sexta-feira, 31 de março de 2017

A história revelada do Ulano do Reno






Schmeling com Joe Louis antes da luta de 1936;
com vocês sabem quem e a esposa na volta triunfal a Berlim
e como paraquedista kamikaze na Grécia




Meio assim de bobeira, peguei ontem na HBO um filme alemão dirigido por Uwe Boll, que me trouxe à lembrança o grande lutador alemão Max Schmeling, o Ulano do Reno, campeão mundial dos pesos pesados entre 1930 e 1932.

Schmeling tem um cartel de respeito: 56 lutas, 40 vitórias por nocaute, 10 derrotas e seis vitórias por pontos. Tornou-se símbolo do regime nazista, sem ser nazista, e foi ingênuo o suficiente para trabalhar contra um eventual bloqueio dos Estados Unidos às  Olimpíadas de Berlim, em 1936.

Naquele ano deixou-se usar como símbolo da raça ariana, ao vencer de forma surpreendente uma luta contra Joe Louis, em Nova York. Curioso é que o regime nazista com temor de que o Ulano do Reno seria massacrado tentou de todas as formas impedir o embate.

Schmeling trabalhou muito para enfrentar o “Demolidor de Detroit”. Chegou à conclusão de que se conseguisse se segurar no ringue até o décimo assalto, teria uma chance pelo cansaço de Louis. Deu certo, no 12º assalto, conseguiu colocar dois cruzados de sua potente direita e derrubou o flamante mito americano.

Mas, o Schmeling que voltou para Berlim vitorioso era muito diferente do que partira. Os nazistas não se conformavam com o fato de que ele era empresariado por um judeu Joe Jacobs. E também torciam o nariz para o fato dele ser casado com a atriz e produtora tcheca Anny Ondra.

Os nazistas queriam que a vitória em Nova York fosse emblemática e como tal deveria continuar. Mas, Schmeling entendia que Louis tinha direito a uma revanche.

Em 1938, a revanche se deu no Yankee Stadium. Schmeling aguentou no ringue pouco mais de dois minutos. Louis aprendera que a arrogância e a pretensão da vitória a qualquer momento poderia custar caro. Quebrou uma vertebra e danificou um rim do alemão e retomou o título.

Hitler ficou furioso. Ainda mais porque descobriu que Schmeling fazia parte de uma organização clandestina que dava fuga aos judeus alemães e austríacos. Com os olhos do mundo sobre o Reich e sem poder tocar no ex-símbolo da raça, o Ulano do Reno foi convocado como paraquedista e destacado para as missões mais perigosas possíveis.

O filme aliás é um flash back muito criativo. Dado como morto na Grécia, já no fim da guerra, Schmeling reaparece ferido em um hospital de campanha. Os alemães recuavam e estavam sendo batidos pelos britânicos. O comandante alemão ordena então que o lutador-paraquedista escolte um oficial inglês até um posto alemão, que já não existia mais, através das linhas inimigas. Uma caminhada de 15 quilômetros, quase intransponível para alguém que mesmo com uma preparação atlética invejável, ainda tinha uma bala nos joelhos.

Desgraçadamente para os alemães, entretanto, o oficial inglês era fã do esporte dos reis, reconheceu o Ulano do Reno, e durante o percurso provoca o paraquedista alemão a contar sua história.  O filme é de 2010, dirigido por Uwe Boll e foi batizado em português de “O Campeão de Hitler”. Está disponível no Now.


Max Schmeling foi casado com Anny Ondra até a morte da esposa em 1987. Ele morreu com 99 anos em 02 de fevereiro de 2005.  Com o fim da guerra, tornou-se o primeiro distribuidor de Coca-Cola na Alemanha. Fez fortuna de novo, tornou-se um filantropo, ajudou muita gente no boxe. Inclusive a um certo lutador americano, deus do ringue, que morreu na miséria, chamado Joe Louis.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Noite de pesadelo!



Yoda ao me despertar:"Acorda  e leva sua filha na escola"


Não. Não foi o jantar. Nem a solidão. Talvez tenha sido o cenário descrito por Jan Swatford, na monumental biografia de Beethoven, que ganhei de presente (e que presente!) do meu amigo Luís Massonetto. A imagem do gênio acuado, em um canto da sala de seu pequeno apartamento em Viena, enquanto a artilharia francesa despejava bombas e mais bombas. Fiquei com pena do maestro. Aquele bombardeio atingia diretamente o seu coração e derrubava seu sonho republicano.

