sábado, 3 de maio de 2014

Somos todos responsáveis



Massacre em Ruanda: a diferença de outros similares é que poderia ter sido evitado






Ter nascido no ano de 1952 me coloca na chamada geração pós-bomba atômica. Mais precisamente aquela atrocidade descomunal perpetrada no final da segunda guerra mundial, quando os americanos lançaram dois artefatos nucleares contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki, na manhã de 6 de agosto de 1945. Também me coloca à margem da desgraça perpetrada pelos alemães, nazistas e não nazistas, contra cinco milhões de judeus europeus. Dizimados nos campos de concentração espalhados pela Europa ocupada.
Não há Cristo que me faça entender onde estava o resto da humanidade quando estas desgraças ocorreram. A desculpa do desconhecimento e de que eram atos praticados de ou durante a guerra, também não cola. Mesmo num conflito sangrento de proporções jamais vistas e que só na União Soviética dizimou mais de 20 milhões de soldados e não soldados, há limites de humanidade. Nem os judeus europeus se constituíam num exército de resistência a sanha nazista, nem a população civil das cidades japonesas, praticamente dizimadas, poderia ser responsabilizada pela ação dos militares de seu país.
Mas, a minha geração não tem como escapar da vergonha de ter se omitido de forma criminosa do genocídio de Ruanda, em 1994. Assistimos impávidos à execução pura e simples de mais de 2,5 milhões de pessoas da etnia tutsi, entre crianças e adultos, sem que a comunidade internacional tivesse mexido um dedo sequer. Quem quiser se aprofundar mais nos fatos que tomaram aquele longínquo e esquecido país africano, corra até uma locadora ou baixe na internet o filme Hotel Ruanda, que conta a história de Paul Rusesabagina, gerente do hotel belga das Mil Colinas, que revestido de uma bravura rara, salvou mais de um milhar de tutsis, incluindo sua esposa.
Demétrio Magnoli em notável artigo publicado na Folha de hoje, 3 de maio, é muito feliz em sua assertiva: “....as matanças em Ruanda atingiam o apogeu, desenhando os contornos de um genocídio comparável ao promovido por Pol Pot no Camboja, duas décadas antes. A diferença crucial é que, no país africano, as potências podiam evitar a catástrofe, se não tivessem escolhido olhar para o outro lado”.
Alguém dirá: “Isso faz diferença¿” Faz sim. Toda a diferença. Não se proteste inocência a barbárie praticada pelos americanos no Vietnam. Ou pelos malucos polpotinianos no Camboja. Ou ainda pelos paramilitares em El Salvador. Ou por árabes, judeus, afegãos, russos, turcos, sérvios, franceses. O século XX foi um dos períodos históricos mais sangrentos da história da humanidade. Mas, não se trata aqui de discutir volume. A questão é que o massacre de Ruanda poderia ter sido evitado.
No dia 3 de maio de 1994, o presidente Bill Clinton assinou uma ordem executiva que limitava o envolvimento dos Estados Unidos em missões de paz: forças americanas só seriam engajadas em operações associadas a um interesse nacional vital. A cronologia da desfaçatez é impressionante: na noite de 9 de abril, tropas francesas e belgas aterrissaram em solo ruandês para evacuar seus nacionais do país. No dia 21 de abril, o Conselho de Segurança da ONU votou de forma unânime pela redução do contingente das Nações Unidas, de 2,5 mil para 270 soldados.
Magnoli tem razão de novo quando diz que a França, a mesma dos massacres na Argélia, da República de Vichy, e de outros episódios semelhantes, estava envolvida até a cabeça e tinha perfeita consciência do que estava acontecendo. Há anos militares franceses colaboravam com o governo hutu, contra a guerrilha tutsi baseada em Uganda.  Na cabeça privilegiada destes senhores, os tutsis representavam o poderio anglófono da  África e uma ameaça ao poderio neocolonial francófono.
Bobagem como esta custou a vida de mais de 2,5 milhões de pessoas! Dificil conviver com isso.
O confronto entre hutus e tutsis é histórico e remonta a um episódio glorioso da história da humanidade. Quando Moisés libertou os judeus do Egito, libertou também um contingente de escravos não-judeus, que decidiu não cruzar o Mar Vermelho, mas embrenhar-se pela África em busca de terras fertéis além do deserto do Saara.
Evoluídos pela convivência com a civilização egípcia, estes ex-escravos dominavam técnicas de comércio e de agricultura. Quando chegaram a África Equatorial trombaram com populações nativas, ainda ligadas ao extrativismo.
Isso foi a quatro mil anos. De lá para cá, hutus e tutsis se revezaram no protagonismo da dominação. Não raro com massacres, guerras de extermínio, práticas de escravidão e assim por diante. Passaram a praticar um dualismo macabro, ditado por um ódio recíproco.

Histórias como essa que contrapõem dois povos, animados por interesses econômicos, diferenças cuturais ou simplesmente inveja existem em praticamente todos os continentes, desde que Caim matou Abel. Mas este, no coração da África, no limiar do século XXI, desgraçadamente poderia ter sido evitado e não o foi. E não temos como fugir a esta responsabilidade histórica. Somos todos responsáveis.   

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