![]() |
Toni Servillo, como Gap Gambardelli: filme de Sorrentino é uma pancada |
Fim de semana de múltiplas
apreensões. Enquanto a cidade – quem diria – dá vazão a sua verve carnavalesca
com dezenas de blocos nas ruas, um grupelho de mil manifestantes, aparentemente
contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil tumultua as ruas,
depreda agências bancárias e o patrimônio público como lixeiras e orelhões.
O mundo está mesmo
confuso. Reina um mau humor tremendo, uma inconformidade inexplicável. Na
Venezuela, setores de classe média decidiram confrontar o governo do presidente
Nicolas Maduro. Uma menininha a bordo de seus 17 ou 18 aninhos, loira como
personagem de A Noviça Rebelde diz
que não viu ou viveu o seu pais no passado. Mas, que ouvira de seus pais que
era um país lindo (sic).
Lindo para quem¿
Não consigo, nem tenho a
pretensão de entender o que se passa na Ucrânia. Mas, salta aos olhos que “as ruas”,
como ocorreu na primavera árabe, inconformadas, reverteram decisões
institucionais. Colocaram em xeque governos e governantes, etc, etc, etc....
Bem, a Primavera Árabe
revelou-se um Inverno Árabe. É só ver o que aconteceu com o Egito.
Já-já vamos comemorar os
50 anos da Redentora. E até onde eu me lembro, a classe média também foi para
as ruas para defender o país da ameaça comunista, com Deus pela Família e pela
Propriedade.
Claro, a direita defende a
balburdia no quintal dos outros: as manifestações em Caracas são legítimas. No
Brasil, nem tanto. A esquerda faz o caminho contrário.
Recentemente, instado pela
colega Joon, vi o filme de Paolo Sorrentino, A Grande Beleza. Candidato italiano ao Oscar de filme estrangeiro.
Não sei se Sorrentino
tinha a intenção de explicar o mundo contemporâneo, ou apenas contar uma
história. Mas, que pancada!
O personagem principal, um
jornalista de 65 anos, de nome Gap Gambardelli, habitue das rodas da classe
média romana, simplesmente destrói com uma ironia e um sarcasmo inigualável não
só tudo ao seu redor como os últimos 50 anos da vida romana, vale dizer do
mundo ocidental. Não sobra pedra sobre pedra.
Gambardelli, na minha
opinião, é o mesmo personagem de Fellini em La
Dolce Vita, em Oito e Meio e, em
menor escala, em Cidade das Mulheres.
Mas, agora, envelhecido, ele mostra o sexismo dos tempos atuais, o vazio dos
discursos da classe média, a caricatura dos personagens vivos que estão ao
nosso lado e o nada, absolutamente nada, que ressurge da reflexão neste mar de
mediocridade do século XXI.
Alguns momentos são
inesquecíveis: a atriz que se lança contra uma pedra e de rosto sangrando se
dirige a plateia aos gritos de “Eu me odeio”. Mais tarde, confrontada pelo
jornalista que queria entender a sua motivação diz: “Tenho uma vibração
interior”.
Muito bem, diz o
jornalista. Mas, que vibração é essa¿ Gambardelli insiste, mas não consegue
arrancar um único suspiro racional.
Outro personagem notável é
o cardeal que só consegue se expressar através de receitas culinárias, que ele
recitava como um mantra.
E, finalmente, a mais
hilária e comum de todas: a personagem burguesa que defende sua militância
esquerdista e a publicação de diversos livros sobre o movimento operário
italiano: “Stephania querida. Nós gostamos muito de você. E nunca confrontamos
o seu desempenho progressista. Mas, vamos combinar que seus livros são ruins e
que você só os publicou porque era amante do editor”.
Sorrrentino tirou meu
sono. Não porque tenha feito uma revelação. Mas, porque organizou numa história
ambientada no cenário mais bonito do mundo, a cidade de Roma, o desastre
absoluto de um mundo de faz-de-conta, cujas referências se desmancham a um simples sopro racional.
