sábado, 31 de março de 2012

Lembranças de um final de março




Cenário de horror em 64: militares perseguem civil no Castelo, no Rio de Janeiro




Eu tinha apenas 12 anos. Recém completados. Não entendia direito o que estava acontecendo. O rosto das pessoas parecia tenso. Meu padrinho tinha vindo lá das Gerais e minha mãe estava preocupada. Anoitecera e ele não tinha voltado do centro, onde fora em busca de material de alfaiataria.

O Zé Gabriel, meu tio, esposo da minha tia Edith, meu padrinho de batismo, tinha habilidades espantosas. Funcionário dos Correios era também juiz de futebol pelas ligas lá do Sul de Minas. Sentado numa máquina de costura, ou em pé ao lado de uma mesa, com uma tesoura, um pedaço de giz e um pedaço de pano, tinha o poder de fazer uma calça em minutos.

Meu padrinho me levou a tomar meu primeiro chopp e a fazer minha primeira barba no barbeiro, com navalha, toalha quente e tudo que eu tinha direito. Levou-me pela primeira vez a um estúdio de rádio, a Difusora de Monte Santo de Minas, onde pontificava a voz aveludada de Roberto Magno Puccia.

Mas, naquela noite, rara por ele estar em São Paulo, o Zé Gabriel não voltava. A preocupação em casa era muito grande. Minha vó, a dona Zulmira, chegou aflita e perguntou para minha mãe:

- Nenhuma notícia do Zé? E o seo Nunzio (meu pai, é claro)?

Minha mãe deu de ombros. E eu fiquei ainda mais apreensivo. Que diabos está acontecendo.

A dona Zulmira pegou uma xícara de chá, dois biscoitos champagne de uma lata e me arrastou com ela para o portão de casa. Minha mãe e minha tia Dirce foram para a janela. As pessoas passavam taciturnas pela rua. A tarde fria ia morrendo. Os operários começaram a sair das fábricas com passos apressados. Naquele crepúsculo os pardais faziam silêncio e a voz de Beniamino Giglio, que todos os dias, inundava o bairro pelos alto-falantes da Igreja São Raphael, cantando a Ave Maria, emudeceu.

- Vó que está acontecendo?

- Não sei meu filho. Não sei. Parece que mataram o Getúlio de novo.

- Que Getúlio vó? Aquele do retrato na sala? Como assim, mataram de novo?

Não tive resposta. Naquele momento, no final da rua, apontava um sujeito magro, passo apressado.

- É ele Nair. É ele. Graças a Deus!

Um sentimento de euforia perpassou toda a casa. Minha mãe e minha tia correram a passar o café. Minha vó abraçou o genro em um gesto que eu nunca havia visto.

Sentaram todos na mesa grande da sala, bule de café quente, biscoitinhos variados. Eu olhei para o retrato do Getúlio que como sempre sorria. E pensei com os meus botões:

- Em algum momento, alguém vai ter que me explicar o que está acontecendo.
Meu padrinho tomou uma xícara inteira de café. Acendeu aquele Continental sem filtro, olhou fixamente para todos e começou a falar:

- Desculpem pela aflição. Não conseguia chegar na praça Clóvis. Os militares tomaram o centro. Havia tanques na praça da Sé. Os ônibus não estavam circulando.

A narrativa do meu padrinho era intensa e eu não percebi que meu pai havia chegado. Minha mãe se aninhara assustada no seu peito e a mão esquerda dele estava sobre a minha cabeça.

- Mas, José, o que aconteceu? – perguntou o meu pai, com seu sotaque quase incompreensível.

- Comendador, o Lacerda, o Adhemar e o Magalhães Pinto traíram o Jango. Os militares vão tomar o poder.

De todos, a mais revoltada era minha vó:

- E essa pelegada sem vergonha não vai fazer nada?

Naquela madrugada, lembro-me de ter despertado com algum tumulto em casa. Meu padrinho iniciava a viagem de volta para Minas, onde a agonia da minha tia devia ser imensa.

