sábado, 31 de março de 2012

Lembranças de um final de março




Cenário de horror em 64: militares perseguem civil no Castelo, no Rio de Janeiro




Eu tinha apenas 12 anos. Recém completados. Não entendia direito o que estava acontecendo. O rosto das pessoas parecia tenso. Meu padrinho tinha vindo lá das Gerais e minha mãe estava preocupada. Anoitecera e ele não tinha voltado do centro, onde fora em busca de material de alfaiataria.

O Zé Gabriel, meu tio, esposo da minha tia Edith, meu padrinho de batismo, tinha habilidades espantosas. Funcionário dos Correios era também juiz de futebol pelas ligas lá do Sul de Minas. Sentado numa máquina de costura, ou em pé ao lado de uma mesa, com uma tesoura, um pedaço de giz e um pedaço de pano, tinha o poder de fazer uma calça em minutos.

Meu padrinho me levou a tomar meu primeiro chopp e a fazer minha primeira barba no barbeiro, com navalha, toalha quente e tudo que eu tinha direito. Levou-me pela primeira vez a um estúdio de rádio, a Difusora de Monte Santo de Minas, onde pontificava a voz aveludada de Roberto Magno Puccia.

Mas, naquela noite, rara por ele estar em São Paulo, o Zé Gabriel não voltava. A preocupação em casa era muito grande. Minha vó, a dona Zulmira, chegou aflita e perguntou para minha mãe:

- Nenhuma notícia do Zé? E o seo Nunzio (meu pai, é claro)?

Minha mãe deu de ombros. E eu fiquei ainda mais apreensivo. Que diabos está acontecendo.

A dona Zulmira pegou uma xícara de chá, dois biscoitos champagne de uma lata e me arrastou com ela para o portão de casa. Minha mãe e minha tia Dirce foram para a janela. As pessoas passavam taciturnas pela rua. A tarde fria ia morrendo. Os operários começaram a sair das fábricas com passos apressados. Naquele crepúsculo os pardais faziam silêncio e a voz de Beniamino Giglio, que todos os dias, inundava o bairro pelos alto-falantes da Igreja São Raphael, cantando a Ave Maria, emudeceu.

- Vó que está acontecendo?

- Não sei meu filho. Não sei. Parece que mataram o Getúlio de novo.

- Que Getúlio vó? Aquele do retrato na sala? Como assim, mataram de novo?

Não tive resposta. Naquele momento, no final da rua, apontava um sujeito magro, passo apressado.

- É ele Nair. É ele. Graças a Deus!

Um sentimento de euforia perpassou toda a casa. Minha mãe e minha tia correram a passar o café. Minha vó abraçou o genro em um gesto que eu nunca havia visto.

Sentaram todos na mesa grande da sala, bule de café quente, biscoitinhos variados. Eu olhei para o retrato do Getúlio que como sempre sorria. E pensei com os meus botões:

- Em algum momento, alguém vai ter que me explicar o que está acontecendo.
Meu padrinho tomou uma xícara inteira de café. Acendeu aquele Continental sem filtro, olhou fixamente para todos e começou a falar:

- Desculpem pela aflição. Não conseguia chegar na praça Clóvis. Os militares tomaram o centro. Havia tanques na praça da Sé. Os ônibus não estavam circulando.

A narrativa do meu padrinho era intensa e eu não percebi que meu pai havia chegado. Minha mãe se aninhara assustada no seu peito e a mão esquerda dele estava sobre a minha cabeça.

- Mas, José, o que aconteceu? – perguntou o meu pai, com seu sotaque quase incompreensível.

- Comendador, o Lacerda, o Adhemar e o Magalhães Pinto traíram o Jango. Os militares vão tomar o poder.

De todos, a mais revoltada era minha vó:

- E essa pelegada sem vergonha não vai fazer nada?

Naquela madrugada, lembro-me de ter despertado com algum tumulto em casa. Meu padrinho iniciava a viagem de volta para Minas, onde a agonia da minha tia devia ser imensa.

- Vai com Deus Zé. Telegrafa quando chegar – ouvi a voz da minha vó. Minhas tias estavam chorando.

Muito tempo depois eu comecei a entender o que aquela tarde tensa representou na minha geração.

Uma coisa é certa. Havia muita gente, e aí se incluem todos os veículos de comunicação, ou quase todos, que achava que um novo tempo começava no Brasil. Era gente que temia as reformas anunciadas pelo governo: o fim dos latifúndios, o controle dos capitais estrangeiros, o voto para os analfabetos e para os soldados, proteção aos assalariados e para os inquilinos, mudanças na Educação, expropriação do sistema bancário e a volta dos padrões culturais dos modernistas de 22.

Para muita gente, o Brasil caminhava como boi num matadouro em direção ao comunismo internacional. Seria o fim das tradições e das hierarquias de saber e de poder.

Pode parecer risível hoje. Ou exagerado. Mas, foi exatamente o que aconteceu. A tal de sociedade civil, animada por banqueiros, industriais, latifundiários e pelo capital estrangeiro, chamou os militares para fazer o serviço sujo. Dar um golpe. Derrubar um governo legítimo e constitucional. Perseguir, matar e torturar toda uma geração que, por alguma razão, queria cometer a suprema ousadia de mudar o país. Quebraram a cara. Os milicos vieram para ficar e ficaram.

É bem verdade que os trabalhadores, os sindicatos, os estudantes, os camponeses, os soldados, os intelectuais, todos aqueles que sonhavam com um Brasil diferente, moderno e socialista, foram os grandes prejudicados. Mesmo fazendo um discursinho ordinário de arrependimento, a velha oligarquia brasileira se deu bem na ditadura. Encheu as burras. Alguém já se perguntou para onde foram os recursos de Itaipu, da Transamazônica, da Ferrovia do Aço, de Angra, da ponte Rio-Niteroi, etc...

O velho Lampeduza (Tomaso) tem e sempre terá razão: “É preciso mudar para que as coisas continuem do jeito que sempre foram”.

O ciclo do golpe de 64 só foi mesmo interrompido quando o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República, com o nariz torcido de muita gente, que ainda anda inconformada e reclama que tem pobre estudando em universidade, que a miséria foi enfrentada de forma efetiva, que os analfabetos votam, os soldados também, a espoliação pelo capital estrangeiro acabou, etc, etc, etc....

Ta legal, o Brasil de Lula, a América Latina de Chávez, de Kirchner, de Correa, de Morales, de Vasquez é uma resposta histórica as oligarquias que nos anos 60 e 70, para preservar o poder secular, impuseram um regime de terror e de favorecimento. Mas, não se iludam os herdeiros dos favorecidos ainda estão por aí, agrupados, organizados, travestidos em cordeiros e outros animais de plumagem colorida ou monocromática.

O meu pai e a minha vó morreram. A minha mãe está velhinha. Ainda tenho calafrios quando me lembro da angústia de todos à espera do meu padrinho, que também morreu. Não dá para repetir os mesmos erros. 

3 comentários:

  1. Chefe, gosto muito dos seus textos, principalmente desses com tanta história. É emocionante, envolvente e me faz perceber a política de outro jeito, a política que afeta o cotidiano, que não está só nos livros de História. Esse me lembrou um pouco o Anarquistas, graças a Deus, que eu adoro. Beijão.

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