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Churchill: em uma de suas maiores habilidades, como comunicador de rádio |
As vezes a omissão de uma
informação, ou a análise de um conceito, pode deformar de forma irremediável
uma história. Fui ver ontem o filme Churchill de Jonathan Tepliak com
roteiro de Alex Tunzelmann. Como ocorreu com Dunkirk, de Christopher
Nolan, parece claro que os britânicos pretendem rever alguns episódios
militares do século XX, pelo menos cinematograficamente, com a visão do
retrovisor da História.
Em Churchill, Tunzelmann
mostra a figura do mitológico primeiro ministro britânico como de um homem
inseguro, autoritário, rude mesmo. Uma interpretação maiúscula de Brian Cox.
Mas comete um pecado irremediável sob o ponto de vista histórico, mas tolerável
sob o cinematográfico. Não é novidade para quem se aprofundou no estudo da
personalidade de Winston Leonard Spencer Churchill (1874-1965) seus traços de
autoritarismo e rudeza. O erro está em atribuir a sua insegurança com relação a
Operação Overlord, ou a invasão da Europa, unicamente por conta das lembranças
do desastre da batalha de Gallipoli, na Turquia, na Primeira Guerra, da qual o
então First Sea Lord foi apontado como um dos responsáveis.
Tunzelmann dá de barato que
todo mundo sabe o que ocorreu em Gallipoli. E para quem não é versado sobre as
grandes batalhas da Primeira Guerra, fica tudo no ar. Com efeito, a arrogância
britânica, associada a um sentimento de subestimação da resistência turca,
lançou em 19 de fevereiro de 1915, uma ofensiva que pretendia tomar a Península
de Dardanellos e assegurar um corredor marítimo até a Rússia, como forma de
manter uma linha de abastecimento. Nada menos do que 480 mil soldados da
Entente, a maioria formada por tropas australianas e newzelandesas, mais a
marinha britânica, foram lançadas em uma operação suicida. O resultado final,
quando a batalha terminou em 9 de janeiro de 1916, foi de 220 mil baixas, 43
mil mortos, dos quais 33.600 apenas entre as tropas da ANZAC ( australianos e
newzelandeses). A passagem jamais deixou de estar sob controle dos turcos.
Churchill pagou muito caro por
este desastre militar. Perdeu o cargo e foi condenado a um profundo ostracismo político.
Mesmo na segunda metade da década de 30, quando ele já antevia a barbárie nazista,
o fracasso de Gallipoli era frequentemente jogado na sua cara.
Natural, portanto, que as
lembranças desta batalha lhe assomassem a mente, principalmente diante do que
se imaginava fosse, e foi, a maior concentração de soldados e recursos da
história militar: a invasão da Normandia.
Mas, o temor do fracasso não
foi privilégio dele. O general americano Dwight Eisenhower, o supremo
comandante aliado, e todo o seu estado-maior, o general De Gaulle e
praticamente todos os militares que planejaram a Overlord, passaram muito mal naquele início de junho de
1944.
Desde 1942, Stalin pressionava
ingleses e americanos a estabelecerem um novo front no Oeste, que lhe desse
algum desafogo, principalmente depois da heroica vitória dos russos em
Stalingrado. As vitórias no Norte da África e a invasão da Itália não eram
suficientes. Churchill e Roosevelt temiam que um novo front na França repetisse
a carnificina da guerra de trincheiras e postergaram o quanto puderam. Mas, em
44, a invasão da França não só isolaria os alemães que resistiam na Itália,
como poderia libertar Paris e colocar os soldados aliados praticamente nas
margens do Reno. Passou a valer a pena o risco.
A Overlord concentrou 155 mil
soldados (franceses, ingleses e canadenses), 14.200 barcos, 600 navios e milhares
de aviões de transporte de tropas para atacar cinco praias (Omaha, Sword, Juno,
Gold e Utah). Assim como parecia óbvia para os ingleses, também era óbvio para
os alemães que mais dia, menos dia, sabiam que haveria uma invasão pela Normandia.
Churchill era contra. Temia a
superioridade tecnológica alemã e a competência dos generais da Wehrmacht.