- Vai com Deus Zé. Telegrafa quando chegar – ouvi a voz da minha vó. Minhas tias estavam chorando.

Muito tempo depois eu comecei a entender o que aquela tarde tensa representou na minha geração.

Uma coisa é certa. Havia muita gente, e aí se incluem todos os veículos de comunicação, ou quase todos, que achava que um novo tempo começava no Brasil. Era gente que temia as reformas anunciadas pelo governo: o fim dos latifúndios, o controle dos capitais estrangeiros, o voto para os analfabetos e para os soldados, proteção aos assalariados e para os inquilinos, mudanças na Educação, expropriação do sistema bancário e a volta dos padrões culturais dos modernistas de 22.

Para muita gente, o Brasil caminhava como boi num matadouro em direção ao comunismo internacional. Seria o fim das tradições e das hierarquias de saber e de poder.

Pode parecer risível hoje. Ou exagerado. Mas, foi exatamente o que aconteceu. A tal de sociedade civil, animada por banqueiros, industriais, latifundiários e pelo capital estrangeiro, chamou os militares para fazer o serviço sujo. Dar um golpe. Derrubar um governo legítimo e constitucional. Perseguir, matar e torturar toda uma geração que, por alguma razão, queria cometer a suprema ousadia de mudar o país. Quebraram a cara. Os milicos vieram para ficar e ficaram.

É bem verdade que os trabalhadores, os sindicatos, os estudantes, os camponeses, os soldados, os intelectuais, todos aqueles que sonhavam com um Brasil diferente, moderno e socialista, foram os grandes prejudicados. Mesmo fazendo um discursinho ordinário de arrependimento, a velha oligarquia brasileira se deu bem na ditadura. Encheu as burras. Alguém já se perguntou para onde foram os recursos de Itaipu, da Transamazônica, da Ferrovia do Aço, de Angra, da ponte Rio-Niteroi, etc...

O velho Lampeduza (Tomaso) tem e sempre terá razão: “É preciso mudar para que as coisas continuem do jeito que sempre foram”.

O ciclo do golpe de 64 só foi mesmo interrompido quando o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República, com o nariz torcido de muita gente, que ainda anda inconformada e reclama que tem pobre estudando em universidade, que a miséria foi enfrentada de forma efetiva, que os analfabetos votam, os soldados também, a espoliação pelo capital estrangeiro acabou, etc, etc, etc....

Ta legal, o Brasil de Lula, a América Latina de Chávez, de Kirchner, de Correa, de Morales, de Vasquez é uma resposta histórica as oligarquias que nos anos 60 e 70, para preservar o poder secular, impuseram um regime de terror e de favorecimento. Mas, não se iludam os herdeiros dos favorecidos ainda estão por aí, agrupados, organizados, travestidos em cordeiros e outros animais de plumagem colorida ou monocromática.

O meu pai e a minha vó morreram. A minha mãe está velhinha. Ainda tenho calafrios quando me lembro da angústia de todos à espera do meu padrinho, que também morreu. Não dá para repetir os mesmos erros. 

terça-feira, 27 de março de 2012

Uma lacuna no pensamento libertário

Mastroianni como dr.Pereira: despertar do torpor nos anos 30




Incrível como alguns países tem a capacidade de se colocar como alter-ego de outros. O Brasil, por exemplo, apesar de todo gigantismo tem no pequeno Uruguai uma espécie de grilo-falante a lembrar-lhe que o pavão quando olha para os pés chora. E, isso é anterior ao Maracanazo. Na Itália este papel cabe, por incrível que pareça a Portugal.

Por esta razão, a morte prematura de Antonio Tabucchi, aos 68 anos, em Lisboa, no último dia 25, foi irreparável. Historicamente italianos fizeram muito sucesso em Portugal. E dois deles, o genovês Cristóvão Colombo e o toscano Américo Vespúcio, estão na galeria dos grandes personagens da história. Ocorre-me agora que um dos maiores marcos da cristandade, Fernando Martins de Bulhões, um frade agostiniano que viveu na virada dos séculos XII e XIII, antes de ser conhecido como frei Antônio de Pádua, era Antônio de Lisboa. E foi um dos primeiros doutores da Igreja Católica Apostólica Romana.

