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Massacre em Ruanda: a diferença de outros similares é que poderia ter sido evitado |
Ter nascido no ano de 1952
me coloca na chamada geração pós-bomba atômica. Mais precisamente aquela
atrocidade descomunal perpetrada no final da segunda guerra mundial, quando os
americanos lançaram dois artefatos nucleares contra as cidades de Hiroshima e
Nagasaki, na manhã de 6 de agosto de 1945. Também me coloca à margem da
desgraça perpetrada pelos alemães, nazistas e não nazistas, contra cinco milhões
de judeus europeus. Dizimados nos campos de concentração espalhados pela Europa
ocupada.
Não há Cristo que me faça
entender onde estava o resto da humanidade quando estas desgraças ocorreram. A
desculpa do desconhecimento e de que eram atos praticados de ou durante a
guerra, também não cola. Mesmo num conflito sangrento de proporções jamais
vistas e que só na União Soviética dizimou mais de 20 milhões de soldados e não
soldados, há limites de humanidade. Nem os judeus europeus se constituíam num
exército de resistência a sanha nazista, nem a população civil das cidades
japonesas, praticamente dizimadas, poderia ser responsabilizada pela ação dos
militares de seu país.
Mas, a minha geração não
tem como escapar da vergonha de ter se omitido de forma criminosa do genocídio de
Ruanda, em 1994. Assistimos impávidos à execução pura e simples de mais de 2,5
milhões de pessoas da etnia tutsi, entre crianças e adultos, sem que a
comunidade internacional tivesse mexido um dedo sequer. Quem quiser se
aprofundar mais nos fatos que tomaram aquele longínquo e esquecido país
africano, corra até uma locadora ou baixe na internet o filme Hotel Ruanda, que
conta a história de Paul Rusesabagina, gerente do hotel belga das Mil Colinas,
que revestido de uma bravura rara, salvou mais de um milhar de tutsis,
incluindo sua esposa.
Demétrio Magnoli em
notável artigo publicado na Folha de hoje, 3 de maio, é muito feliz em sua
assertiva: “....as matanças em Ruanda atingiam o apogeu, desenhando os
contornos de um genocídio comparável ao promovido por Pol Pot no Camboja, duas
décadas antes. A diferença crucial é que, no país africano, as potências podiam
evitar a catástrofe, se não tivessem escolhido olhar para o outro lado”.
Alguém dirá: “Isso faz
diferença¿” Faz sim. Toda a diferença. Não se proteste inocência a barbárie praticada
pelos americanos no Vietnam. Ou pelos malucos polpotinianos no Camboja. Ou
ainda pelos paramilitares em El Salvador. Ou por árabes, judeus, afegãos,
russos, turcos, sérvios, franceses. O século XX foi um dos períodos históricos mais
sangrentos da história da humanidade. Mas, não se trata aqui de discutir
volume. A questão é que o massacre de Ruanda poderia ter sido evitado.
No dia 3 de maio de 1994,
o presidente Bill Clinton assinou uma ordem executiva que limitava o
envolvimento dos Estados Unidos em missões de paz: forças americanas só seriam
engajadas em operações associadas a um interesse nacional vital. A cronologia
da desfaçatez é impressionante: na noite de 9 de abril, tropas francesas e
belgas aterrissaram em solo ruandês para evacuar seus nacionais do país. No dia
21 de abril, o Conselho de Segurança da ONU votou de forma unânime pela redução
do contingente das Nações Unidas, de 2,5 mil para 270 soldados.
Magnoli tem razão de novo
quando diz que a França, a mesma dos massacres na Argélia, da República de
Vichy, e de outros episódios semelhantes, estava envolvida até a cabeça e tinha
perfeita consciência do que estava acontecendo. Há anos militares franceses
colaboravam com o governo hutu, contra a guerrilha tutsi baseada em
Uganda. Na cabeça privilegiada destes
senhores, os tutsis representavam o poderio anglófono da África e uma ameaça ao poderio neocolonial francófono.
Bobagem como esta custou a
vida de mais de 2,5 milhões de pessoas! Dificil conviver com isso.
O confronto entre hutus e
tutsis é histórico e remonta a um episódio glorioso da história da humanidade.
Quando Moisés libertou os judeus do Egito, libertou também um contingente de
escravos não-judeus, que decidiu não cruzar o Mar Vermelho, mas embrenhar-se
pela África em busca de terras fertéis além do deserto do Saara.
Evoluídos pela convivência
com a civilização egípcia, estes ex-escravos dominavam técnicas de comércio e
de agricultura. Quando chegaram a África Equatorial trombaram com populações
nativas, ainda ligadas ao extrativismo.
Isso foi a quatro mil
anos. De lá para cá, hutus e tutsis se revezaram no protagonismo da dominação.
Não raro com massacres, guerras de extermínio, práticas de escravidão e assim
por diante. Passaram a praticar um dualismo macabro, ditado por um ódio
recíproco.
Histórias como essa que
contrapõem dois povos, animados por interesses econômicos, diferenças cuturais
ou simplesmente inveja existem em praticamente todos os continentes, desde que
Caim matou Abel. Mas este, no coração da África, no limiar do século XXI, desgraçadamente
poderia ter sido evitado e não o foi. E não temos como fugir a esta
responsabilidade histórica. Somos todos responsáveis.
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