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Este vale vai desaparecer em 12 anos: será todo preenchido com lixo orgânico |
Laudato si, mi Signore (Louvado
sejas, meu senhor). Com estas palavras habituais nos cânticos de São Francisco
de Assis, o papa Francisco, muito apropriadamente batiza sua primeira
encíclica, com o sub-título de “Sobre o cuidado da casa comum”. Trata-se da
mais contundente manifestação do Vaticano sobre a questão ambiental, acima e
além de questões tópicas de preservação.
Francisco numa linguagem
chula meteu mesmo o dedo na ferida e nos leva a uma profunda reflexão: Ou
cuidamos da nossa casa comum, ou vamos comprometê-la de tal forma que a vida
neste planeta se tornará insuportável.
São vários os aspectos
ambientais tratados pelo papa. Vou me ater a apenas um: a produção descabida de
lixo. Há 20 anos atrás, ou quase isso, fiquei perplexo com uma foto em que
apareciam montanhas e montanhas de pneus usados, aparentemente a espera que
algum milagre fizesse com que desaparecessem. Na minha então ingenuidade
imaginei uma produção em série de solados de sapatos, o que imagino daria para
calçar toda a população da China por várias e várias gerações.
A verdade é que a
sociedade moderna, cibernética e pragmática do século XXI se alicerçou toda ela
no consumismo. Sem uma utopia para perseguir, a coroação dos valores
individuais passou a ser a ostentação do poder econômico. E na base deste
consumo, surgiu uma mudança de comportamento cruel, a do descarte.
Ainda me lembro quando o
leite vinha em garrafas de vidro e exigia a apresentação de uma vazia para
conseguir uma cheia. O mesmo se aplicava aos derivados, como iogurtes e
coalhadas. O primeiro problema começou quando alguns laticínios ávidos pela
fidelidade do consumo começaram a entregar seus produtos em vasilhames que só
poderiam ser trocados por outros do mesmo produtor.
O tetra-pak só apareceu
nos anos 50, com a garantia da entrega de um produto de qualidade, independente
da refrigeração. Logo virou febre. Hoje, praticamente todos os derivados do
leite ou são oferecidos em tetra-pak ou em embalagens plásticas. Acabou o
retorno.
Com cervejas e
refrigerantes aconteceu a mesma coisa. O produto traz no seu preço embutido o
custo da embalagem, que evidentemente é descartada quando vazia. E ainda surgiu
a embalagem de lata, prática e limpa. Não é raro encontrar pessoas admiradas
ainda com uma garrafa de Coca-Cola ou de tubaína de vidro. As gôndolas de
super-mercados estão sempre e invariavelmente abarrotadas de embalagens pet,
produzidas de matéria plástica.
Com óleos vegetais e
azeites aconteceu exatamente o contrário. Outrora oferecidos em latas, passaram
a ser embalados em garrafas de vidro ou de plástico, de forma a garantir a sua
pureza. Embalagens descartáveis, é claro.
O final do século XX
consagrou o descartável. Embalagens e relações humanas passaram a ser lançadas
ao lixo, com uma desfaçatez e uma irresponsabilidade terrível. Ninguém é
responsável por nada. Se antes os problemas poderiam ser acomodados embaixo do
tapete, passaram a ser lançados descaradamente em lixeiras, algumas até
sofisticadas, computadorizadas, etc...
Francisco tem razão em sua
encíclica quando diz que os avanços tecnológicos ainda são precários para fazer
frente ao comportamento irresponsável da sociedade. A cidade de São Paulo, por
exemplo, possui duas grandes usinas de triagem de lixo reciclável e avançou tremendamente
na coleta seletiva. Mas, é a única na América Latina.
Recentemente ao regular
decisão judicial que proibia a distribuição das famigeradas sacolinhas
plásticas nos supermercados e estabelecimentos comerciais, a Prefeitura
instituiu dois tipos de sacolas: uma que serviria para abrigar o lixo reciclável
e outra para o lixo orgânico. Custo de cada sacola, R$ 0,08. Estabeleceu-se
tremenda polêmica. Acusaram o pobre do prefeito de ser autor de uma medida
impopular. Quem pagaria pelos fatídicos R$ 0,08¿ De certo não o consumidor ou o
varejista. Curiosamente estes mesmos setores pagam muito mais que isso por
embalagens recicláveis em seus produtos.
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Papa Francisco: a grande mudança ecológica é a do ser humano |
Algumas redes de
supermercados e comerciantes entenderam, afinal, quais eram as intenções da
Prefeitura e passaram a absorver os custos.
Por falar em custos, o
prefeito costuma repetir que a Prefeitura de São Paulo gasta todos os anos a
bagatela de R$ 1 bilhão em varrição de vias públicas. Atenção: não estou me
referindo a varrição e limpeza de parques ou de folhas que se esparramam pelas
calçadas no outono. Trata-se de lixo descartado sem nenhum pudor na via
pública.
Outro dia nos deslocamos
para o distante bairro de São Matheus, no número 30 mil da avenida Sapopemba,
que precisa ser deslocada. No seu antigo trajeto, um vale, uma obra quase
bíblica prepara um futuro aterro sanitário, que em 12 anos estará saturado de
matéria orgânica. Andamos por uma curiosa montanha, toda ela ponteada por cabos
e mangueiras. Uma montanha que há 10 anos não existia e que hoje, formada por
detritos orgânicos, só serve para produzir gás metano. Um cenário típico de um
filme de terror.
Não há carência de boas e
efetivas práticas de preservação ambiental. Algumas desgraçadamente ainda muito
caras. Mas, o que Francisco defende em sua encíclica é o espírito cristão da transformação humana. Esta sim uma
verdadeira transformação, capaz de salvar ou, ainda menos, de cuidar da nossa casa
comum. E o primeiro passo é tão singelo....