Tabucchi: mais um italiano que se apaixonou por Pessoa
Tabuchi era filho de um vendedor de cavalos toscano. Nasceu em Pisa, em 1943 e estudou literatura em Paris na década de 60, quando se deparou com um texto em francês de Fernando Pessoa. Ficou de tal forma impressionado que tornou-se o responsável pela edição italiana de toda a obra do português.

Talvez a obra mais conhecida de Tabucchi, pelo menos no Brasil, seja “Afirma Pereira”, de 1994, editado pela Rocco, que ganhou o cinema como “Páginas da Revolução”, estrelado por um sensacional Marcelo Mastroianni, em 1996, e dirigido por Roberto Faenza.

“Afirma Pereira” é uma pequena obra prima. Trata da história de um velho jornalista que edita uma página cultural semanal em um jornal lisboeta, na segunda metade da década de 30. Vive em um permanente estado de torpor, mantido a custa de limonadas com muito açúcar, desde a viuvez. Totalmente alheio ao mundo ao seu redor, apesar dos sinais da violência do salazarismo e dos ecos da revolução espanhola que chegam a capital portuguesa, é despertado por um militante republicano italiano.

Tabuchi escreveu ainda um texto genial chamado “O senhor Pirandello é chamado ao telefone”. Nada menos do que um telefonema de Fernando Pessoa, de uma clínica psiquiátrica em Cascais. O telefonema se frustra. E Pessoa se derruba em um de seus acessos de loucura.

Claro, Pessoa é o próprio Tabucchi, e revela um conhecimento pleno de “Seis personagens a procura de um autor”e de “Um, nenhum e cem mil”. É como se o poeta português pudesse criar em cima do gênio siciliano.

Tabucchi era um crítico tremendo do período berlusconiano na Itália. Como articulista de La Reppublica e de El Pais, nunca deu trégua ao Coccodrillo. Sua morte vai deixar mais uma lacuna enorme no moderno pensamento libertário. É como se o doutor Pereira morresse outra vez.

sábado, 17 de março de 2012

É hoje, é hoje, é hoje....o circo do Pelado!

O circo de John Ringling North: o maior espetáculo da terra




O velho Nunzio, o meu pai, adorava circo. Por esta razão, eu era bem pequeno quando fomos ver o maravilhoso Circo Americano e depois o John Ringling North. Mais tarde, tive o privilégio de ver o D’River Circus em Paris e o Circo de Moscou, duas vezes, uma no ginásio do Ibirapuera e outra na sua sede na capital da Rússia.

Herdei dele a paixão pelo circo, pelo riso fácil e pela serragem do picadeiro. Um dos meus passeios preferidos, já adulto, era a visita anual ao Beto Carreiro World, em Piçarras, Santa Catarina, um festival de circo com atrações que duravam o dia inteiro. Claro que eu me apaixonei por uma malabarista quando era criança. E, como todas, eu também sonhei em ir embora com o circo e me tornar um ás sei lá de que.

O circo mexeu mesmo com a minha cabeça na pequena Pratápolis, onde um grupo de artistas reunidos numa empreitada chamada Circo do Pelado acampava por lá duas vezes por ano.

- É hoje, é hoje, é hoje, o Circo do Pelado. Venha com a família para ver a mulher barbada, a contorcionista, os malabaristas e os palhaços. Na segunda parte do espetáculo, os artistas do circo vão encenar a peça A Morte do Caixeiro Viajante. É hoje a grande estréia, do lado da matriz, as oito e meia da noite.

Se eu me lembro bem, este era o refrão que o dono do circo, ele mesmo, repetia pelas ruas da cidade mineira, a bordo de uma caminhonete velha com um sistema de som ultra-primitivo.