Mas, o meu pesadelo me levou para bem longe da Viena do início do século XIX. Na verdade, eu estava em um país do hemisfério sul, em tempos atuais. Parecia um cenário de Ray Bradbury, em Farenheit 451. A comunicação se dava por mensagens curtas, duas ou três frases. Aprofundar era proibido, considerado chato e enfadonho. Aqueles que pensavam na história, na filosofia ou na política eram discriminados e apartados da sociedade. Só não havia bombeiros incendiando bibliotecas. Pelo menos naquele momento.

Nos escombros de uma sociedade que buscara o conhecimento, predominavam agora a auto-ajuda, o evangelismo e as soluções voluntaristas e pragmáticas. O passado era como uma praga. Pensar no futuro era considerado crime por enfado. Só existia o presente.

O quotidiano era um grande reality show, onde os derrotados eram execrados e apartados da sociedade. A utopia era a emoção. Uma montanha russa eterna, que nunca parava. Esse era o ideal daquela sociedade, onde a intimidade era constantemente devassada e exibida em uma espécie de arena romana, para delírio de todos.

Como numa Metrópolis futurista, os trabalhadores eram iludidos por um robô que os comandava para a extinção lenta e segura. Os mais jovens e mais ambiciosos eram poupados. Guindados a sociedade do consumo a partir de um ingresso em um parque de diversões constante onde colocariam sua capacidade de se emocionar à medida que as atrações se sucediam.

Era uma sociedade de normas severas. Estava proibido tratar de questões raciais, embora grassasse a discriminação. Gênero, diversidade, luta de classes nada disso podia ser questionado. Mas, também era um meio social limpo. Não havia chaminés, nem fábricas, muitas árvores. Ninguém comia carne. Nem mesmo de frango. Os capitalistas haviam descoberto uma forma de multiplicar seu capital sem lançar mão do trabalho ou da produção.

Aos velhos, como eu, era permitido a contemplação dos cenários da natureza. E na remota hipótese de algum jovem reclamar de enfado, estavam liberados para arguir da beleza do cenário natural, as montanhas, as praias, o jeito pacífico e malemolente  do povo, a música, a poesia, a sexualidade. Tudo continua lindo!

Não havia mais barreiras morais. O limite era se dar bem. Não importa se para isso fosse necessário transformar-se em traficante de drogas (o que era proibido) ou rufião.

No comando desta sociedade havia uma dualidade, cujos integrantes se alternavam. Um era um profissional do marketing e da propaganda. Um vendedor de sonhos que bajulava e era sustentado por uma cadeia de empresários, sempre insatisfeitos, absolutamente obcecados por limpeza, emoção e consumo. De outro, um antigo âncora de televisão, papa da auto-ajuda, bem-sucedido formador das opiniões mais rasteiras.

No meio dos ruinas do que parecia ser uma Nuremberg pós Segunda Guerra, encontrei lembranças de uma outra sociedade, que perecera depois de cinco séculos de patrimonialismo e que sonhara com a busca do conhecimento, a igualdade, a tolerância e o respeito. Havia sido triturada pela luta do poder.

Não. Não era o Planeta dos Macacos. Era o Planeta dos Medíocres.

De repente me vi em um interrogatório. Eu era o interrogado. E o interrogador, à medida que se tornava mais agressivo insistia em obter respostas: quantos livros você leu¿ Quem eram os autores¿ Quais eram os seus objetivos¿

O interrogador aproximou o seu rosto ao meu e em voz murmurante ainda me questionou: É verdade que você ouve sinfonias de Beethoven¿

Com o pavor que estava sentindo, finalmente despertei. O meu cachorro, Mestre Yoda, lambia a minha cara com ares de sapeca.

Fiz o café. Levei minha filha Nina para a universidade. Passeei com o Yoda pela vizinhança, para alívio inconteste dele. Voltei e arrebentei a vizinhança com o som da Quinta Sinfonia. No último volume.

domingo, 26 de março de 2017

Meninos, eu vi!

