segunda-feira, 19 de maio de 2014

Com o coração em dois mundos

Sônia Braga e Raul Julia: personagens de Manuel Puig levados a tela por Hector 

                          




Hector Babenco, 68 anos,  é um caso raro de um personagem capaz de marcar sua presença tanto em São Paulo, de resto em todo o Brasil, como em Buenos Aires e, por que não, em toda a Argentina. Reverenciado como cineasta e como diretor de teatro, este brasileiro nascido na Argentina, como gosta de se definir, foi o primeiro diretor de cinema latino-americano nominado para receber o Oscar, em 1984. Uma produção brasileira sobre o romance “O Beijo da Mulher Aranha”, escrito por um argentino (Manuel Puig). Nesta entrevista, ele relembra momentos marcantes de sua vida, a chegada a São Paulo, nos anos 60, busca pontos de confluência entre as culturas dos dois países e fala do amor pela cidade que adotou como sua.

Como convivem em você o espírito argentino e brasileiro?
Eu sou um brasileiro que nasceu na Argentina. Com 17 anos eu sai do país onde nasci por motivos pessoais, individuais, não políticos, ou de outra ordem. Na época estava cheio de sonhos e de esperanças. Eu sai de lá, mas sairia de qualquer lugar. Teria ido a primeira rodoviária e pegado o primeiro ônibus para qualquer lugar que fosse.
E por que São Paulo?
Eu tive que mentir para meus pais. Minha mãe tinha uma irmã que morava em São Paulo e eu disse que vinha para visita-la. Uma tia que eu nunca visitei, nem conheci.
E qual foi a sua primeira impressão?
Eu me assustei. Quando cheguei em São Paulo não tinha luz de mercúrio e isso era muito bonito. A luz das lâmpadas eram amarelas. Eu nunca tinha visto um negro na minha vida. Quando um vi no banheiro da Rodoviária, fiquei com medo. Na minha cidade não tinha um preto e, obviamente, eu não tinha idéia de que iria me fascinar pela cultura negra, muito mais cativante do que a cultura melancólica argentina.
O que você trouxe na sua bagagem?
Eu cheguei em 1963. Tinha trabalhado um pouco em teatro juvenil. Gostava muito de cinema e desde os 14 anos trabalhava na mais importante livraria de Mar del Plata, chamada Martin Fierro, que pertencia ao chefe do partido comunista local. A minha primeira doutrinação política foi a ideologia marxista, onde o código principal era a esperança na revolução. Nós todos somos iguais, temos os mesmos direitos, as mesmas obrigações. Um dia eu perguntei para o dono da livraria: mas quando será a revolução? Como ele não me deu uma data, eu fui embora.
E o que aconteceu com seus amigos?
Toda a minha geração que se engajou na revolução que não tinha data, morreu ou desapareceu. Eu me salvei por motivos existenciais. Vivia numa pensão na esquina das ruas Bela Cintra e Mathias Ayres. Virei vendedor de rua e gastava meu tempo nos sebos da avenida São João e frequentava muito os cinemas do centro.
Como foi o choque com a brasilidade?
Tremendo. Eu vi a primeira versão do Glauber Rocha para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Depois vi “Macunaíma” do Joaquim Pedro de Andrade. Aí eu enlouqueci. Estava morando em um lugar onde havia uma cultura tão inventiva, tão sem parâmetros como a autofagia de Mário de Andrade e ao mesmo tempo uma linguagem poética do vôo utópico – que na época nem entendia direito – e aquela beleza do Antônio das Mortes, daquela gente correndo pelo sertão em busca de comida. Estes filmes foram fundamentais para eu encontrar o Brasil.
E o Brasil do dia-a-dia?
Foi um outro Brasil que eu encontrei depois que comprei uma máquina polaroid e passei a ser fotógrafo de restaurantes. Vendedor e fotógrafo de restaurantes me permitia ter um tempo livre para mim. Vivia no Teatro Oficina, no Teatro de Arena. Eu percebi que São Paulo era uma cidade que reunia muitas tribos. Havia muitos italianos, espanhóis, africanos. Descobri a sexualidade, a liberdade sexual. As meninas que me levavam de Aero Wyllis para passar o final de semana no Guarujá. Era uma coisa de entrega física. Muito diferente da Argentina onde a repressão se manifestava sobretudo na repressão a sexualidade ditada por uma igreja que ainda tinha laços com a inquisição.
A sua primeira experiência no cinema, “O Rei da Noite” já é uma declaração de amor a São Paulo. Você estava apaixonado pela cidade?
Totalmente. É fruto da minha experiência na noite fazendo fotografias com a minha polaroid. Eu estava sempre na região onde haviam as boates e a prostituição era visível nas ruas e no interior. “O Rei da Noite” surgiu de um vendedor de bilhetes de loteria que eu encontrava na rua Major Sertório toda noite. Um senhor elegante, que sempre se vestia de linho branco. Eu fui conversar com ele e recebi o convite para tomar um “Rabo de Galo”. Um coquetel típico de São Paulo, pinga com cinzano em um copo pequeno. E ele me contou a história da vida dele. Que tinha nascido em uma casa enorme, linda, que fora criado por uma baba que falava alemão e inglês. Aí pensei, vou contar a história deste moço. Não a biografia, mas a sua história amorosa. Acabou saindo um filme com um lado grotesco, na linha da Lina Wertmuller.


Entrevista: bate-papo informal e boas histórias relembradas

No seu segundo filme, “Lúcio Flávio” você esbarrou no regime militar brasileiro, como foi isso?
É preciso resgatar uma figura mefistofélica, um asno, o censor do Departamento de Censura da Polícia Federal. O relatório de “Lúcio Flávio” tinha 17 cortes. Eu fiquei desesperado e eu vi que alguns colegas de cinema, quando eu contava a minha dor, reagiam com certa satisfação por você também entrar no hall das vítimas.  No final, o filme foi liberado. Tive que dizer que os policiais envolvidos na execução do Lúcio Flávio haviam sido expulsos da corporação, o que é uma mentira.
E foi um grande sucesso. O seu primeiro.
Nada menos que seis milhões de pessoas viram o filme. Formavam-se filas nos cinemas. Foi lançado com 60 cópias e ficou em cartaz acho que por 14 semanas.
Nada contra seus dois primeiros filmes, mas curiosamente o que vai te dar projeção internacional é o seu encontro com um conterrâneo, argentino, Manuel Puig, e a decisão de filmar “O Beijo da Mulher Aranha”.
É verdade. Eu tinha lido “Boquitas Pintadas”. Um dia encontrei “O Beijo da Mulher Aranha”. Comprei o livro e li. Fiquei bastante perturbado com a história de um homossexual que animava um guerrilheiro, ambos presos, com lembranças de filmes. Aquela história me encantou e me levou para o território do cinema mexicano. O melodrama e a mulher levada a sua condição mais alta, de deusa. A malvada que chora. O Buñuel fez grandes filmes assim no México. Também descobri outro tipo de cinema que eu nem sabia que existia: filmes de propaganda nazista, produzidos durante a guerra. Eram campanhas publicitárias gigantescas. Havia sempre uma cantora que cantava para as tropas, como Lili Marlene. Todo mundo chorava no cinema e nas trincheiras e enquanto isso matavam  judeus, russos, ciganos e um monte de gente que não pensava como eles. Fiquei cinco anos passando o chapéu para conseguir fazer um filme que foi nominado para quatro oscars.
Incluindo o de diretor e o de ator, vencido pelo William Hurt.
É verdade. E um filme oriundo da minha cultura argentina. Nada absolutamente a ver com “Pixote”, que é um retrato da periferia de São Paulo, fruto direto da cultura brasileira. E eu fiz  “O Beijo” em inglês, ingenuamente, porque achei que desta forma iria percorrer o mundo. Hoje eu jamais faria um filme inglês sobre uma história latino-americana, eu respeitaria a essência.
Discute-se tanto o Mercosul, a integração latino-americana, mas quando se trata de integrar as ações culturais, ficamos sempre muito próximo de zero.
Eu só tive uma experiência com produções bi-nacionais, argentino-brasileiras, justamente meu último filme, “Passado”. Foi alguma coisa para esquecer. Tivemos todo tipo de dificuldade, desde liberação alfandegária de negativos até pagamento de cache e de produção, que não podiam ser cruzados, pois cada país tem uma legislação diferente na área de câmbio, na tributação de impostos. Uma loucura! E isso não é um problema de governo: acredito que os governos tanto do Brasil como da Argentina adorariam integrar as duas produções culturais. Nem mesmo dos produtores dos dois países, ou dos profissionais. O problema é a burocracia, as amarras do poder pequeno que se encontram nas estruturas dos dois países.
Dois Oscars e uma produção de qualidade, você diria que o cinema argentino renasceu?
O cinema argentino conseguiu ar para respirar, graças a uma lei realmente eficiente. Eles te dão recursos para você desenvolver um projeto, depois para a pré-produção. E aí conferem o teu orçamento e te dão o dinheiro para realizar o filme. Não é o que acontece no Brasil, aqui ninguém revisa o seu orçamento e as produções são pelo menos três vezes mais caras. Os filmes brasileiros são orçados em padrões europeus, americanos. Na Argentina, o processo é simples: para cada ingresso que você venda, eles te dão outro para você investir no próximo filme. Sem burocracia. É toma lá da cá.
E hoje como você vê as duas cidades São Paulo e Buenos Aires?

Buenos Aires nasceu com os dois pés na Europa. São Paulo é a divagação poética de uma aldeia que se industrializou e cresceu. É bem verdade que a cidade europeia do passado se transformou numa capital latino-americana no presente. Coisa que os argentinos rechaçam.  Mas, a verdade é que por lá ainda se pode caminhar pelas ruas. Eu não conheço uma grade em um parque ou em um edifício residencial em Buenos Aires. Aqui as residências estão cercadas por cercas eletrificadas. Talvez seja apenas uma questão de tempo. Não sei e espero que não. Mas, tenho certeza que os argentinos e os latino-americanos em geral ficarão positivamente impressionados ao conhecer a arte da periferia de São Paulo. Trepidante e inquietante, aliás, como é esta cidade.


Meu amigo Hector
Conheci Hector Babenco naquela fase em que ele se dividia entre o vendedor de rua e o fotógrafo de restaurantes em São Paulo. Seis anos mais novo que ele (eu tinha apenas 14 anos), dividimos a inquietação e a ansiedade pelo futuro. Nem ele nunca imaginou que seria um cineasta reconhecido em todo o mundo, nem eu poderia imaginar que seria um jornalista. Éramos apenas dois jovens que disputávamos o dia-a-dia. E cada dia era um novo dia. E cada aventura era uma nova aventura. Assisti a cada um de seus filmes com uma ponta de orgulho e identifiquei nos seus personagens a lembrança do amigo que trilhara novos caminhos.  

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