quinta-feira, 5 de maio de 2016

A culpa foi do Olavo

Coisa de velho né? Bodas de ouro, filhos que se formam, outros que encaminham a vida, amigos que se vão, a respiração ofegante, a emoção incontida e as lágrimas no rosto ao ouvir Puccini, as lembranças de momentos marcantes, de aventuras vividas. Definitivamente não é fácil completar 45 anos de profissão.

Foi no dia 5 de maio de 1971 que eu me apresentei para o trabalho na velha redação do jornal “O Estado de S.Paulo”, na rua Major Quedinho, para ser duble de recepcionista de noticiário e rádio-escuta. No dia anterior, eu estava sentado em um banco (havia bancos naquela época) na praça D.José Gaspar. Experimentava a horrível sensação de um desiludido estudante de Física, diante de um futuro incerto, com dinheiro suficiente para um maço de Hollywood sem filtro e um café coado.

Sob a sombra da imponente biblioteca Mário de Andrade, me apareceu um anjo negro chamado Olavo. Amigo de família, que eu conhecia de vista. Não sabia o que fazia para ganhar a vida. Mas, que transpirava a dignidade daqueles que vivem do trabalho.

Olavo era meio bruxo. Sempre achei isso. Sentou-se ao meu lado com uma atitude terna e me provocou: “O que acontece? Você está triste”.
Debulhei um rosário de lamentações. Nunca entendi porque me abri tanto para alguém que afinal não era tão íntimo. Que eu só conhecia de vista. Mas, foi...

“Você precisa de um emprego. Sabe datilografar?”

Claro.

“Mas, você é bom mesmo numa máquina de escrever?”

Em um minuto eu estava diante do chefe das Comunicações do poderoso Estadão, Alaur Martins. No momento seguinte estava diante de uma máquina de escrever.

Nunca mais sai. As máquinas de escrever tornaram-se peças de museu. E eu também. Acho que o jornalismo mudou muito nestes 45 anos. Alguns dos modelos nos quais eu me inspirei deixaram a lida e foram desta para a melhor: Cláudio e Perseu Abramo, por exemplo. Ramão Gomes Portão, Otávio Pena Branca Ribeiro. Outros saíram da redação: Tão Gomes Pinto (mestre, mentor e amigo), Sílvio Lancellotti (meu irmão querido), Armando Salém. Outros ainda estão na lida: Mino Carta (farol de várias gerações), Clóvis Rossi (parceiro e condutor). A lista é interminável e eu vou parar por aqui.


Vou terminar com a milésima repetição da mensagem que me mandou a amada Anna Muggiati, quando eu sai da revista Manchete, no final de 1997. “Existe um paraíso especial para os jornalistas. É uma redação onde eles trabalham apenas com as pessoas de quem gostam e em quem confiam. Tenho certeza que vou te encontrar no meu paraíso”. 

terça-feira, 3 de maio de 2016

A Bohème de São Paulo


Portari e Kovalevska: Rodolfo e Mimi apaixonados no segundo ato





Certamente La Bohème é a ópera que mais vezes eu vi nos palcos. Vi em Londres, em Paris, em Milão, em Buenos Aires, em Santiago, em Nova York, em Pádua, em Nápoles, em Veneza e, claro, em São Paulo.

Aliás, embora tenha estreado em solo brasileiro no Teatro da Paz, de Belém, em 1900, quatro anos após a première em Turim, sob a regência de Arturo Toscanini, esta obra prima de Puccini guarda uma estranha e simpática relação com São Paulo, mais precisamente com o seu Theatro Municipal.

Puccini é um gigante capaz de embasbacar um profundo conhecedor ou um completo neófito. Suas árias e duetos são extremamente populares. Principalmente nas óperas mais conhecidas, Manon Lescaut, Tosca, La Boheme e Madame Butterfly. Trata-se de um quarteto capaz de encher os teatros de ópera de todo o mundo, tantas quantas récitas forem montadas.

Há várias formas de se encenar Puccini, desde a mais singela, em forma de música de cantina, até as monumentais interpretações que consagraram cantores e maestros.

La Bohème é quase uma brincadeira. A história de quatro estudantes miseráveis na Paris dos anos 70 do século XIX, que vivem em uma república apertada, e as peripécias de uma professora de canto mais a solidão de uma florista que desenhava rosas e lírios sem perfume.

Rodolfo, o poeta que escreve,  se apaixona pela florista Mimi, sua vizinha que o incomoda em hora imprópria; Marcelo, o pintor, sofre com o poder e a sensualidade de sua amada, Musetta; Coline e Schaunard (o músico e o filósofo) mais se divertem que qualquer outra coisa. Afinal, a comédia é estupenda!
Mas, se o libreto é simples assim, a música de Puccini propõe um desafio tremendo: fazer soar simples, melódico e envolvente. Dois exemplos marcantes de dificuldade, o segundo ato praticamente inteiro e o quarteto do final do terceiro ato. Muita, mas muita música!

Esta La Bohème que o Theatro Municipal de São Paulo apresenta em sete récitas e dois elencos neste início de maio ainda acrescenta algumas novidades extremamente bem-vindas. A concepção cênica de Arnaud Bernard e os figurinos de Carla Ricotti criados para a primeira apresentação em 2013, e que se incorporaram ao repertório definitivo da nossa casa de ópera. Juliana Santos a diretora da remontagem conseguiu ainda dar mais vigor, mais espaço, para um cenário tão criativo.

Os dois elencos por sua vez fizeram duas interpretações completamente diferentes: Cristina Pasaroiu e Ivan Magri  fizeram Mimi e Rodolfo mais introvertidos, mais sérios, enquanto Mihaela Marcu e Mattia Olivieri, como Musetta e Marcelo, se encarregaram de um show não só na interpretação vocal como cênica. Na outra versão, ocorreu exatamente o contrário, Maija Kovalevska fez uma Mimi vigorosa, rara, e Fernando Portari fez um Rodolfo mais engraçado, despreendido e apaixonado; Zheng Zhong Zhou e Anna Maria Sarra, por sua vez, deram tintas mais sofridas aos seus personagens.

O coro lírico e a Orquestra Sinfônica Municipal, em comparação com a récita de 2013, permitiram visualizar de forma escancarada a evolução destes dois corpos estáveis nestes últimos anos. O maestro residente da OSM, o jovem Eduardo Strausser , passeou pela partitura com uma naturalidade impressionante. Sabia que a orquestra atenderia sem esforço a sua condução. O resultado dignifica uma partitura tão rica em harmonias e melodias.


O  maestro John Neschling tem razões de sobra para se orgulhar de seu assistente e, principalmente da orquestra que ele recriou e que nunca, repito, nunca na história de 105 anos do Theatro Municipal atingiu um nível técnico de excelência profissional como agora. 


Eduardo Strausser, maestro residente da OSM: orgulho de Neschling