sexta-feira, 30 de maio de 2014

O poder popular da Carmem de Bizet


Carmem de Bizet, final do primeiro ato: Rinat Sharan e Thiago Arancam



Mesmo quem torce o nariz para as habaneras, seguidillas e barcarolas da Carmem, concorda num ponto: Georges Bizet era um baita compositor, daqueles privilegiados e inspirados capaz de tornar o novo habitual e imperceptível e o comum, extraordinário.

Mesmo nesta tão popular história da cigana malvada, há momentos que merecem a contemplação de quem trata os ouvidos com algum carinho. Veja-se, por exemplo, o quinteto do segundo ato. Leveza, sinfonismo e originalidade. Ou ainda as duas árias da Micaela no primeiro e no terceiro ato. E, é claro, o dueto final cheio de referências musicais, marcado por um revival de motivos.

Carmem, Traviata e o Barbeiro de Sevilha compõem o trio mais popular do mundo lírico. Sempre tem alguém, em alguma parte do mundo, fazendo uma das três. E é claro que o fato de algumas de suas melodias serem facilmente assobiadas não desmerece a genialidade contida.

Bizet se encantou sobremaneira com o romance de Prosper Mérimé sobre um triângulo amoroso envolvendo um soldado, uma cigana e um toureiro. Dois anos antes, em 1873, ele havia amargado críticas pontuais ao libreto de Pescadores de Pérolas, escrito por Eugéne Cormon e Michel Carré. Por isso mesmo, viu com otimismo quando o libreto de Carmem foi encomendado a Henri Meihac e Ludovic Halévy.  Os dois faziam muito sucesso com outro compositor, Jacques Offenbach, o queridinho da Ópera de Paris.

A história de Mérimé foi bastante aliviada e resumiu-se a um militar caipira, uma cigana malvada e sedutora, um toureiro convencido e uma pobre coitada que vai e volta com recados da mãe do soldado e que, surpreendentemente, no terceiro ato aparece num acampamento de contrabandistas em meio às montanhas de Navarra. Descoladinha esta menina!

Aliás, parece que só os aduaneiros e os policiais não sabiam do acampamento dos contrabandistas, porque o toureiro também aparece por lá. Motivado por um amor incontrolável, segundo ele mesmo, que transformaria os perigos eventuais em uma gloriosa aventura.

Rodrigo Esteves: a famosa ária do Toureiro no segundo ato



Bizet salvou a história com a sua música. O coro feminino do primeiro ato, chamado das Cigarreiras, é um exemplo disso. A sensualidade da música encobre o absurdo da cena.

Numa sociedade hipócrita como a parisiense pós-guerra franco-prussiana, a estréia de Carmem fracassou redondamente. Claro que a história incomodou. A cigana proclama a liberdade do seu coração e ainda avisa: se você se apaixonar por mim, problema seu, mas se eu me apaixonar por você, cuide-se.

Bizet ficou profundamente deprimido. Não teve o beneplácito nem do reconhecimento de sua música. Acabou falecendo em junho daquele ano, 1875, aos 37 anos de idade. Em outubro, curiosamente a mesma ópera foi levada em Viena, com a presença de gênios tão opostos como Wagner e Brahms, e unanimemente consagrada.

A força popular da Carmem de Bizet pode ser medida pelo sucesso que está provocando em São Paulo. Nada menos do que 13 mil ingressos vendidos para oito récitas.

O maestro John Neschling trabalha duro para criar no Theatro Municipal de São Paulo um padrão de excelência, voltado, sobretudo, para a ópera. E tem sido muito bem sucedido. Neste ano, ele amealhou um sucesso inimaginável com dois títulos de Verdi, Il Trovatore e Falstaff. E apostou numa montagem de Carmem totalmente inusitada, criada por Fellipo Tonon, que ambientou a ação no final do século XIX e pontuou a influência da revolução industrial.

Não só funcionou, como surpreendeu.