Eu tinha 10 anos e não me incomodava que as roupas dos artistas fossem surradas ou que o circo fosse mambembe. Eu queria me divertir e me divertia muito. Sonhava com a malabarista de coxas grossas, que parecia uma mulher imensa como Anita Ekberg. Viajava nas histórias, nos números, no som da banda ( na verdade um trombone, um trompete, um sax e um baterista executados pelos próprios empregados responsáveis por cuidar da tenda de lona).

Como papai adorava circo, sua ópera predileta era I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo.  A primeira vez que eu a vi foi numa matiné, no Teatro Municipal. Era um programa duplo com a Cavalleria Rusticana, de Pierto Mascagni, na primeira parte. Acho que eu tinha uns oito anos.

Lembro-me bem que fiquei impressionadíssimo com a massa coral e a via sacra da obra prima de Mascagni. Nada é mais siciliano do que a Cavalleria. No intervalo, o velho Nunzio divertindo-se com o meu entusiasmo, disse apenas: “Guarda um pouco para a outra. Acho que você vai gostar mais”.

E como sempre, ele tinha razão. Quando as luzes se apagaram e apareceu o rosto do Tonio entre as cortinas cantando o prólogo, eu não conseguia tirar os olhos do palco. Ainda me lembro das carroças do circo, da primeira vez que eu ouvi a ária Veste la Giuba, do pequeno prelúdio orquestral para a troca de cena e a genial concepção do desfecho da história, quando surge um picadeiro com público e tudo no palco.(Clique aqui para ver a interpretação de Luciano Pavarotti para a aria de Leoncavallo)

A montagem da última cena de Os Palhaços: um palco dentro de outro palco


Um picadeiro dentro do palco. Sinto até hoje a angústia de ver Canio e Nedda vivendo uma tremenda cena de ciúmes, enquanto o público imaginando que se tratava de uma interpretação ultra-realista, aplaudia, sem saber, que no final ele mataria a pobre Colombina. E o vozeirão do barítono que interpretava Tonio se dirigia ao público e dizia: La commedia é finita!

Os Palhaços é uma ópera das mais populares e consequentemente das mais gravadas. Pessoalmente prefiro uma gravação antiguíssima gravada em Nova York, em 1953, pela RÇA Victor, com o tenor sueco Jussi Bjorling, a soprano espanhola Victoria de Los Angeles e o barítono americano Leonard Warren (um dos maiores de todos os tempos).

Mas, é uma questão de gosto. Todos os grandes tenores e barítonos passaram por estes papeis. Há gravações maravilhosas.

Portanto, sabendo que o circo escondia um drama e que para fazer rir e entreter aquela gente sofria e muito, fiquei embasbacado quando vi no Cine Roma, pela primeira vez, O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. de Mille. Ainda mais porque eu tinha visto o circo de John Ringling North pessoalmente, ao vivo, e reconheci os palhaços e alguns dos artistas.

Outro filme que me impressionou bastante foi Trapézio, de Carol Reed, rodado no Bugliones Circus de Paris, com Toni Curtis, Burt Lancaster, Gina Lollobrigida e Katy Jurado. Até hoje, aquele final me entusiasma, com a música do circo ao fundo.

O circo do século XX é um herdeiro do teatro mambembe da idade média. Mistura habilidade, ginástica, criatividade e teatro. A incrível habilidade de contar uma história através de malabares, trapézios, palhaços e equilibristas. Cavalos, elefantes, ursos e leões. Depois de muita insistência da Nina neste final de semana fui ver o circo do século XXI, o tal de Cirque Du Soleil.

O Cirque du Soleil, o circo do século XXI: sem serragem, nem picadeiro


É um belo espetáculo! Colorido e movimentado. Mas, me deu uma sensação tão estranha. De repente as minhas lembranças pareciam estar em um tempo distinto, como se eu estivesse vivendo uma outra existência. É tudo limpo, moderno e eficiente. Organizado e asséptico. Não tem serragem. Os palhaços não usam máscaras e todo mundo usa uma fantasia que parecia, sei lá, habitantes de um jardim, incluindo-se lesmas e caracóis. A trilha sonora parecia uma mistura de música chinesa com árabe. Coisa acima e além da new age, me disseram.

