domingo, 7 de agosto de 2011

Caricatura sangrenta


Vincere : Mussolini retratado como militante socialista e depois como líder do fascismo

No início dos anos 80, quis o destino me levar para a capital do Líbano, a outrora e dizem novamente bonita e civilizada Beirute. Quando eu fui, entretanto, rolava uma guerra civil entre cristãos e muçulmanos, entre judeus e palestinos, e a confusão era grande. As Nações Unidas, esta criação bem, intencionada que nunca funcionou, havia destacado forças militares dos Estados Unidos, da Franca e, para surpresa geral, da Itália, para tentar recuperar a paz, ou na melhor das hipóteses a tolerância.
Cheguei do Chipre em uma lancha, que cobrou uma fortuna, e na viagem tive a felicidade de conhecer ninguém menos que o mitológico repórter australiano Peter Arnett, então da ABC Television, com quem rachei o absurdo volume de dólares que pagamos para atravessar o canal do Mediterrâneo. Beirute estava devastada. A Força Aérea Americana e os mariners haviam implantado um regime de terror. Os franceses da Legião Estrangeira não deixavam pedra sobre pedra. E a linha verde, que separava a cidade e demarcava os territórios de cristãos e muçulmanos, era um campo de batalha com trincheiras dos dois lados e escaramuças de parte a parte.
E os italianos? Bem os italianos vinham de navio e não havia previsão de sua chegada. Finalmente chegaram e eu fui ao porto assistir ao desembarque. Eis que para delícia dos colegas repórteres internacionais, um grupo de jovens vestindo camisas e bermudas caquis, meias três quartos com pompons no elástico e um chapéu alpino de feltro onde um enorme penacho cor de vinho chamava vivamente a atenção. Marchavam correndo, com o ritmo marcado por uma corneta insistente. A cena se completou com o desembarque de dois blindados e um jipe pintados de cor de rosa.
Naquela noite, um simpático coronel, acho que Andreoli era o nome dele, me recebeu para uma entrevista no acampamento. Muito gentil, ele me serviu um pouco de spaghetti ao pesto e um copo de um Amarone, o militar italiano surpreso me dizia que raramente era demandado pela imprensa, notadamente a internacional, ainda que me reconhecia como um patrício. Na época eu escrevia para a IstoÉ e para a Panorama do grupo Mondadori.
- Coronel, o pau aqui está comendo. E nós chegamos 21 dias depois, com tanques cor-de-rosa e com berzaglieri alpinos? - perguntei.
O bom coronel não se abalou nem com o tom da minha pergunta. Riu, me ofereceu mais um gole de Amarone, aliás excelente, e iniciou uma aula:
- As pessoas assistem muito cinema. Acham que todos os soldados devem ser como Rambo, ou como os mariners americanos que são formados para matar. Nós somos italianos. Estamos aqui para estabelecer a paz. Não para fomentar a guerra. Não somos um povo guerreiro. Nossa história mostra que nossa preocupação é a arte, a ciência e o pensamento. Fique tranquilo, não vamos fazer feio.
No dia seguinte, o comando militar da ocupação destacou os berzaglieri para o controle da temida linha verde. Confesso que me correu um frio na espinha. Mas, alguns dias depois os embates entre cristãos e muçulmanos haviam acabado, a cidade estava pacificada. O coronel conversava igualmente com todas as facções e negociava concessões. Os americanos com aquele uniforme ridículo, cara pintada e quetais, ficaram confinados no aeroporto. Os franceses no porto. E a cidade gerida pelos “ridículos” italianos passou a ter vida novamente. A linha verde acabou.