O quarteto do primeiro elenco formado pela mezzo-soprano israelense Rinat Sharan,  pelo tenor brasileiro Thiago Arancam, pelo barítono, também brasileiro, Rodrigo Esteves e pela soprano croata Lana Kos, está irrepreensível. A competência da Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência do maestro espanhol Ramón Tebar, e do Coral Lírico conduzido com maestria por Bruno Facio, garantiram um espetáculo admirável.  


Difícil arrumar um lugar em uma das sete récitas que concluem a apresentação. Melhor se garantir para Salomé, de Richard Strauss, em agosto, ou para a curta temporada de concertos de junho/julho, quando o próprio Neschling volta para o pódio e vai encarar a Terceira de Mahler e o Zarathrusta de Strauss, entre outras peças.  

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Com o coração em dois mundos

Sônia Braga e Raul Julia: personagens de Manuel Puig levados a tela por Hector 

                          




Hector Babenco, 68 anos,  é um caso raro de um personagem capaz de marcar sua presença tanto em São Paulo, de resto em todo o Brasil, como em Buenos Aires e, por que não, em toda a Argentina. Reverenciado como cineasta e como diretor de teatro, este brasileiro nascido na Argentina, como gosta de se definir, foi o primeiro diretor de cinema latino-americano nominado para receber o Oscar, em 1984. Uma produção brasileira sobre o romance “O Beijo da Mulher Aranha”, escrito por um argentino (Manuel Puig). Nesta entrevista, ele relembra momentos marcantes de sua vida, a chegada a São Paulo, nos anos 60, busca pontos de confluência entre as culturas dos dois países e fala do amor pela cidade que adotou como sua.

Como convivem em você o espírito argentino e brasileiro?
Eu sou um brasileiro que nasceu na Argentina. Com 17 anos eu sai do país onde nasci por motivos pessoais, individuais, não políticos, ou de outra ordem. Na época estava cheio de sonhos e de esperanças. Eu sai de lá, mas sairia de qualquer lugar. Teria ido a primeira rodoviária e pegado o primeiro ônibus para qualquer lugar que fosse.
E por que São Paulo?
Eu tive que mentir para meus pais. Minha mãe tinha uma irmã que morava em São Paulo e eu disse que vinha para visita-la. Uma tia que eu nunca visitei, nem conheci.
E qual foi a sua primeira impressão?
Eu me assustei. Quando cheguei em São Paulo não tinha luz de mercúrio e isso era muito bonito. A luz das lâmpadas eram amarelas. Eu nunca tinha visto um negro na minha vida. Quando um vi no banheiro da Rodoviária, fiquei com medo. Na minha cidade não tinha um preto e, obviamente, eu não tinha idéia de que iria me fascinar pela cultura negra, muito mais cativante do que a cultura melancólica argentina.
O que você trouxe na sua bagagem?
Eu cheguei em 1963. Tinha trabalhado um pouco em teatro juvenil. Gostava muito de cinema e desde os 14 anos trabalhava na mais importante livraria de Mar del Plata, chamada Martin Fierro, que pertencia ao chefe do partido comunista local. A minha primeira doutrinação política foi a ideologia marxista, onde o código principal era a esperança na revolução. Nós todos somos iguais, temos os mesmos direitos, as mesmas obrigações. Um dia eu perguntei para o dono da livraria: mas quando será a revolução? Como ele não me deu uma data, eu fui embora.
E o que aconteceu com seus amigos?
Toda a minha geração que se engajou na revolução que não tinha data, morreu ou desapareceu. Eu me salvei por motivos existenciais. Vivia numa pensão na esquina das ruas Bela Cintra e Mathias Ayres. Virei vendedor de rua e gastava meu tempo nos sebos da avenida São João e frequentava muito os cinemas do centro.
Como foi o choque com a brasilidade?
Tremendo. Eu vi a primeira versão do Glauber Rocha para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Depois vi “Macunaíma” do Joaquim Pedro de Andrade. Aí eu enlouqueci. Estava morando em um lugar onde havia uma cultura tão inventiva, tão sem parâmetros como a autofagia de Mário de Andrade e ao mesmo tempo uma linguagem poética do vôo utópico – que na época nem entendia direito – e aquela beleza do Antônio das Mortes, daquela gente correndo pelo sertão em busca de comida. Estes filmes foram fundamentais para eu encontrar o Brasil.
E o Brasil do dia-a-dia?
Foi um outro Brasil que eu encontrei depois que comprei uma máquina polaroid e passei a ser fotógrafo de restaurantes. Vendedor e fotógrafo de restaurantes me permitia ter um tempo livre para mim. Vivia no Teatro Oficina, no Teatro de Arena. Eu percebi que São Paulo era uma cidade que reunia muitas tribos. Havia muitos italianos, espanhóis, africanos. Descobri a sexualidade, a liberdade sexual. As meninas que me levavam de Aero Wyllis para passar o final de semana no Guarujá. Era uma coisa de entrega física. Muito diferente da Argentina onde a repressão se manifestava sobretudo na repressão a sexualidade ditada por uma igreja que ainda tinha laços com a inquisição.
A sua primeira experiência no cinema, “O Rei da Noite” já é uma declaração de amor a São Paulo. Você estava apaixonado pela cidade?
Totalmente. É fruto da minha experiência na noite fazendo fotografias com a minha polaroid. Eu estava sempre na região onde haviam as boates e a prostituição era visível nas ruas e no interior. “O Rei da Noite” surgiu de um vendedor de bilhetes de loteria que eu encontrava na rua Major Sertório toda noite. Um senhor elegante, que sempre se vestia de linho branco. Eu fui conversar com ele e recebi o convite para tomar um “Rabo de Galo”. Um coquetel típico de São Paulo, pinga com cinzano em um copo pequeno. E ele me contou a história da vida dele. Que tinha nascido em uma casa enorme, linda, que fora criado por uma baba que falava alemão e inglês. Aí pensei, vou contar a história deste moço. Não a biografia, mas a sua história amorosa. Acabou saindo um filme com um lado grotesco, na linha da Lina Wertmuller.