Preferia manter a pressão no Norte da Itália e na Polônia. Naquele verão
chuvoso de 44, as condições climáticas pareciam prenunciar o desastre. As águas
do Canal da Mancha estavam revoltas, com ondas de até três metros de altura. O
vento era inclemente e mudava de direção todo o tempo. Chovia muito e, quando
não, descia um enorme nevoeiro.
Com este clima, os generais
alemães estavam seguros que a invasão não se daria naqueles dias. Nem
Eisenhower seria louco de lançar uma operação militar gigantesca naquelas condições.
Subestimaram a capacidade britânica de prever o tempo.
Os oficiais meteorologistas da
RAF encontraram uma brecha entre as 4 horas da manhã e a tarde do dia 6 de
junho. Era aquele momento, ou então, somente em setembro. Eisenhower bastante
inseguro, pediu ao seu imediato, o general Ben Bradley, que fizesse uma simulação
de baixas.
Bradley, segundo alguns
historiadores, pressionado pelo comandante britânico Bernard Montgomery, teria
subestimado alguns fatores para apresentar um número perto de 60%. Ou seja, 93
mil soldados morreriam naquela invasão. Eisenhower considerou tolerável.
Churchill foi à loucura. Dada a ordem da invasão, os dois se apavoraram.
Exceção ao desastre americano
em Omaha, a invasão foi um sucesso. O número de baixas foi inferior a 10%, a
maioria deles americanos e canadenses. A cabeça de ponte se consolidou, Paris
foi libertada, e a guerra na Europa terminaria em maio do ano seguinte, dez
meses mais tarde.
Animado pelo sucesso da
Normandia, Churchill ainda autorizaria Montgomery a realizar a invasão da
Holanda, Em 17 de setembro de 44. Um plano singelo, nascido na cabeça doente do marechal inglês, que
imaginava uma invasão de paraquedistas ingleses, canadenses e americanos para
dominar as pontes holandesas, enquanto tropas blindadas de infantaria se
deslocariam até a cidade de Arnhem, ultrapassariam a ponte sobre o Reno,
tomariam o Rur, o parque industrial alemão e forçariam um armistício.
Aqui sim, o desastre foi
absoluto. A inteligência britânica desprezou a informação de que havia duas
divisões panzers comandadas pelo notável general alemão Wilhelm Bittrich, em
Arnhem, e nada menos do que 60 mil experientes soldados alemães, veteranos de
batalhas, inclusive na frente oriental, que descansavam estrategicamente para
enfrentar a invasão da Alemanha.
Foi uma carnificina com mais
de 17 mil soldados aliados mortos ou desaparecidos, dos quais 13.226 eram
britânicos. Muito mais do que na Normandia. Arnhem nunca caiu.
De volta ao filme, Tepliak tem
o mérito de mostrar um Churchill bastante realista. Mas, reitero que não chega
a ser novidade a sua insegurança, o seu temperamento forte, obstinado e
autoritário. Também não chega a ser novidade as dificuldades de relacionamento
que ele tinha com sua esposa, Clementine, magnificamente interpretada por Miranda
Richardson. O casamento dos dois embora tenha durado mais de meio século, foi
marcado por idas e vindas, um abalo terrível com a morte de uma de suas filhas
e um affair seríssimo vivido por Clemie, ainda nos anos 30.
Churchill foi retratado direta
ou indiretamente por mais de uma dezena de filmes. O de Tepliak, ainda que
restrito a um período muito curto, os primeiros dias de junho de 44, tem o mérito
de mostra-lo de forma muito próxima do que se imagina seja a realidade. Ninguém
passa incólume por duas guerras mundiais, uma gigantesca depressão econômica, a
guerra fria, o turbilhão de novidades da virada do século XIX para o século XX,
o período pós vitoriano, a luta pela independência das colônias britânicas, tudo
isso, apenas como um galã de cinema. Mesmo para seus críticos, é inegável que
Winston Leonard Spencer Churchill é um dos mais importantes personagens do
século XX. E isso não é pouco. O filme é obrigatório.