Valeu à pena. Foi um belo espetáculo. Poderia ter sido feito por robôs, quem sabe. Mas, me deu uma saudade danada da malabarista de pernas grossas, que parecia linda de longe, e que de perto revelava a ausência de um dos dentes incisivos. Mas, diante da insistência do menino que eu era, ávido e curioso, me deu um sorriso, um beijo no rosto e me fez muito feliz.

Que saudades!

“É hoje, é hoje, é hoje....O circo do Pelado!” 

sexta-feira, 16 de março de 2012

Uma bala de fuzil em um pelotão de execução



A Capela de D.Bosco: junto ao colégio da Moóca





“A vida se resume a duas coisas: lidar com idiotas e administrar frustrações”.



A frase em epígrafe é de autoria do meu pupilo, amigo querido, Luciano Pires, repórter competente e lúcido, capaz de refletir sobre a existência com uma capacidade de síntese impressionante.

Dita quase como uma bala de fuzil em um pelotão de execução, poucos dias antes do meu sexagésimo aniversário, me fez concluir que ele tem razão. Absoluta razão.

Aos 60 anos, mais de 40 em percurso pelo mundo na tentativa de traduzir o frisson das idiotices para outros idiotas que perderam seu tempo na leitura ou na reflexão do que eu escrevi ou falei me veio à lembrança a imagem do padre Aristides Rocco, meu mestre, sacerdote rigoroso, que me iniciou na arte de buscar o conhecimento.

O padre Aristides era um disciplinador contumaz. Era capaz de rezar uma missa em latim – e eu o ajudei neste mister por dezenas de vezes – de costas para a igreja, e com o canto dos olhos via tudo o que acontecia nos bancos. Lembro-me de uma passagem hilária. Estávamos no momento da consagração da hóstia, eu acionava o sino, o sacerdote pronunciava as palavras:

- Dominus Obiscum et espírito tuo, Zanetti pára de fazer bagunça.

Disse isso, exatamente no momento em que se ajoelhava diante da consubstanciação do corpo de Cristo na hóstia.

Ah! Padre Aristides era jogo duro. Ele controlava a escola inteira com um sinete nas mãos. Aquele som agudo era sinal de alguma coisa errada e fazia perpassar um sentimento de horror em todos.

Um belo dia, Deus ouviu nossas preces e o instrumento quebrou. Mas, o poder do padre Aristides superava coisas triviais como a existência ou não de um sinete. Ele simulava o movimento com o dedo indicador apontado e nós ouvíamos o som do “maldito” como se ele estivesse lá.

Discípulo de São João Bosco, o padre Aristides costumava nos dizer que o conhecimento da fé cristã não servia unicamente para a contemplação, mas sim para a transformação da sociedade. Bem, eu procurei e procuro ainda seguir este ensinamento. Em todas as áreas de conhecimento.

Mas, a frase do Luciano continua a ecoar na minha cabeça.    

segunda-feira, 5 de março de 2012

Um pouco de cinema para pensar


Berenice Bejo e Jean Dujardin: astros de um filme mudo em pleno século XXI

Glória Swanson ou Norma Desmond: uma estrela superada pelo cinema falado





Não sou de me ligar muito na premiação da Academia. No passado, gostava muito do show. Ultimamente nem isso. Mas, me chamou a atenção que quando Michel Hazanavicius subiu ao palco este ano para receber o Oscar de melhor diretor por esta jóia chamada O Artista, tenha feito uma reverência ao diretor Billy Wilder.

Na verdade, para quem não sabe, trata-se de um dos mais profícuos e excepcionais diretores e roteiristas do cinema americano. Nascido Samuel, na Polônia em 1906, faleceu em 2002. Fez mais de 60 filmes, incluindo Sunset Boulevard, que levou o Oscar de roteiro original em 1950.

Pessoalmente incluo Sunset Boulevard (1950) ou Crepúsculo dos Deuses, como chamou em português, entre os três mais importantes filmes que Hollywood legou a humanidade no século XX. Em sua companhia coloco o sempre genial Cidadão Kane (1941), de Orson Wells, e Vinhas da Ira (1940), de John Ford, baseado no livro homônimo de John Steinbeck, que o levou ao Nobel de Literatura em 1962.

Crepúsculo, vamos chamá-lo assim, entretanto, é um filme que foi criado e escrito para ser um filme comum, sem maiores rapapés. Wilder vinha de um sucesso estrondoso com Farrapo Humano (1945). Na hora de selecionar os atores, apelou para seu amigo Erich Stroheim, que faz o mordomo e indicou Glória Swanson para o papel de Norma Desmond. Para o papel de Joe Gillis, sua primeira inclinação era por Monty Clift, que recusou. William Holden não filmava há tempos e acabou sendo a opção que estava à mão. Nancy Olson, que fecha o quarteto de protagonistas, era uma atriz iniciante, que jamais havia filmado.

A magia do cinema juntou um texto extraordinário com atores como Glória e Erich que interpretavam a si mesmos. Ambos viveram as glórias do cinema mudo e se o ator alemão ainda sobreviveu no genialíssimo As Cinco Covas do Egito, do mesmo Wilder, e no diametral A Grande Ilusão, de Jean Renoir, a atriz americana experimentou um ostracismo de mais de 20 anos até voltar as telas.

Curiosamente os dois foram personagens de um dos maiores fracassos da história do cinema: A Grande Rainha. Stroheim deu uma pirada, gastou uma fortuna, e o filme simplesmente não funcionou. Por sorte, quando eles se reencontraram já tinham aparado esta desgraça.

Wilder conquistou o Oscar de roteiro original, mas ganhou uma bronca tremenda de Hollywood que entendeu tratar-se de uma crítica a indústria do cinema.

Grossa bobagem! Tanto O Artista como Crepúsculo tratam de um assunto muito mais dramático. O homem sendo superado na sua competência por uma tecnologia que ele não domina. E não foi só no cinema. A revolução digital está aí para ilustrar bem esta situação.

O roteiro de Wilder tem um mérito que o de Hazanavicius não tem. Crepúsculo é contado por um personagem morto, boiando em um piscina, no número 10.000 de Sunset Boulevard. Originalmente o filme começava com um diálogo entre cadáveres na morgue de Los Angeles. Mas, no teste o diretor se incomodou porque as pessoas acharam hilário e riram muito. Era para ser apenas engraçado. Não cômico.

O Artista é uma produção franco-belga, rodado nos Estados Unidos. Entre tantos méritos tem um especial. Provoca uma grande reflexão: custou apenas US$ 15 milhões. Hugo, outro grande filme, de Martin Scorsese, custou US$ 175 milhões. Um é singelo, apóia-se na direção de arte, é mudo, tem em Jean Dujardin e Berenice Bejo dois atores excepcionais, uma grande fotografia, em preto e branco e um roteiro memorável. O outro filme tem tudo o que o cinema pode oferecer, incluindo efeitos especiais e fotografia em 3D.

Nada contra a modernidade. Mas, que é para se pensar, isso é.

domingo, 4 de março de 2012

Sobre a Copa do Mundo de 2014


Soldier Field, Chicago: abertura improvisada na Copa de 94




É simplesmente apavorante o noticiário que os jornalões publicaram neste domingo sobre a realização da Copa do Mundo de 2014, no Brasil. O secretário geral da FIFA, Jerome Valcker, disse que o governo brasileiro precisava receber um chute no traseiro, para acelerar obras e aprovar o regime geral do certame. E claro, o governo brasileiro não aceitou a deselegância. Nem podia.

Por trás, segundo alguns, há o arrependimento da FIFA de ter aceitado a candidatura do Brasil e o desejo de transferir a Copa logo para a Inglaterra.

Poderia aqui falar de várias copas do mundo que acompanhei in loco ou pelo rádio ou ainda pela TV. Mas, vou me ater a Copa de 94, nos Estados Unidos, a última em que estive presente e trabalhei para a Rede Bandeirantes e a revista IstoÉ. Quando cheguei a Miami, duas semanas antes da abertura do torneio, fiquei perplexo com a constatação de que mesmo na mais latina das cidades americanas, ninguém tinha a menor ideia de que o país abrigaria o mais importante torneio de futebol do planeta.

Quando cheguei a Dallas, no Texas, onde estava instalada a central de imprensa, rádio e televisão, o cenário era um pouco diferente. Mesmo assim, não me lembro de ter visto obras faraônicas e mesmo as instalações da central eram bem singelas, além de apresentarem um mau gosto tremendo. É verdade que esperar estilo de texanos, seria demais.

Na abertura da Copa, no Soldier Field, em Chicago, para o emocionante embate entre Alemanha e Bolívia, reinava o improviso. Para início de conversa, houve um sério problema no espaço aéreo e quando o jatinho fretado pela Bandeirantes pousou no Aeroporto de Midway, praticamente no centro da cidade, estávamos bastante atrasados. A chegada ao estádio foi outra operação de guerra. De tal forma que tivemos que abandonar os carros e seguir a pé passando por uma massa de torcedores latino-americanos que tentava acessar o estádio. Por sorte, estava acompanhado de Roberto Rivelino, que mostrou-se simpático, assinou centenas de autógrafos, pousou para uma dezena de fotos, e os próprio aficionados abriram caminho para nossa passagem.

Nossa posição na banca das emissoras de televisão também era problemática. Ao nosso lado, o locutor da rádio Caracol da Colômbia berrava e invadia o nosso áudio, o que levou o grande Luciano do Valle a uma daquelas mágicas que só os mais experientes conseguem. Ao final, a saída foi tumultuada, a mixed zone foi um caos e a sala de imprensa, totalmente improvisada, não tinha computadores nem telefones suficientes para dar vazão a um feito daquela magnitude.

Quando cheguei a Boston, também não havia nenhum sinal de que se tratava de uma sede da Copa do Mundo. Na verdade, o Foxboro Stadium, que abrigou jogos da Argentina, da Espanha e da Itália, ficava a 50 quilômetros da cidade, conectada apenas por uma linha de ônibus operada por voluntários. Não havia metro, ferrovia, VLT, nada disso.

No Giant Stadium, em Nova York, onde se jogou entre outras partidas as quartas e a semi-final,  também não havia transporte de massa. Os problemas de estacionamento eram gravíssimos e o sistema de credenciamento de jornalistas era confuso e prepotente.

O que dizer da final, em Los Angeles? Congestionamentos tremendos, confusão. A partida foi disputada a 60 quilômetros do centro, e lembro-me que o Osmar de Freitas Júnior demorou mais de seis horas para voltar.

Tá legal, os estádios brasileiros são verdadeiras armadilhas. Mas, o Beira Rio, o Mineirão, o Maracanã e o Morumbi precisariam apenas de uma boa maquiagem. A Arena da Baixada, em Curitiba, apenas que se concluíssem as obras. O Serra Dourada, que ficou de fora, também. Belém e Fortaleza possuem grande estádios que seriam adaptados com pequenas obras.

Salvador e Recife não possuem estádios adaptados, seria um problema. Nem o Arruda nem a Fonte Nova estariam em condições. Mas, uma coisa é certa, Copa do Mundo em Cuiabá, em Brasília e em Manaus, só poderia ser mesmo uma aventura sem volta.

O Brasil tem condições de fazer uma Copa do Mundo, sem dúvida, de acordo com as suas limitações e coerente com as suas possibilidades. Agora querer construir no Brasil estádios como os da Alemanha, da França ou da Itália, é um delírio que só interessa a confusão e aos bolsos dos empreiteiros.