Entrevista: bate-papo informal e boas histórias relembradas

No seu segundo filme, “Lúcio Flávio” você esbarrou no regime militar brasileiro, como foi isso?
É preciso resgatar uma figura mefistofélica, um asno, o censor do Departamento de Censura da Polícia Federal. O relatório de “Lúcio Flávio” tinha 17 cortes. Eu fiquei desesperado e eu vi que alguns colegas de cinema, quando eu contava a minha dor, reagiam com certa satisfação por você também entrar no hall das vítimas.  No final, o filme foi liberado. Tive que dizer que os policiais envolvidos na execução do Lúcio Flávio haviam sido expulsos da corporação, o que é uma mentira.
E foi um grande sucesso. O seu primeiro.
Nada menos que seis milhões de pessoas viram o filme. Formavam-se filas nos cinemas. Foi lançado com 60 cópias e ficou em cartaz acho que por 14 semanas.
Nada contra seus dois primeiros filmes, mas curiosamente o que vai te dar projeção internacional é o seu encontro com um conterrâneo, argentino, Manuel Puig, e a decisão de filmar “O Beijo da Mulher Aranha”.
É verdade. Eu tinha lido “Boquitas Pintadas”. Um dia encontrei “O Beijo da Mulher Aranha”. Comprei o livro e li. Fiquei bastante perturbado com a história de um homossexual que animava um guerrilheiro, ambos presos, com lembranças de filmes. Aquela história me encantou e me levou para o território do cinema mexicano. O melodrama e a mulher levada a sua condição mais alta, de deusa. A malvada que chora. O Buñuel fez grandes filmes assim no México. Também descobri outro tipo de cinema que eu nem sabia que existia: filmes de propaganda nazista, produzidos durante a guerra. Eram campanhas publicitárias gigantescas. Havia sempre uma cantora que cantava para as tropas, como Lili Marlene. Todo mundo chorava no cinema e nas trincheiras e enquanto isso matavam  judeus, russos, ciganos e um monte de gente que não pensava como eles. Fiquei cinco anos passando o chapéu para conseguir fazer um filme que foi nominado para quatro oscars.
Incluindo o de diretor e o de ator, vencido pelo William Hurt.
É verdade. E um filme oriundo da minha cultura argentina. Nada absolutamente a ver com “Pixote”, que é um retrato da periferia de São Paulo, fruto direto da cultura brasileira. E eu fiz  “O Beijo” em inglês, ingenuamente, porque achei que desta forma iria percorrer o mundo. Hoje eu jamais faria um filme inglês sobre uma história latino-americana, eu respeitaria a essência.
Discute-se tanto o Mercosul, a integração latino-americana, mas quando se trata de integrar as ações culturais, ficamos sempre muito próximo de zero.
Eu só tive uma experiência com produções bi-nacionais, argentino-brasileiras, justamente meu último filme, “Passado”. Foi alguma coisa para esquecer. Tivemos todo tipo de dificuldade, desde liberação alfandegária de negativos até pagamento de cache e de produção, que não podiam ser cruzados, pois cada país tem uma legislação diferente na área de câmbio, na tributação de impostos. Uma loucura! E isso não é um problema de governo: acredito que os governos tanto do Brasil como da Argentina adorariam integrar as duas produções culturais. Nem mesmo dos produtores dos dois países, ou dos profissionais. O problema é a burocracia, as amarras do poder pequeno que se encontram nas estruturas dos dois países.
Dois Oscars e uma produção de qualidade, você diria que o cinema argentino renasceu?
O cinema argentino conseguiu ar para respirar, graças a uma lei realmente eficiente. Eles te dão recursos para você desenvolver um projeto, depois para a pré-produção. E aí conferem o teu orçamento e te dão o dinheiro para realizar o filme. Não é o que acontece no Brasil, aqui ninguém revisa o seu orçamento e as produções são pelo menos três vezes mais caras. Os filmes brasileiros são orçados em padrões europeus, americanos. Na Argentina, o processo é simples: para cada ingresso que você venda, eles te dão outro para você investir no próximo filme. Sem burocracia. É toma lá da cá.
E hoje como você vê as duas cidades São Paulo e Buenos Aires?