Gambardelli lembrou-me uma
passagem curiosa que eu vivi em Helsinque, em meados dos anos 90. A capital da
Finlândia é uma cidade fria, cinza, como de resto o país inteiro, parece uma
maquete de trem elétrico, onde tudo funciona azeitadinho, direitinho. Um saco!
A única nota fora do
diapasão era uma boate, que explodia durante a noite com a apresentação de uma
bomba sexual chamada Anita, vendida como brasileira, cujas fotos difundidas por
toda a cidade e todos os hotéis, mostravam uma negra escultural, de formas
delirantes e generosas. Decidi conferir
os poderes da minha compatriota, até porque imaginei que poderia haver uma boa
história ai.
De fato, a boate
fervilhava. Havia uma ansiedade incontida no rosto de homens e mulheres que se aglomeravam
no ambiente. Aquele sorriso cúmplice de quem estava rompendo a barreira do
permitido e do proibido.
Por fim, depois de litros
e litros de álcool e outras cositas mas, servidos nas mesas e nos balcões, apareceu
a moça. Definitivamente linda. Suas formas não eram tão esculturais, nem tão
generosas como a propaganda fazia crer. E sua performance não acrescentava nada
que não pudesse ser visto num cabaré brasileiro qualquer.
A moça se esforçava e
muito, com caras e bocas, e se enrolava naquele pau de sebo de uma maneira
quase anti-natural. Chegar até ela
depois de duas de suas performances, quando a noite já acabava, não foi nada
fácil. Mesmo tendo me identificado como jornalista italiano, o que o meu nome,
para um gerente finlandês, era um atestado suficiente.
A tal Anita, num primeiro
momento, em uma cena perfeitamente ensaiada, respondia em inglês atrás de um
biombo em seu camarim, as obviedades previsíveis. Que havia nascido em uma
favela no Rio, que a sensualidade era natural nas mulheres brasileiras e assim
por diante.
Tinha a sensação de estar
falando com uma máquina. Foi quando decidi perguntar em português: “Mas, que
diabos uma negra carioca está fazendo aqui no fim-do-mundo¿”
Olhei para os seguranças
que permaneciam à porta do camarim e eles continuavam impassíveis. O silêncio
que vinha de trás do biombo era prenúncio de um desastre. De repente, o monstro
brasileiro do sexo apareceu como se fosse uma criança surpreendida em sua
traquinagem e me respondeu em espanhol: “Voce é brasileiro, não é¿”
A partir daí veio a
história real: ela era caribenha, nunca tinha colocado os pés no Brasil, como
tantas meninas, bem dotadas ou nem tão dotadas, havia deixado a terra natal
para se prostituir na Europa. Um inglês louco havia tirado ela das ruas, criado
um personagem para ela, treinado a sua performance, e desde então ela fazia
muito sucesso no Bas-Fond de países nórdicos. Com os olhos cheios de lagrimas,
ela me disse que depois do inferno das ruas, ela levava agora uma vida digamos
menos atribulada. Ganhava muito dinheiro e dizia que o único equipamento que
ela possuía era o próprio corpo, que usado de forma apropriada e apoiado em
alguma campanha de marketing e muito diz-que-diz, trabalhava com a imaginação
de homens e mulheres.
“Voce gostou da minha
apresentação¿”
Gostei muito, respondi.
Você é linda. Desculpe ter me metido na sua vida.
Sai da boate e fui
caminhando umas seis quadras até o hotel onde estava hospedado. Fazia muito
frio, coisa de cinco graus abaixo de zero. Alguns flocos de neve pareciam
pendurados no ar. Que diferença fazia o fato de Anita ter nascido em Trinidad
ou no Rio. Nada disso interferiria na realidade de ninguém.
Muitos anos antes, tive
meu momento de Gambardelli. Mas, só agora, depois de ver o filme de Sorrentino,
ficou claro para mim que a resposta de tudo está na origem, nas raízes que nos
alimentam.
Quanto ao mundo, vai se
alimentar da ficção e dos factoides, e continuará mergulhado na sua própria
mediocridade.