (Luz Primordial). No que se refere a orquestração e desenvolvimento de temas e melodias de toda a sinfonia, o compositor usou todo o seu conhecimento e experiência de regente. Embora o conjunto orquestral seja formado por 120 músicos, com formações back stage (fora do palco) e instrumentos dobrados, todos, simplesmente todos os músicos são exigidos no limite de suas competências.

Em dezembro de 1895, o próprio Mahler regeu a estréia completa da obra, também em Berlim. O frisson foi tão grande nos meios musicais que três regentes se ofereceram para assisti-lo na preparação: Arthur Nikisch, Bruno Walter e Felix Weingartner. Nikisch e Weingartner já consagrados e Bruno Walter ainda despontando em sua carreira.

Ao final da execução, uma certeza. Mahler chegara até aquele momento ao limite máximo da criação. Sua segunda sinfonia era, sem dúvida, o máximo que o sinfonismo poderia alcançar.

Neschling, Mahler e a OSM



John Neschling ensaia Mahler com a OSM: condução mágica 




Mahler morreu em 1911. Sua obra permaneceu então escondida em um escaninho onde só os gigantes como Bruno Walter, Furtwangler, Klemperer ou Toscanini, eventualmente sacavam uma ou outra peça. Só saiu de lá, definitivamente, no inicio dos anos 70, quando Lucchino Visconti valeu-se do adágio da quinta sinfonia para ilustrar a abertura de seu filme Morte em Veneza, adaptação do romance de Thomas Mann.

Quase todos os grandes maestros passaram a ser obcecados por Mahler. Justa obsessão eu diria.

Cabe aqui uma observação pessoal, muito pessoal, se os meus leitores, bem poucos é verdade, me permitem. Nestes últimos três anos tenho acompanhado o trabalho do maestro John Neschling à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Há que se registrar o que ele fez com as partituras de Verdi, Aída, Falstaff, Otello, Il Trovatore. Também o esmero com que ele se dedicou a difícil Sinfonia Dramática de Respighi. Ou ainda a sua versão tonitroante e inquieta da Salomé de Richard Strauss. Inesquecível a suíte orquestral de Peter Grimes, de Benjamin Britten. Ou a Quinta Sinfonia de Shostakovitch. Entretanto, quando ele se debruça sobre Mahler, parece se transfigurar. É como se ele estivesse em Berlim em 1895.

O mais curioso é que este sentimento é percebido pelos músicos que se contagiam pela precisão dos movimentos do maestro e se entregam a leitura e a interpretação que a composição exige. Neste final de semana, 13 e 14 de fevereiro, Neschling chegou à perfeição regendo a segunda sinfonia de Mahler e elevou a Orquestra Sinfônica Municipal ao panteão das grandes orquestras sinfônicas do mundo.  Conduziu com firmeza o Coral Lírico e permitiu as duas cantoras brasileiras, a mezzo Lídia Schäffer e a soprano Camila Titinger, brilharem no ponto exato da partitura mahleriana.

Depois da primeira, da terceira, da quarta, da quinta e da nona, Neschling encarou o desafio de reger a segunda e mostrou que entre ele e Mahler há algo mais que uma partitura e uma orquestra. Para que não fique com gosto de pouco, este ano ainda teremos a raríssima sexta.


Não e qualquer cidade que tem um privilégio desses.