![]() |
Carmem de Bizet, final do primeiro ato: Rinat Sharan e Thiago Arancam |
Mesmo quem torce o nariz
para as habaneras, seguidillas e barcarolas da Carmem, concorda num ponto: Georges Bizet era um baita compositor,
daqueles privilegiados e inspirados capaz de tornar o novo habitual e imperceptível
e o comum, extraordinário.
Mesmo nesta tão popular
história da cigana malvada, há momentos que merecem a contemplação de quem
trata os ouvidos com algum carinho. Veja-se, por exemplo, o quinteto do segundo
ato. Leveza, sinfonismo e originalidade. Ou ainda as duas árias da Micaela no
primeiro e no terceiro ato. E, é claro, o dueto final cheio de referências
musicais, marcado por um revival de motivos.
Carmem,
Traviata e o Barbeiro de
Sevilha compõem o trio mais popular do mundo lírico. Sempre tem alguém, em
alguma parte do mundo, fazendo uma das três. E é claro que o fato de algumas de
suas melodias serem facilmente assobiadas não desmerece a genialidade contida.
Bizet se encantou
sobremaneira com o romance de Prosper Mérimé sobre um triângulo amoroso
envolvendo um soldado, uma cigana e um toureiro. Dois anos antes, em 1873, ele
havia amargado críticas pontuais ao libreto de Pescadores de Pérolas, escrito por Eugéne Cormon e Michel Carré.
Por isso mesmo, viu com otimismo quando o libreto de Carmem foi encomendado a Henri Meihac e Ludovic Halévy. Os dois faziam muito sucesso com outro
compositor, Jacques Offenbach, o queridinho da Ópera de Paris.
A história de Mérimé foi
bastante aliviada e resumiu-se a um militar caipira, uma cigana malvada e
sedutora, um toureiro convencido e uma pobre coitada que vai e volta com
recados da mãe do soldado e que, surpreendentemente, no terceiro ato aparece
num acampamento de contrabandistas em meio às montanhas de Navarra.
Descoladinha esta menina!
Aliás, parece que só os
aduaneiros e os policiais não sabiam do acampamento dos contrabandistas, porque
o toureiro também aparece por lá. Motivado por um amor incontrolável, segundo
ele mesmo, que transformaria os perigos eventuais em uma gloriosa aventura.
![]() |
Rodrigo Esteves: a famosa ária do Toureiro no segundo ato |
Bizet salvou a história
com a sua música. O coro feminino do primeiro ato, chamado das Cigarreiras, é
um exemplo disso. A sensualidade da música encobre o absurdo da cena.
Numa sociedade hipócrita
como a parisiense pós-guerra franco-prussiana, a estréia de Carmem fracassou
redondamente. Claro que a história incomodou. A cigana proclama a liberdade do
seu coração e ainda avisa: se você se apaixonar por mim, problema seu, mas se
eu me apaixonar por você, cuide-se.
Bizet ficou profundamente
deprimido. Não teve o beneplácito nem do reconhecimento de sua música. Acabou
falecendo em junho daquele ano, 1875, aos 37 anos de idade. Em outubro,
curiosamente a mesma ópera foi levada em Viena, com a presença de gênios tão
opostos como Wagner e Brahms, e unanimemente consagrada.
A força popular da Carmem
de Bizet pode ser medida pelo sucesso que está provocando em São Paulo. Nada
menos do que 13 mil ingressos vendidos para oito récitas.
O maestro John Neschling
trabalha duro para criar no Theatro Municipal de São Paulo um padrão de
excelência, voltado, sobretudo, para a ópera. E tem sido muito bem sucedido.
Neste ano, ele amealhou um sucesso inimaginável com dois títulos de Verdi, Il Trovatore e Falstaff. E apostou numa montagem de Carmem totalmente inusitada, criada por Fellipo Tonon, que
ambientou a ação no final do século XIX e pontuou a influência da revolução
industrial.
Não só funcionou, como
surpreendeu.
O quarteto do primeiro
elenco formado pela mezzo-soprano israelense Rinat Sharan, pelo tenor brasileiro Thiago Arancam, pelo barítono,
também brasileiro, Rodrigo Esteves e pela soprano croata Lana Kos, está
irrepreensível. A competência da Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência
do maestro espanhol Ramón Tebar, e do Coral Lírico conduzido com maestria por Bruno
Facio, garantiram um espetáculo admirável.
Difícil arrumar um lugar
em uma das sete récitas que concluem a apresentação. Melhor se garantir para Salomé, de Richard Strauss, em agosto,
ou para a curta temporada de concertos de junho/julho, quando o próprio
Neschling volta para o pódio e vai encarar a Terceira de Mahler e o Zarathrusta
de Strauss, entre outras peças.
Nenhum comentário:
Postar um comentário