José Carlos Alves dos Santos: fio desencapado que revelou o esquema da Odebrecht, em 1993



Desculpe Juca Kfoury, mas não resisto em tomar emprestado o teu refrão. Um artigo na Folha de hoje, assinado pelo competentíssimo Bernardo Mello Franco, me fez voltar ao passado, mais precisamente ao segundo semestre de 1993, em Brasília. Eu acabara de voltar as lides jornalísticas da reportagem. Collor tinha ido para a cucuia, junto com a República de Alagoas. O país transpirava satisfação por isso: a vitória dos caras pintadas, da sociedade civil.

Pois bem. Um psicopata de nome José Carlos Alves dos Santos, chefe do corpo técnico do Senado Federal, que cuidava da Comissão de Orçamento estava com um sério problema. Sua esposa tinha desaparecido. Misteriosamente. Sobretudo depois que a Imprensa (sempre ela) havia escancarado, que ele havia montado um ninho de amor numa superquadra de Brasília, com ninguém menos que uma das secretarias de diretoria da todo-poderosa Odebrecht.

A paixão e a insegurança era tanta que José Carlos chegou a contratar os serviços de um detetive particular para seguir a amante. A história foi se enrolando e se tornando cada vez mais rocambolesca.

O irmão da amante era um piloto de avião, um destes aviões executivos, e a Polícia Federal havia encontrado sinais de que o aparelho havia transportado uma grande carga de cocaína. Na casa de José Carlos, claro, uma mansão no Lago Norte, foi encontrada uma enorme soma em dinheiro embaixo do colchão.

Naquela época, não se falava em delação premiada. Nada disso. E José Carlos, começou a vazar pela imprensa uma série de irregularidades da Comissão de Orçamento. Envolvimento de políticos, evidentemente todos do baixo clero, alguns até folclóricos. Começou a passar para a Polícia Federal planilhas que citavam deputados e senadores de diversos partidos.

Logo foi instalada uma CPI, cujo relatório preliminar mostrava como as empreiteiras se organizaram para corromper parlamentares e superfaturas obras públicas. “A papelada revela a existência de um verdadeiro governo paralelo, tocado pelas grandes empreiteiras”, afirmava a Folha, em dezembro de 1993. O Jornal do Brasil sintetizava em manchete “CPI desvenda esquema de corrupção envolvendo empreiteiras e políticos”. No texto dizia: “O comprometimento se dava em três níveis: pagamento de propinas, ajuda para campanhas políticas e presentes”.

À medida que a CPI avançava nas suas investigações, todos os grandes nomes do Congresso estavam envolvidos. Alguns mais, outros menos. Mas, todas as cabeças coroadas – não vou relacionar aqui, até porque todo mundo sabe quem são – estavam no rolo.

Os bombeiros de então passaram a chamar as investigações de “ameaça à democracia”. Falou-se em golpe militar, com tanta intensidade, que os ministros militares do governo Itamar Franco foram consultados e a CPI silenciou sobre os nomes envolvidos.

A República tremeu. Alguns "anões", deputados com baixa estatura e pouca expressão política pagaram a conta com quatro renúncias e seis cassações. Ninguém devolveu uma única moeda ao tesouro. Ainda me lembro da noite em que estávamos no Piantella à espera dos parlamentares que deliberavam sobre a CPI. Chegaram esfuziantes. Haviam enterrado a CPI do Orçamento e salvado a República. Em tempo: parlamentares de todos os partidos, do PMDB, do PSDB, do PT, do antigo PDS, todos.

Fui para casa com uma trava na garganta.

Quanto a José Carlos Alves dos Santos, ele havia encomendado ao detetive particular, aquele que deveria ter seguido a amante, que matasse a própria esposa e a enterrasse em Planaltina. O corpo foi encontrado depois que, sob pressão, Lobo (este era o nome do detetive) admitiu o crime: “Doutor, nunca vi homem tão cruel. Quando enterramos a mulher, ela ainda dava sinais de vida. Ele mesmo pegou uma picareta e abriu a cabeça da dona”.


