sexta-feira, 13 de março de 2015

Il fazzoletto siderale



Exultate! - Ária de entrada em cena do Otello: cena espacial no lugar de Chipre


Bem que o maestro Neschling tinha me avisado: “Você não vai gostar!”

Eu bem que tentei. Pelo menos até o segundo ato, fiquei na dúvida se gostava ou não. No terceiro ato, abstrai a cena e me deleitei com a obra prima de Verdi e de Boito. Melhor me conformar com a minha incapacidade.

Longe de mim, entretanto, detonar o trabalho que Giancarlo del Monaco criou. A idéia de que a perfídia, a inveja e a intriga são universais e podem caber no espaço sideral não tem nada de maluco. E se há alguma coisa que pode ser transportado para qualquer época e qualquer lugar é a história do general mouro, que, ensandecido de ciúmes, destruiu o seu mundo todo.

Não quero fazer o reacionário. Melhor que cada um tire as suas próprias conclusões.

Ao que interessa: John Neschling cada vez mais mostra o seu enorme talento quando se debruça sobre uma partitura de Giuseppe Verdi. É impressionante como ele se identifica com os maneirismos do pentagrama, os ritmos marcantes, os efeitos orquestrais e as melodias tão características do maestro italiano.

Assim desde o primeiro ataque (aliás que ataque!) do coro inicial da ópera ficou patente que não se tratava de uma execução qualquer. Bruno Faccio, como de hábito, trabalhou bastante com o coro e as manobras ousadas do mouro sobre o tombadilho da nave em meio a uma tremenda tempestade foram retratadas com eficiência e emoção. Quando Gregory Kunde entrou no palco e entoou o Exultate confesso que me percorreu um certo frio na espinha.

Kunde vai fazer o mouro em julho no La Scala de Milão. Aqui em São Paulo mostrou o brilho de sua voz, o domínio das notas e a  capacidade de mesclar a ligeireza com o heroísmo. Otello é sem dúvida um dos papéis mais difíceis do verismo e já derrubou grandes tenores. Não é o caso. O tenor americano passeia com naturalidade sobre a partitura.

Rodrigo Esteves: perfeito como o Iago que "enrola" Otello 
O ponto alto desta produção paulistana, sem dúvida, é o barítono Rodrigo Esteves, que interpreta um Iago impressionante.

Uma palavrinha sobre este vilão. O bardo certamente colocou neste personagem todos os pecados humanos, além de uma capacidade notável de articular um desastre. Boito, ao criar o libreto, acrescentou um caráter demoníaco, quase um Mefistófeles. E Verdi acompanhou o seu libretista. É impressionante como o barítono é premiado com uma participação expressiva.

Rodrigo Esteves simplesmente brilha. Suas notas graves são perfeitas e ele impõe uma mordacidade atordoante ao personagem.

O final do segundo ato, com o dueto entre Otello (Kunde) e Iago (Esteves) está certamente entre os pontos mais altos da ópera toda. Acrescente-se a isso uma performance perfeita da orquestra e a capacidade notável de Neschling de não encobrir a voz dos cantores.

Uma palavra sobre a soprano croata Lana Kos: soberba. Sua Ave Maria foi de uma expressividade e de uma delicadeza ímpares.

Lana Kos: voz cristalina, profunda, uma Desdemona convincente
Independente da montagem , goste ou não goste de Matrix, Flash Gordon ou Star Wars, o Otello de Verdi/Boito é de muita música. De melodias extraordinárias, de uma dramaticidade intensa. Vale a pena ser vista.


Aliás, para quem não encontrar ingressos no Theatro Municipal, no dia 24, a ópera será transmitida para um cinema dos Shopping Iguatemi, de São Paulo e Brasília e São Paulo e um Cinemark, do Rio. O serviço desta transmissão será divulgado pela Prefeitura de São Paulo. Consta que eles trabalham direitinho.

segunda-feira, 2 de março de 2015

A importância de amolar as facas


Piscina do Sheraton Tel Aviv: Isaac  fez um grande carneiro, nem tão grande assim  




Odeio escrever sobre meus amigos que se vão.

Deste querido amigo, que me deixa saudades, e um gosto amargo na boca, nem se fale.

Nosso querido Isaac Corcias nos deixou.

Com ele, uma série de receitas e de improvisações gastronômicas espetaculares. Coisa de um judeu sefardi, nascido no Marrocos, que aprendeu desde criança a lidar com as especiarias e os temperos e que fez fama no bar da piscina do Sheraton Hotel de Telaviv.

Conta o Isaac que preocupado em  garantir o seu emprego como chefe do bar daquele prestigiado hotel em Israel, desenvolveu um carneiro assado, cujo perfume abria o apetite de qualquer mortal. O sucesso foi imediato, com exceção de um de seus assistentes, um jovem palestino que sentenciava implacavelmente: “Está muito bom. Mas, o do meu pai é melhor”.

Um dia, revoltado com a sentença do palestino, pela enésima vez. Isaac avisou que se o carneiro paterno era tão bom, ele fazia questão de experimentar.

No início de uma noite, saíram os dois em direção aos acampamentos palestinos. Tomaram um ônibus, venceram todas as barreiras militares, até que chegaram. Isaac foi colocado em um quarto e como estava cansado, dormiu a sono solto.

Acordou no meio da madrugada com o som de facas sendo afiadas. Olhou pela fresta da porta e viu que vários punhais, facas e facões eram amolados até adquirir um fio perfeito.  Estaria prisioneiro dos palestinos e seria descarnado vivo. Começou a lembrar que seu nome é Isaac, portanto primogênito, como o de Abrahão, patriarca tanto de árabes como de judeus. Chegou a ouvir o riso de Agar, quando já se encaminhava para o cadafalso.


Quando o cutelo subiu por sobre a sua cabeça, Isaac  abriu os olhos. Estava dormindo. Seu assistente palestino o acordava com um sorriso no rosto e o perfume do carneiro assado. O pai com uma habilidade impar fatiava o animal que girava e girava em um braseiro ávido. “Acho que nunca comi um carneiro tão bom”, costumava dizer o bom Isaac. “Pena que o velho não me deu a receita do tempero. Só me falou da importância de amolar as facas”.