Glenda Jackson em Mulheres Apaixonadas: ver o filme era uma transgressão |
Recebi no início da noite
de sexta-feira a sempre iluminada visita do meu mestre Tão Gomes Pinto. Voltou
a chover em Brasília, enfim. A primavera chegou com ventos de incerteza e o
anúncio de um futuro incerto. O Brasil pelos dados do PNAD, apurados pelo IBGE,
vai muito bem. Há mesmo uma nova classe média, os indicadores de miséria
absoluta são residuais; o analfabetismo recua; as crianças estão na escola;
quase todo mundo leva a vida com trabalho e perseverança.
Claro, estamos longe de
ser uma Dinamarca ou uma Coréia. Ainda bem. Há problemas com a faixa dos 15 aos
17 anos. A molecada anda meio perdida. Nem estuda e nem trabalha. Anda sem
saber para onde, premida por um volume gigantesco de informações. É um problema
grave, que precisa de um estudo mais apurado. Não se pode menosprezar o drama
existencial dos adolescentes modernos. Trabalho, estudo, ou os dois? Autonomia,
independência, futuro, hormônios a mil, uma sociedade individualista que se
anima cheia de novidades, materialista. O universo atual dos adolescentes é
aborrecido. Urge criar uma utopia, uma nova versão de Woodstock, uma primavera
de Paris, sei lá...
Outro dia, Fernando Haddad
estava em campanha na periferia de São Paulo e defendia a educação integral. Ou
seja, jornadas escolares de dia inteiro. Alguns adolescentes quando entenderam
do que se tratava saíram de fininho. A gente se esquece de que a escola é uma
prisão. Pode ser linda, cheia de atrativos, com professores maravilhosos. Mas,
sempre será um porre. A não ser que este sacrifício temporário tenha um
significado futuro. Tem?
A minha geração, e já se
vai meio século, era marcada pela transgressão. Ultrapassar a barreira do
permitido. Chocar. E assim aos trambolhões atravessamos os anos 60 e 70.
Ficamos deslumbrados com as descobertas. Fomos para frente e para trás, num
movimento intenso de busca de uma resposta singela: que diabos estamos fazendo
aqui?
Atos simples como assistir
a Mulheres Apaixonadas, de Ken
Russel, significava por si um ato de transgressão. Deixar a barba ou o cabelo
comprido era mais um ato político de que um gesto de estética. Podia-se ver a
transgressão em Mozart ou nos Beatles. Em Schiller ou em Plínio Marcos. No
Redondo ou no Blue Riviera. No sexo grupal ou num arroubo romântico a la
Cyrano. Os punhos de Marcelus Cassius Clay, mais tarde Muhammed Ali,
representavam uma transgressão tremenda. Malcolm X, Martin Luther King, Miriam
Makeba, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, Chico Buarque, o esporte
transgredia, o cinema transgredia, a música transgredia. Não vivíamos para
conformar. Vivíamos para confrontar.
Não. Não era apenas um
movimento contra os militares brasileiros ou latino-americanos, ou contra a
Guerra Fria. Era uma forma de enfrentar o determinismo: as coisas são assim e
sempre foram assim. A utopia? Sei lá, um estado de liberdade absoluta, onde
cada um de nós pudesse fazer o que quisesse, sem amarras políticas ou sociais, onde
todos fossem felizes. Não haveria fome ou exploração, nem um estado opressor ou
um rol de obrigações.
Nos anos 90 veio o
yuppismo e nos transformamos exatamente naquilo que tanto combatíamos.
Colocamos uma gravata e começamos a valorizar a forma, o politicamente correto,
os valores e a ascensão social. Castramos o poder de transgressão de nossos
filhos e passamos a envolvê-los em uma bolha de proteção. Sob o manto do
politicamente correto, passamos a impor normas de comportamento e conduta, que
nós tanto combatemos.
Alguém pode me dizer, pelo
amor de deus, que graça tem em transar com a namorada na casa dos pais, com a família
toda reunida assistindo ao Faustão? Qual é o sentido de participar de uma
jornada ecológica para coletiva seletiva de lixo no bairro, ou uma pedalada
ecológica? Ou passar horas e horas em uma academia de ginástica?
Certa vez, lecionava para
alunos de classe média em Brasília, e me submeteram um jornal “clandestino”.
Muito bem feito, tratava de questões de convivência e de aprendizagem. Fiquei
chocado. Não havia uma única maldade. Não se falava da professora gostosa, do
professor alcóolatra, nem havia uma coluna de fofocas e de fuxicos.
- Ninguém come ninguém
nesta escola? – indaguei.
Os alunos me olharam com
ar de profunda perplexidade. Notei mesmo uma ponta de vergonha.
Será possível?
O novo está no inusitado
ou no inesperado. No Beijo no Asfalto
de Nelson Rodrigues, na prostituta que se perde em um orgasmo do Abajur Lilás, de Plínio Marcos. Ou se
quiserem na inveja doentia que Elizabeth I sentia de Maria Stuart, no texto
brilhante de Schiller. Meu amigo Helvécio Raton, gênio mineiro do cinema
brasileiro, repartiu comigo um prato de pappardelle no Luca esta semana. E me
disse: “As pessoas hoje gostam mesmo é de acompanhar histórias previsíveis,
onde os personagens façam apenas o que se espera deles. Sem sobressaltos, sem
novidades”.
Isso explica porque as
pessoas ficam imbecilidades com estes modernos seriados de tevê, em sua maioria
de uma mediocridade brutal. Ou ainda o sucesso destes panfletos novelescos
medíocres. Tudo é previsível. Tudo é medíocre.
Uma vez perguntaram a John
Huston porque os filmes dele não tinham um final clássico, onde o bandido, ou
malvado se ferrava, e o herói ou o bom moço, acabava feliz da vida. Ele deu de
ombros e respondeu: “O final não é importante. A forma como chegamos a ele é
que conta”.
Aprendi ao longo dos meus
60 anos, que quando tudo está certinho, arrumadinho, alguma coisa está errada.
O avanço se dá no caos, jamais no consenso. Apenas para citar mais uma vez o
velho Nelson: “a unanimidade é burra”. E eu acrescentaria: e manipulada.
Transgredir pode ser
sinônimo de questionar, de criticar ou de discordar. Trata-se, portanto, de um exercício bastante
complicado e desconfortável. É muito mais cômodo ceder à mediocridade,
deixar-se levar pelos ventos do politicamente correto e seguir a manada.
A tendência natural da
humanidade a mediocridade em contra-partida deixa claro que a principal
transgressão é o conhecimento. Não é difícil entender. Se a maioria prefere
orelha de livros, finais previsíveis e novelas globais, a forma de confrontar é
contrapor a visão mais ampla, mais profunda e mais complexa. Se as pessoas não
pensam, aquele que pensa choca.
Quando Beethoven se
apresentou para o rei da Áustria, no começo de sua carreira, foi severamente
criticado porque estava desalinhado e sujo. Apenas um atento Mozart sentenciou:
“Este será o maior de todos!”
O gênio de Bonn era um
genial transgressor. Arrasou com um andante no segundo movimento da Terceira
Sinfonia, a chamada Marcha Fúnebre. E quando poderia ser cultuado pela
originalidade, preferiu a discrição e a solidão.
O que é preciso fazer os
jovens entenderem é que o segredo da transgressão é o conhecimento. E que a sua
busca é a maior transgressão possível. Do contrário é melhor mesmo cuidar do
corpo, porque a mente não vai ter jeito mesmo.
Sempre muito bom ler seus textos.
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