A amante secretária da Odebrecht e o irmão piloto desapareceram. A investigação do tráfico de drogas também sumiu. José Carlos foi condenado, cumpriu o sexto habitual, e hoje é um simpático vendedor de automóveis usados na Cidade do Automovel, em Brasília.  

quinta-feira, 23 de março de 2017

Enfim, o capital brasileiro conseguiu. Na prática, liquidou com a CLT
















Sempre achei que a bronca da elite brasileira com o presidente Getúlio Vargas estava relacionada a implantação da Consolidação das Leis do Trabalho. Documento oriundo da Carta del Lavoro do fascismo italiano, a CLT introduziu limites na exploração do trabalho pelo capital.

Pode parecer absurdo, mas antes dela, não havia jornada de trabalho, previdência social, domingo remunerado, décimo-terceiro, férias, limitação de idade para o exercício do trabalho, profissões regulamentadas e sindicatos. Getúlio, por alguma razão, ainda que tenha sancionado a mais civilizatória legislação, não fez um documento perfeito. Os trabalhadores rurais, por exemplo, sempre foram considerados uma espécie de sub-trabalhadores, com direitos relativizados em relação aos trabalhadores urbanos.

Nestes mais de 75 anos da CLT, o diploma foi aprimorado, remendado e melhorado. Neste tempo, uma constante: esteve sob fogo dos empresários, inconformados com o excesso de direitos e o impacto destes na composição dos preços. Também jamais se conformaram com a criação da Justiça do Trabalho. Dez em dez empresários das três gerações envolvidas fizeram muita promessa para que a CLT deixasse de existir. O custo da mão-de-obra no Brasil sempre foi apontada como entrave ao desenvolvimento.

O Brasil está longe de ter uma legislação trabalhista moderna. É proibido falar-se em co-gestão de empresas, divisão de lucros, estabilidade, aposentadoria com salário real. Também é proibido falar em fim da demissão sem justa causa; ou em equivalência salarial de acordo com a formação ou a tipicidade do trabalhador e do trabalho exercido.

Tão logo a Constituição de 1988 foi aprovada, os empresários brasileiros iniciaram uma forte ação de lobby, cujo objetivo era, finalmente, enterrar a CLT. Tentaram com Collor, não conseguiram. Com Fernando Henrique Cardoso, também não conseguiram. Com Lula e Dilma não tinham nenhuma chance. Conseguiram agora com Temer. Quem diria¿

Nossos valentes representantes no Parlamento brasileiro conseguiram tomar o drible da vaca de um bando de cuecões. Não bastasse a disposição de reformar a previdência, de empurrar goela abaixo o voto de lista, a anistia ao caixa 2, tomaram nas costas a votação de um projeto do governo Fernando Henrique Cardoso, que dormitava nos escaninhos do Congresso, e que simplesmente, como num passe de mágica, liberou, sem mais, a terceirização generalizada do trabalho no Brasil.

Não se revogaram direitos. Mas, permitiram que a partir de agora trabalhadores podem ser contratados em um regime sem qualquer um dos benefícios previstos na CLT.

É um desastre!

Será que o Brasil vai assistir a este retrocesso absurdo sem esboçar qualquer reação¿


Quando os avanços sociais de um regime como o de Mussolini, instaurado nos anos 20 do século passado, são revogados  e se busca o retrocesso é de se esperar que o próximo passo será a revogação da Lei Áurea. E quem sabe a transformação do Brasil numa gigantesca fazenda de cana-de-açucar.     

terça-feira, 21 de março de 2017

O ranking da felicidade e do estilo de vida




Vista de Oslo, a pulsante capital norueguesa: durante o rush matinal

A elaboração de rankings a partir de parâmetros definidos pelos países do hemisfério Norte, quer dizer desenvolvidos, parece ser mesmo uma doença dos chamados tempos modernos. No ranking da ONU que avalia o desenvolvimento humano em 188 nações, o Brasil é apenas a 79ª. Melhorou muito em saúde e educação e piorou no quesito distribuição de renda. O que o manteve estável, ou seja, na mesma posição de 2010. Em tempo, estes dados correspondem a um levantamento feito em 2015.

No chamado ranking da felicidade elaborado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável à pedido da ONU, o Brasil está em 22º lugar entre as nações mais felizes do mundo. Atenção no ano passado era 17º . A avaliação é feita em 155 países.

Os primeiros colocados são sempre os mesmos. Noruega, Dinamarca, Suécia, Islândia, Finlândia, Canadá, Nova Zelândia e Austrália. Os países escandinavos também lideram ranking de suicídios e depressão. Ainda assim, segundo a ONU, são felizes e possuem o maior indicador de desenvolvimento humano do planeta.

Na reportagem de O Globo, de hoje, que divulga estes resultados, o professor Roberto da Matta, antropólogo da PUC-Rio, relativizou as pesquisas:
“O conceito de felicidade” – disse ele – varia de acordo com cada cultura e tempo histórico... Acredito que devemos prestar atenção aos aspectos negativos, como a corrupção que não é um problema para os países que lideram a lista. A queda do Brasil é um reflexo evidente da falência do Estado. Estamos sob uma sombra infeliz e vergonhosa”.
Na lista das 25 nações mais felizes do mundo, destaque para a Costa Rica, em 12º lugar, o Chile, em 20º , a Argentina em 24º e o México em 25º. Curiosamente não aparecem referências ao Japão, a Itália, a França, a Espanha ou Portugal. Entre os mais infelizes, Afeganistão, 141º. , Haiti, 145º. E Síria, 152º , são os únicos não africanos entre os últimos 25 países da lista.





sábado, 18 de março de 2017

A direita, a esquerda e o saco cheio da classe média





Outro dia um amigo muito querido manifestou-se aqui no face, com amplo apoio, que estava de saco cheio da dicotomia direita-esquerda. Não é a primeira vez que ouço isso. Gente muito boa e muito querida já me disse com todas as letras: “Isso é coisa do século XX, a revolução digital acabou com isso, agora as questões são outras, qualidade de vida, ambientalismo....”

Costumo responder com uma caricatura. Uma comissão de fábrica diante de um patrão exigindo participação nos lucros, melhores condições de trabalho, salários compatíveis... O patrão então se sai com esta: vou plantar uma árvore na frente do barraco onde vocês moram e vou dar uma conta na internet para cada um. Ou como gostava um antigo ex-ministro da Educação, de triste memória, um lap-top amarelo para cada um.

Se preferem me chamar de old fashioned, tudo bem. Mas, para mim, qualidade de vida é salário justo e digno. Pode deixar que eu mesmo planto uma árvore no meu jardim. E só compro produtos ambientalmente corretos. Separo o lixo direitinho. Até monto uma micro-usina de compostagem aqui no prédio.

Que conversa! Gente o eterno confronto, desde que a primeira máquina a vapor inundou de fumaça uma chaminé, é entre capital e trabalho. O patrão querendo ganhar mais a custo do trabalho de seus empregados. E os empregados querendo sobreviver as condições cruéis de trabalho. Defendendo jornadas mais justas, salários mais dignos e ambientes de trabalho mais saudáveis.

Claro está que há sempre a opção de bajular os patrões (quem sabe um dia querendo ser um) e eventualmente cerrar fileiras com os trabalhadores. Isso se chama ser de centro. Ou extremo centro como eu costumo dizer.

Tem gente muito boa de todos os lados. Patrões que dividem o lucro com seus trabalhadores e até convivem com a gestão compartilhada. Sindicalistas honestos que representam mesmo o direito dos trabalhadores. Centristas liberais que tem pavor ao autoritarismo. Conservadores honestos que defendem posturas menos ousadas e mais sustentáveis, etc.... E há também gente que sonha em revogar a lei Áurea, com um estado autoritário e forte para lhe dar respaldo; sindicalistas que defendem na verdade os benefícios apenas para uma elite de dirigentes; centristas que acham que podem auferir lucros dos dois lados e assim por diante.

Agora se dizer de saco cheio da divisão esquerda e direita; dizer que a luta de classe foi revogada; ou diminuir o embate capital-trabalho reduzindo a uma questão menor como Dilma-Temer. Brincadeira tem hora. É como dizer que a humanidade é essencialmente boa e pacífica. Que não houve três séculos de escravidão negra (é tudo invenção da Inglaterra vitoriana). Que o holocausto foi uma invenção da mídia sionista...

Sim gente. O PT errou feio. Como partido do lado do trabalho, jamais poderia perpetrar as concessões que praticou com o capital. Não poderia achar que os patrões, de uma hora para outro, iam aderir ao discurso da divisão da renda, que os filhos dos trabalhadores teriam direito a educação de qualidade e etc... Errou por se lambuzar num esquema de corrupção, que já corrompera o PSDB, o PMDB, o PP, o DEM e toda a classe política desde que a indústria da cana-de-açucar foi implantada em Pernambuco no século XVI.

