sábado, 11 de março de 2017

O Ruído do Tempo


Dmitr Shostakovitch em sua dasha: o crime de ser pessimista no regime soviético


Certa manhã estava literalmente vagabundeando no cais do porto de Barcelona na Espanha. O vento brando do Mediterrâneo triscava o meu rosto eu me divertia com o movimento dos estivadores e portuários. Movimento insano, diga-se, por alguma razão que eu desconhecia.
Ao questionar, me informaram apenas que se aproximava uma nave mercantil soviética, de proporções gigantescas. Na verdade, o maior navio de carga do mundo. Tão grande que sua aproximação e atracação deveria obedecer às leis da inércia do movimento, sem possibilidade nenhuma de acionamento dos motores para correção.
Tratava-se então de um acontecimento. Postei-me de forma a sorve-lo. Acomodei-me em uma pedra e lancei meu olhar para a entrada do porto. Divisei apenas um ponto vermelho, longínquo e distante. Algum tempo depois, o brutamontes adentrava as docas. Gigantesco, assustador, limpo, com um enorme dístico da foice e do martelo.
O nome do navio, símbolo do poderio soviético, me chamou a atenção: Dmitr Shostakovitch.
Me percorreu um calafrio de orgulho. Sim. Eu sabia quem havia sido o grande Dmitr Dmitrievich Shostakovitch, o grande compositor soviético do século XX. Conhecia sua sinfonia número 1, a 5, a 7 e a 10. Alguns de seus quartetos, sobretudo o oitavo. Os dois concertos para piano. Mas, sabia, sobretudo, que estava diante de um exemplo de uma das maiores ironias que eu poderia testemunhar: Shostakovitch batizara o maior orgulho naval de um regime, que o torturara por toda a vida, por uma razão aparentemente singela, mas de profunda reflexão. Ele era pessimista em um momento que isso significava ser contrarrevolucionário.  
Lembrei-me deste episódio ao ler, na verdade sorver como um bom vinho, o magnífico livro de Julian Barnes, “O Ruído do Tempo”, editado no Brasil pela Editora Rocco.
Ficção sobre fatos reais¿ O que é ficção, o que é realidade¿
Barnes valeu-se de dois livros notáveis, pinçados em uma bibliografia considerável sobre o compositor: Shostakovitch: A life remembered (1994) de Elisabeth Wilson; e Testimony: the memoirs of Shostakovitch (1979) fruto do relato da sua vida, feito pelo próprio compositor, ao escritor Solomon Volkov.
Segundo o próprio Barnes, ele ainda bebeu no livro de Isaak Glikman, Story of a Friendship (2001) e nas entrevistas que Michael Ardov fez com os filhos do compositor, Galina e Maxim, publicadas em 2004 sob o título Memories of Shostakovitch.
É conveniente lembrar que Dmitr Shostakovitch morreu em agosto de 1975, aos 69 anos, em Moscou. Nada a ver, portanto, com seus colegas que contrapuseram o talento musical aos delírios românticos, devaneios intelectuais e assim por diante. Me refiro aos geniais Berlioz, Schumann, Paganini, entre outros.
Shostakovitch veio para o mundo aos 19 anos, portanto em 1928, com sua primeira sinfonia. Viveu a derrocada do leninismo e o surgimento do período que Kruschev chamaria de “Culto a Personalidade”, ou seja, o stalinismo.
Percorreu durante décadas o fio de uma navalha, assustado diante um fantasma que atormentava a todos os artistas soviéticos: o culto a decadência ocidental e ao individualismo.
Durante muito tempo dormiu vestido, com colete e gravata, porque acreditava que aqueles que haviam sido arrancados de sua cama pela NKVD (a precursora da KGB) de camisola não retornavam. E os que foram encaminhados formalmente vestidos conseguiam voltar para a vida. Em períodos mais tensos, ele passava a noite postado diante da porta do elevador do prédio onde morava em Leningrado, a espera dos agentes da temível polícia política.
Barnes descreve a situação com um misto de humor e realismo. E ainda de brinde conta o episódio da volta de Sergei Sergeyvich Prokofiev, em 1927, a União Soviética. Na revista da alfândega, os funcionários ficaram perplexos com um par de pijamas que o compositor havia trazido dos Estados Unidos. Pior. Não havia uma palavra em russo para designar pijamas.
Prokofiev como todos sabem é um dos pais do realismo musical socialista. Teve o azar, entretanto, de morrer poucas horas antes de Stalin. Ou seja, seu passamento passou completamente despercebido.
Outro episódio bastante emblemático foi a convocação de Shostakovitch para prestar esclarecimentos na Casa Grande, um sobradão na Liteiny Prospekt, em Leningrado, onde vivia um certo agente soviético chamado Zakrevski.   Muita gente entrou por aquelas portas. Poucos saíram.
Zakrevski queria saber de Shostakovitch se ele conhecia o marechal Tukhachevski, se frequentava a sua casa e quantas vezes o visitava por ano.
Tukhachevski era uma espécie de padrinho de Shostakovitch. Conseguira financiamento público para ele. E diante do escândalo provocado pela ópera MacBeth do distrito de Mnski, havia escrito ao próprio Stalin defendendo o compositor.
Mas, nada disso interessava ao inquisidor. Ele queria saber de uma conspiração urdida na casa do marechal para assassinar o camarada Stalin. Uma bobagem!
Claro que o compositor alegou total desconhecimento. Zakrevski não se conformou: “Sugiro que o senhor pense melhor. Alguns dos outros convidados já confirmaram a conspiração. Hoje é sábado. São doze horas agora, e o senhor pode ir. Mas eu lhe darei 48 horas. Às 12 horas de segunda-feira o senhor irá se lembrar de tudo, sem falta”.
No horário aprazado, Shostakovitch se apresentou na Grande Casa e se identificou ao guarda na recepção. O soldado olhou a lista e não encontrou o nome do compositor. “Quem o senhor veio ver¿”
Zakrevski – respondeu.
“O senhor pode voltar para casa. Zakrevski não virá hoje”.
Zakrevski nunca mais voltou. Mas, três semanas depois Tukhachevski foi fuzilado. A conspiração dos generais havia sido descoberta. Também fuzilaram Nikolai Sergeyevich Jilyayev, eminente musicólogo. Talvez houvesse também uma conspiração de musicólogos, outra de compositores e uma outra de trombonistas. Nunca vai se saber!.
O livro conta vários episódios geniais, como a busca por um Beethoven Vermelho, ou o tutor designado pelo regime para doutrinar o compositor. Fala ainda do drama de Shostakovitch em Nova York, quando foi obrigado a abjurar a Igor Stravinsky, a quem amava de paixão sobre todas as coisas.
Pessoalmente tenho adoração pela música de Shostakovitch. Acredito que a história vai absolve-lo de seus erros, se é que ele os cometeu, e em que circunstâncias. Também acho que conseguir representar a ironia num pentagrama, como ele fez, não é pouca coisa. MacBeth do Distrito de Mnsk é uma obra-prima entre as óperas do século XX. E acho, finalmente, que Stalin não entendia patavina de música.
Isso posto, não sei que fim levou o gigantesco cargueiro soviético batizado com o nome do compositor. Mas, convido aos poucos leitores deste blog à leitura do livro de Barnes e a escutar alguma obra de Shostakovitch. Podemos começar pela valsa da Jazz Suite, uma delícia!

https://www.youtube.com/watch?v=mmCnQDUSO4I

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