Buenos Aires nasceu com os dois pés na Europa. São Paulo é a divagação poética de uma aldeia que se industrializou e cresceu. É bem verdade que a cidade europeia do passado se transformou numa capital latino-americana no presente. Coisa que os argentinos rechaçam.  Mas, a verdade é que por lá ainda se pode caminhar pelas ruas. Eu não conheço uma grade em um parque ou em um edifício residencial em Buenos Aires. Aqui as residências estão cercadas por cercas eletrificadas. Talvez seja apenas uma questão de tempo. Não sei e espero que não. Mas, tenho certeza que os argentinos e os latino-americanos em geral ficarão positivamente impressionados ao conhecer a arte da periferia de São Paulo. Trepidante e inquietante, aliás, como é esta cidade.


Meu amigo Hector
Conheci Hector Babenco naquela fase em que ele se dividia entre o vendedor de rua e o fotógrafo de restaurantes em São Paulo. Seis anos mais novo que ele (eu tinha apenas 14 anos), dividimos a inquietação e a ansiedade pelo futuro. Nem ele nunca imaginou que seria um cineasta reconhecido em todo o mundo, nem eu poderia imaginar que seria um jornalista. Éramos apenas dois jovens que disputávamos o dia-a-dia. E cada dia era um novo dia. E cada aventura era uma nova aventura. Assisti a cada um de seus filmes com uma ponta de orgulho e identifiquei nos seus personagens a lembrança do amigo que trilhara novos caminhos.  

terça-feira, 13 de maio de 2014

Privilégios. Doces privilégios

Neschling e a Sinfônica Municipal: processo de transformação em movimento





Meu amigo Armando Salém, velho de guerra, certa vez admitiu descaradamente: “Sinto inveja da relação que você mantinha com seu pai e seu avô, com este partilhar de experiências e de hábitos culturais”.

Este é um privilégio que não se delega, nem se transfere. Meu pai e meu avô (que na verdade era um avô emprestado) me ensinaram desde sempre a não só ouvir boa música, mas a me interessar por ela. Assim, desde os tempos dos Concertos Matinais Mercedes-Benz, o meu primeiro vinil (Uma Terceira de Beethoven com Felix Weingartner e a Filarmônica de Viena) eduquei o meu ouvido, idiossincrasias à parte, para ouvir e buscar o melhor.

Não tenho uma discoteca gigantesca. Mas, a experiência me ensinou a valorizar a qualidade, o registro histórico, em detrimento do volume e da exuberância técnica. A transição do vinil para o registro digital facilitou demais esta seleção. Por exemplo, era muito difícil ouvir a Nona de Beethoven quando da reinauguração do Festival de Bayreuth em 1954, com Furtwangler. A gravação era tecnicamente sofrível. A regravação analógica perdia brilho. Com o CD tudo isso foi resolvido.

Mas, na linha dos privilégios, outro dia fui premiado com uma jóia raríssima. Entre goles de um notável Vega Sicilia, que eu estava guardando para uma grande ocasião, e garfadas de um risoto precioso, preparado pela Patrícia, o maestro John Neschling me presenteou com uma gravação antológica de duas peças de Respighi: Impressione Brasiliane e La Boutique Fantasque. Ambas regidas por ele com o Filarmônica Real de Liége.

Para quem não sabe, o professor Ottorino Respighi, bolonhês de nascimento como Rossini, mas apaixonado pela cidade de Roma, passou o verão de 1927 na cidade do Rio de Janeiro. Ficou de tal forma impressionado com os sons que ouviu, que voltou no ano seguinte com uma “Suíte Brasileira”, formada por três movimentos. “Notte Tropicale” inspirado por suas andanças no bairro carioca da Tijuca. “Butantan” inspirado no bairro homônimo da cidade de São Paulo e no instituto do mesmo nome. “Canzone e Danza” é a lembrança que Respighi registrou do carnaval nas ruas do Rio.

Ainda que minha paixão pela ópera seja muito grande, é na sala de concertos, na música sinfônica,  que eu realmente me encontro. Daí é fácil imaginar a minha reação diante da magnífica interpretação de Neschling na Butique Fantasque, que Respighi reescreveu a partir de manuscritos de Rossini.
Como este texto fala de privilégios, não posso esquecer os sons da suíte de Benjamin Britten, no ano passado, quando Neschling mostrou à cidade que iria transformar a nossa Sinfônica, numa orquestra moderna, sensível e eficiente. O prefeito Fernando Haddad naquela ocasião riu da minha angústia na expectativa do concerto. Mal sabia ele que naquele momento se iniciava um processo histórico, liderado por ele mesmo.

Confesso que sinto falta dos concertos. Adoraria ouvir esta Butique de Respighi ao vivo, na minha sala preferida, o Theatro Municipal, com a minha orquestra preferida, a Sinfônica Municipal, com o meu regente preferido, o maestro Neschling.


Depois da estrondosa performance em Il Trovatore e Falstaff, estamos na reta final de Carmem. Mas, minha angústia é outra: a expectativa pela Quarta Sinfonia de Mahler, em agosto. Quem gosta de música sinfônica sabe o tamanho do desafio. 


Neschling, Haddad e Ambrogi Maestri: confraternização pelo Falstaff

sábado, 3 de maio de 2014

Somos todos responsáveis



Massacre em Ruanda: a diferença de outros similares é que poderia ter sido evitado






Ter nascido no ano de 1952 me coloca na chamada geração pós-bomba atômica. Mais precisamente aquela atrocidade descomunal perpetrada no final da segunda guerra mundial, quando os americanos lançaram dois artefatos nucleares contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki, na manhã de 6 de agosto de 1945. Também me coloca à margem da desgraça perpetrada pelos alemães, nazistas e não nazistas, contra cinco milhões de judeus europeus. Dizimados nos campos de concentração espalhados pela Europa ocupada.
Não há Cristo que me faça entender onde estava o resto da humanidade quando estas desgraças ocorreram. A desculpa do desconhecimento e de que eram atos praticados de ou durante a guerra, também não cola. Mesmo num conflito sangrento de proporções jamais vistas e que só na União Soviética dizimou mais de 20 milhões de soldados e não soldados, há limites de humanidade. Nem os judeus europeus se constituíam num exército de resistência a sanha nazista, nem a população civil das cidades japonesas, praticamente dizimadas, poderia ser responsabilizada pela ação dos militares de seu país.
Mas, a minha geração não tem como escapar da vergonha de ter se omitido de forma criminosa do genocídio de Ruanda, em 1994. Assistimos impávidos à execução pura e simples de mais de 2,5 milhões de pessoas da etnia tutsi, entre crianças e adultos, sem que a comunidade internacional tivesse mexido um dedo sequer. Quem quiser se aprofundar mais nos fatos que tomaram aquele longínquo e esquecido país africano, corra até uma locadora ou baixe na internet o filme Hotel Ruanda, que conta a história de Paul Rusesabagina, gerente do hotel belga das Mil Colinas, que revestido de uma bravura rara, salvou mais de um milhar de tutsis, incluindo sua esposa.
Demétrio Magnoli em notável artigo publicado na Folha de hoje, 3 de maio, é muito feliz em sua assertiva: “....as matanças em Ruanda atingiam o apogeu, desenhando os contornos de um genocídio comparável ao promovido por Pol Pot no Camboja, duas décadas antes. A diferença crucial é que, no país africano, as potências podiam evitar a catástrofe, se não tivessem escolhido olhar para o outro lado”.
Alguém dirá: “Isso faz diferença¿” Faz sim. Toda a diferença. Não se proteste inocência a barbárie praticada pelos americanos no Vietnam. Ou pelos malucos polpotinianos no Camboja. Ou ainda pelos paramilitares em El Salvador. Ou por árabes, judeus, afegãos, russos, turcos, sérvios, franceses. O século XX foi um dos períodos históricos mais sangrentos da história da humanidade. Mas, não se trata aqui de discutir volume. A questão é que o massacre de Ruanda poderia ter sido evitado.
No dia 3 de maio de 1994, o presidente Bill Clinton assinou uma ordem executiva que limitava o envolvimento dos Estados Unidos em missões de paz: forças americanas só seriam engajadas em operações associadas a um interesse nacional vital. A cronologia da desfaçatez é impressionante: na noite de 9 de abril, tropas francesas e belgas aterrissaram em solo ruandês para evacuar seus nacionais do país. No dia 21 de abril, o Conselho de Segurança da ONU votou de forma unânime pela redução do contingente das Nações Unidas, de 2,5 mil para 270 soldados.
Magnoli tem razão de novo quando diz que a França, a mesma dos massacres na Argélia, da República de Vichy, e de outros episódios semelhantes, estava envolvida até a cabeça e tinha perfeita consciência do que estava acontecendo. Há anos militares franceses colaboravam com o governo hutu, contra a guerrilha tutsi baseada em Uganda.  Na cabeça privilegiada destes senhores, os tutsis representavam o poderio anglófono da  África e uma ameaça ao poderio neocolonial francófono.
Bobagem como esta custou a vida de mais de 2,5 milhões de pessoas! Dificil conviver com isso.
O confronto entre hutus e tutsis é histórico e remonta a um episódio glorioso da história da humanidade. Quando Moisés libertou os judeus do Egito, libertou também um contingente de escravos não-judeus, que decidiu não cruzar o Mar Vermelho, mas embrenhar-se pela África em busca de terras fertéis além do deserto do Saara.
Evoluídos pela convivência com a civilização egípcia, estes ex-escravos dominavam técnicas de comércio e de agricultura. Quando chegaram a África Equatorial trombaram com populações nativas, ainda ligadas ao extrativismo.
Isso foi a quatro mil anos. De lá para cá, hutus e tutsis se revezaram no protagonismo da dominação. Não raro com massacres, guerras de extermínio, práticas de escravidão e assim por diante. Passaram a praticar um dualismo macabro, ditado por um ódio recíproco.

Histórias como essa que contrapõem dois povos, animados por interesses econômicos, diferenças cuturais ou simplesmente inveja existem em praticamente todos os continentes, desde que Caim matou Abel. Mas este, no coração da África, no limiar do século XXI, desgraçadamente poderia ter sido evitado e não o foi. E não temos como fugir a esta responsabilidade histórica. Somos todos responsáveis.