Será que neste tempo todo, ninguém percebeu que o que mudou foram os políticos, os dirigentes sindicais, mas os corruptores são os mesmos, desde sempre. E que desde o Brasil Colônia, Imperial ou Republicano, o motor que moveu este país foi o patrimonialismo. Foram as práticas da elite econômica nacional que levaram o Brasil a posição desastrada e desgraçada a que chegamos agora.

Direita-esquerda; capital-trabalho; autoritarismo-liberalismo; estado-iniciativa privada; nada disso foi revogado. Está em pleno movimento. Se enche o saco da classe média brasileira. Azar o dela. No futuro, muito próximo, ela será cobrada pelo que está acontecendo agora, quando queria apenas tratar, como sempre fez, uma fratura exposta com um band-aid.

  

sábado, 11 de março de 2017

O Ruído do Tempo


Dmitr Shostakovitch em sua dasha: o crime de ser pessimista no regime soviético


Certa manhã estava literalmente vagabundeando no cais do porto de Barcelona na Espanha. O vento brando do Mediterrâneo triscava o meu rosto eu me divertia com o movimento dos estivadores e portuários. Movimento insano, diga-se, por alguma razão que eu desconhecia.
Ao questionar, me informaram apenas que se aproximava uma nave mercantil soviética, de proporções gigantescas. Na verdade, o maior navio de carga do mundo. Tão grande que sua aproximação e atracação deveria obedecer às leis da inércia do movimento, sem possibilidade nenhuma de acionamento dos motores para correção.
Tratava-se então de um acontecimento. Postei-me de forma a sorve-lo. Acomodei-me em uma pedra e lancei meu olhar para a entrada do porto. Divisei apenas um ponto vermelho, longínquo e distante. Algum tempo depois, o brutamontes adentrava as docas. Gigantesco, assustador, limpo, com um enorme dístico da foice e do martelo.
O nome do navio, símbolo do poderio soviético, me chamou a atenção: Dmitr Shostakovitch.
Me percorreu um calafrio de orgulho. Sim. Eu sabia quem havia sido o grande Dmitr Dmitrievich Shostakovitch, o grande compositor soviético do século XX. Conhecia sua sinfonia número 1, a 5, a 7 e a 10. Alguns de seus quartetos, sobretudo o oitavo. Os dois concertos para piano. Mas, sabia, sobretudo, que estava diante de um exemplo de uma das maiores ironias que eu poderia testemunhar: Shostakovitch batizara o maior orgulho naval de um regime, que o torturara por toda a vida, por uma razão aparentemente singela, mas de profunda reflexão. Ele era pessimista em um momento que isso significava ser contrarrevolucionário.  
Lembrei-me deste episódio ao ler, na verdade sorver como um bom vinho, o magnífico livro de Julian Barnes, “O Ruído do Tempo”, editado no Brasil pela Editora Rocco.
Ficção sobre fatos reais¿ O que é ficção, o que é realidade¿
Barnes valeu-se de dois livros notáveis, pinçados em uma bibliografia considerável sobre o compositor: Shostakovitch: A life remembered (1994) de Elisabeth Wilson; e Testimony: the memoirs of Shostakovitch (1979) fruto do relato da sua vida, feito pelo próprio compositor, ao escritor Solomon Volkov.
Segundo o próprio Barnes, ele ainda bebeu no livro de Isaak Glikman, Story of a Friendship (2001) e nas entrevistas que Michael Ardov fez com os filhos do compositor, Galina e Maxim, publicadas em 2004 sob o título Memories of Shostakovitch.
É conveniente lembrar que Dmitr Shostakovitch morreu em agosto de 1975, aos 69 anos, em Moscou. Nada a ver, portanto, com seus colegas que contrapuseram o talento musical aos delírios românticos, devaneios intelectuais e assim por diante. Me refiro aos geniais Berlioz, Schumann, Paganini, entre outros.
Shostakovitch veio para o mundo aos 19 anos, portanto em 1928, com sua primeira sinfonia. Viveu a derrocada do leninismo e o surgimento do período que Kruschev chamaria de “Culto a Personalidade”, ou seja, o stalinismo.