Mussolini na piazza Veneza: caricatura
Esta história que tanto me ensinou e que fez o meu orgulho de ser italiano alcançar níveis insuportáveis, me veio à mente, depois de assistir, finalmente, o último trabalho de Marco Belocchio, Vincere. Trata-se de um filme notável, que conta a história de Ida Dasler, a primeira das amantes de Benito Mussolini, do tempo em que ele tinha cabelo e era um ativista socialista e anti-clerical.
Mussolini é uma aberração histórica, uma contradição gigantesca em um país, e o coronel Andreoli tem razão, que jamais desenvolveu qualquer cacoete para ser imperialista ou colonialista. De fato, nós italianos dominamos o mundo. Somos uma das potencias mais poderosas do planeta, mas nossas armas são a comida, os vinhos, os automóveis, o cinema, o futebol, os pintores, escultores, os escritores e o bel vivere.
Este tarado aproveitou-se da gloriosa participação italiana na Primeira Guerra, quando defendemos a integridade do nosso território contra nosso inimigo natural, a Áustria dos Habsburgos, juntou o pavor que as elites tinham da ascensão das classes trabalhadoras, notadamente no campo, e criou um regime de sbirri, que durou nada menos do que 25 anos!
Em tempo, sbirri, em uma tradução mais simples, quer dizer capangas.  
Mussolini quis disciplinar a Itália. Isso não é uma utopia é um delírio. Queria que os trens italianos não atrasassem. E diante da absoluta impossibilidade de fazê-lo, criou um mecanismo muito hábil: os chefes das estações deveriam atrasar os relógios nas plataformas, de forma a conciliar os horários.
Propaganda a parte, Mussolini lançou a Itália em uma aventura colonialista na Abissínia, cujo único resultado palpável foi a descoberta do caqui. Depois emprestou soldados italianos para o general Franco, na guerra civil espanhola. Sonhou em ser o senhor de Gibraltar, quando Hitler ameaçava atravessar o canal da Mancha, em 1940, funcionando como uma espécie de mediador. E aí lançou o país em uma guerra contra a França, nosso aliado histórico, e expôs os jovens italianos a vergonha em El Alamein, no Norte da África, e em, Stalingrado, na União Soviética.
Não bastasse, guerreou contra os Estados Unidos e contra o Brasil, países que haviam recebido enormes contingentes de imigrantes italianos. No front interno, seus capangas de camisas negras, barbarizaram. Mataram lideranças sindicais, opositores, jornalistas, pensadores. Ainda que uma caricatura grotesca, os fascistas eram violentos e cruéis.
A Itália capitulou em 1943. Mas, Mussolini e seus sbirri ainda tentaram alguma coisa na República de Saló, aproveitando-se do domínio alemão, notadamente no Norte da Itália. Ou seja, não satisfeito com o que tinha feito, ainda lançou o país em uma guerra civil. Finalmente em 1945, ele e sua amante Clara Petacci, caíram nas mãos dos partisans em Milão. Em Vincere, Belocchio informa que ele foi fuzilado. Não é verdade. Aliás não sei o por quê desta informação.  O Duce foi executado a pauladas em um posto de gasolina e depois pendurado pelos tornozelos.
Mussolini e sua amante: pendurados pelos tornozelos 

Em Roma, ele costumava falar para a multidão de uma sacada na Piazza Veneza. Lá mandou erigir um monumento chamado de “Altar da Pátria”, que os italianos chamam hoje de “Bolo de Noiva” ou “Máquina de Escrever”. Trata-se de um dos mais horrendos cenários em uma cidade belíssima, talvez a mais bela do mundo.
Certa vez, tomava um café no Café Brasile, diante do monumento horripilante, e perguntei a meu amigo Pino Cimó:
- Por que diabos não colocaram abaixo este monstrengo?
- Porque temos que nos lembrar sempre da merda que fizemos, para não cair no erro de repetir.
Foi uma boa resposta, como todas que meu amigo e irmão Pino sempre me dava. Neste sentido recomendo Vincere e, para quem acha que o fascismo foi mais uma bizarria italiana, recomendo também o clássico de Ettore Scola, Uma Giornata Particolare.  Ou ainda o épico de Bertolucci, Novecento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário