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Neschling e a Sinfônica Municipal: processo de transformação em movimento |
Meu amigo Armando Salém,
velho de guerra, certa vez admitiu descaradamente: “Sinto inveja da relação que
você mantinha com seu pai e seu avô, com este partilhar de experiências e de
hábitos culturais”.
Este é um privilégio que
não se delega, nem se transfere. Meu pai e meu avô (que na verdade era um avô
emprestado) me ensinaram desde sempre a não só ouvir boa música, mas a me
interessar por ela. Assim, desde os tempos dos Concertos Matinais Mercedes-Benz,
o meu primeiro vinil (Uma Terceira de Beethoven com Felix Weingartner e a
Filarmônica de Viena) eduquei o meu ouvido, idiossincrasias à parte, para ouvir
e buscar o melhor.
Não tenho uma discoteca
gigantesca. Mas, a experiência me ensinou a valorizar a qualidade, o registro
histórico, em detrimento do volume e da exuberância técnica. A transição do
vinil para o registro digital facilitou demais esta seleção. Por exemplo, era
muito difícil ouvir a Nona de Beethoven quando da reinauguração do Festival de
Bayreuth em 1954, com Furtwangler. A gravação era tecnicamente sofrível. A
regravação analógica perdia brilho. Com o CD tudo isso foi resolvido.
Mas, na linha dos privilégios,
outro dia fui premiado com uma jóia raríssima. Entre goles de um notável Vega Sicilia,
que eu estava guardando para uma grande ocasião, e garfadas de um risoto
precioso, preparado pela Patrícia, o maestro John Neschling me presenteou com
uma gravação antológica de duas peças de Respighi: Impressione Brasiliane e La
Boutique Fantasque. Ambas regidas por ele com o Filarmônica Real de Liége.
Para quem não sabe, o
professor Ottorino Respighi, bolonhês de nascimento como Rossini, mas
apaixonado pela cidade de Roma, passou o verão de 1927 na cidade do Rio de
Janeiro. Ficou de tal forma impressionado com os sons que ouviu, que voltou no
ano seguinte com uma “Suíte Brasileira”, formada por três movimentos. “Notte Tropicale”
inspirado por suas andanças no bairro carioca da Tijuca. “Butantan” inspirado
no bairro homônimo da cidade de São Paulo e no instituto do mesmo nome. “Canzone
e Danza” é a lembrança que Respighi registrou do carnaval nas ruas do Rio.
Ainda que minha paixão
pela ópera seja muito grande, é na sala de concertos, na música sinfônica, que eu realmente me encontro. Daí é fácil
imaginar a minha reação diante da magnífica interpretação de Neschling na
Butique Fantasque, que Respighi reescreveu a partir de manuscritos de Rossini.
Como este texto fala de
privilégios, não posso esquecer os sons da suíte de Benjamin Britten, no ano
passado, quando Neschling mostrou à cidade que iria transformar a nossa
Sinfônica, numa orquestra moderna, sensível e eficiente. O prefeito Fernando
Haddad naquela ocasião riu da minha angústia na expectativa do concerto. Mal sabia
ele que naquele momento se iniciava um processo histórico, liderado por ele
mesmo.
Confesso que sinto falta
dos concertos. Adoraria ouvir esta Butique de Respighi ao vivo, na minha sala preferida,
o Theatro Municipal, com a minha orquestra preferida, a Sinfônica Municipal,
com o meu regente preferido, o maestro Neschling.
Depois da estrondosa
performance em Il Trovatore e Falstaff, estamos na reta final de Carmem. Mas,
minha angústia é outra: a expectativa pela Quarta Sinfonia de Mahler, em
agosto. Quem gosta de música sinfônica sabe o tamanho do desafio.
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Neschling, Haddad e Ambrogi Maestri: confraternização pelo Falstaff |
Querido Nunzio, fico feliz, recompensado, gratificado e todos os ados mais que você possa imaginar com suas palavras emocionantes. Como músico creio ter chegado a um ponto onde o sucesso pontual, a gratificação imediata perde o sentido se comparada ao trabalho a prazo que se faz na construção de uma realidade sinfônica nova e estimulante para nós da orquestra, para o público que nos assiste e que reage com espontaneidade assim como para a cidade de São Paulo e o País, que num momento de tanta violência, carência e insegurança quanto ao futuro pode se certificar que pode produzir alimento para a alma, para o espírito e para a sua auto-estima tão abalada.
ResponderExcluirAproveito para informar que antes da Quarta Sinfonia de Mahler em agosto, iremos apresentar a Terceira Sinfonia do mesmo compositor na primeira semana de julho. Trata-se de um desafio ainda mais gigantesco: é a sinfonia mais longa da história da música, com quase uma hora e quarenta minutos de duração, e de uma dificuldade musical e técnica transcendental.
Tenha a certeza de que sentirei a tua presença na sala e o seu amor imenso pela obra de Mahler. Na verdade é para seres como você, meu querido, que eu gosto de fazer música.
John