Percorreu durante décadas o fio de uma navalha, assustado diante um fantasma que atormentava a todos os artistas soviéticos: o culto a decadência ocidental e ao individualismo.
Durante muito tempo dormiu vestido, com colete e gravata, porque acreditava que aqueles que haviam sido arrancados de sua cama pela NKVD (a precursora da KGB) de camisola não retornavam. E os que foram encaminhados formalmente vestidos conseguiam voltar para a vida. Em períodos mais tensos, ele passava a noite postado diante da porta do elevador do prédio onde morava em Leningrado, a espera dos agentes da temível polícia política.
Barnes descreve a situação com um misto de humor e realismo. E ainda de brinde conta o episódio da volta de Sergei Sergeyvich Prokofiev, em 1927, a União Soviética. Na revista da alfândega, os funcionários ficaram perplexos com um par de pijamas que o compositor havia trazido dos Estados Unidos. Pior. Não havia uma palavra em russo para designar pijamas.
Prokofiev como todos sabem é um dos pais do realismo musical socialista. Teve o azar, entretanto, de morrer poucas horas antes de Stalin. Ou seja, seu passamento passou completamente despercebido.
Outro episódio bastante emblemático foi a convocação de Shostakovitch para prestar esclarecimentos na Casa Grande, um sobradão na Liteiny Prospekt, em Leningrado, onde vivia um certo agente soviético chamado Zakrevski.   Muita gente entrou por aquelas portas. Poucos saíram.
Zakrevski queria saber de Shostakovitch se ele conhecia o marechal Tukhachevski, se frequentava a sua casa e quantas vezes o visitava por ano.
Tukhachevski era uma espécie de padrinho de Shostakovitch. Conseguira financiamento público para ele. E diante do escândalo provocado pela ópera MacBeth do distrito de Mnski, havia escrito ao próprio Stalin defendendo o compositor.
Mas, nada disso interessava ao inquisidor. Ele queria saber de uma conspiração urdida na casa do marechal para assassinar o camarada Stalin. Uma bobagem!
Claro que o compositor alegou total desconhecimento. Zakrevski não se conformou: “Sugiro que o senhor pense melhor. Alguns dos outros convidados já confirmaram a conspiração. Hoje é sábado. São doze horas agora, e o senhor pode ir. Mas eu lhe darei 48 horas. Às 12 horas de segunda-feira o senhor irá se lembrar de tudo, sem falta”.
No horário aprazado, Shostakovitch se apresentou na Grande Casa e se identificou ao guarda na recepção. O soldado olhou a lista e não encontrou o nome do compositor. “Quem o senhor veio ver¿”
Zakrevski – respondeu.
“O senhor pode voltar para casa. Zakrevski não virá hoje”.
Zakrevski nunca mais voltou. Mas, três semanas depois Tukhachevski foi fuzilado. A conspiração dos generais havia sido descoberta. Também fuzilaram Nikolai Sergeyevich Jilyayev, eminente musicólogo. Talvez houvesse também uma conspiração de musicólogos, outra de compositores e uma outra de trombonistas. Nunca vai se saber!.
O livro conta vários episódios geniais, como a busca por um Beethoven Vermelho, ou o tutor designado pelo regime para doutrinar o compositor. Fala ainda do drama de Shostakovitch em Nova York, quando foi obrigado a abjurar a Igor Stravinsky, a quem amava de paixão sobre todas as coisas.
Pessoalmente tenho adoração pela música de Shostakovitch. Acredito que a história vai absolve-lo de seus erros, se é que ele os cometeu, e em que circunstâncias. Também acho que conseguir representar a ironia num pentagrama, como ele fez, não é pouca coisa. MacBeth do Distrito de Mnsk é uma obra-prima entre as óperas do século XX. E acho, finalmente, que Stalin não entendia patavina de música.
Isso posto, não sei que fim levou o gigantesco cargueiro soviético batizado com o nome do compositor. Mas, convido aos poucos leitores deste blog à leitura do livro de Barnes e a escutar alguma obra de Shostakovitch. Podemos começar pela valsa da Jazz Suite, uma delícia!

https://www.youtube.com/watch?v=mmCnQDUSO4I