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Mahler e Strauss: tuneis da mesma montanha que se encontraram |
Talvez uma das perguntas
mais frequentes de neófitos de uma maneira geral seja: o que aconteceu com a
música depois dos impressionistas¿ Por que aquela febril produção do fim do
século XIX e que seguiu até os anos 30 foi interrompida¿
A resposta mais competente
está em um livro brilhante de Alex Ross chamado “O Resto é Ruído – Escutando o
século XX”, da Companhia das Letras. Ross é um crítico musical americano
(trabalha na New Yorker) que nasceu em 1968. Este é o seu primeiro livro e foi
finalista ao Prêmio Pulitzer de 2008.
É brilhante a contraposição
que abre o trabalho: Mahler de um lado e Richard Strauss de outro. Também é
muito feliz a definição de que a música do século XX começa com aquele acorde
da clarineta que se desmancha no acender das luzes da Salomé.
Não há como negar que
Gustav Mahler carregava consigo os estertores de um mundo que desabaria. Neste
sentido, nada é mais emblemático do que o ciclo Das Lied Von der Erde, uma de
suas últimas composições, apoiada em poesias chinesas adaptadas para o alemão
por Hans Bethge.
Mahler nunca regeu este
ciclo. Morreu antes em 1911. A estreia coube ao maestro Bruno Walter, seu
aluno, apenas em 1912. A última canção, Farewell, escrita originalmente por
Mong-Kao-Ken e Wang Wei, a mais longa do ciclo com mais de 20 minutos, é uma
despedida da terra, do planeta. Não só do compositor. Não é uma profecia de que
o mundo iria mudar, que não haveria mais lugar para o romantismo tardio. É uma
sentença.
Gostaria de dizer que
existem dezenas de gravações da Canção da Terra, mas nunca ouvi nada mais
perfeito que uma gravação de 1952 ( o ano em que eu nasci), com a contralto
britânica Kathleen Ferrier, o tenor Julius Patzak e a Filarmônica de Viena
regida por Bruno Walter.
Se este era o testamento
do antigo, o manifesto do novo ocorreu seis anos antes, no dia 16 de maio de
1906, na cidade austríaca de Graz. Para lá acorreram todas as cabeças coroadas
da música europeia, como diz Ross. Giacomo Puccini, o próprio Mahler, o jovem Arnold
Schomberg, Alban Berg, entre outros. Cinco meses antes, Strauss havia passado
dos limites com a apresentação de uma ópera escrita sobre um tema bíblico,
ultradissonante, baseada numa peça de um degenerado irlandês, cujo nome não se
mencionava em sociedade. Uma obra que inspirava tamanho horror ao retratar a
lascívia adolescente que os censores imperiais a baniram da Corte de Viena.
Poderia haver propaganda
melhor¿ Uma multidão acorreu a pequena Graz, provinciana e pequena cidade do
interior da Áustria.
Na tarde que antecedeu a estreia
Strauss e Mahler passaram a tarde caminhando nas colinas próximas da cidade.
Almoçaram incógnitos em uma taberna. Strauss tinha 41 anos. Mahler 45. “Strauss
e eu cavamos um túnel a partir de lados opostos da montanha. Um dia nos
encontraremos” – disse Mahler antes de morrer.
Mahler, como de resto
todos no Stadt Theater da provinciana Graz, ficaram maravilhados com Salomé.
Era o início de um novo tempo. O limiar de uma nova era. O mundo começava a se
preparar para o Pelleas de Debussy ou a Sagração de Stravinsky. Não sei precisar
quem foi o gênio, talvez o próprio Schomberg, que chegou a brilhante conclusão
de que a música do século XX não faria concessões comerciais ou melódicas. Não
teria apelo popular e não se preocuparia em se fazer entender por ouvidos
despreparados para, por exemplo, o duodecafonismo.
Vale dizer que para estes
senhores, o realismo socialista de Prokofiev e Shostakovitch, se resumia a
música popular, contratada pelo governo central de Moscou.
Vamos combinar¿ Uma
pretensiosa e vergonhosa bobagem.
Pois o século XX se
dividiria nestas duas correntes, os primitivos e os sofisticados, os harmônicos
e os desarmônicos, os populares e os inacessíveis. O jazz negro americano tomou
o mundo com seus improvisos arrojados. Duas guerras (sobretudo a primeira)
liquidaram com a arrogância austríaca e depois alemã. Compositores americanos,
latino-americanos, soviéticos, o folclore, o nacionalismo, o neo-classicismo,
tudo isso rolou de forma impiedosa e massacrante.
Emblemático também é o
fato de que Richard Strauss compôs aproximadamente 200 canções ao longo de sua
carreira. E que entre a primavera e o outono de 1948 ele tenha composto quatro,
três delas com texto de Herman Hesse e a quarta de Joseph Von Eichendorff, como
epílogo de sua vida. Mais curioso ainda é que nestas obras absurdamente
maravilhosas, ele tenha retomado a escrita romântica alemã.
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Ainadamar (acima) e Um Homem Só: século XXI e século XX |
Nesta semana, o Theatro Municipal de São Paulo conclui as seis récitas de duas óperas modernas, apresentadas na mesma noite. Um Homem Só, de Camargo Guarnieri, de 1972, e Ainadamar do argentino Osvaldo Golijov, de 2003.
Golijov parece apontar
para um novo futuro. Sua ópera conta a história do assassinato do escritor
espanhol Federico Garcia Lorca pela falange franquista. É um espetáculo
completo, com balé, flamenco, sapateado, jogo de luzes, sons eletrônicos (há
até um solo para lap-top), violão flamenco e percussão latina. Os cantores são
exigidos no limite de suas competências. O contra-tenor italiano Luigi Schifano
e as sopranos Marisu Pavon (argentina) e Camila
Titinger (brasileira) estiveram perfeitas. A Orquestra Sinfônica
Municipal, sob a regência de Rodolfo Fischer e Eduardo Strausser, para variar,
esteve maravilhosa.
Por outro lado, a
partitura de Guarnieri e bem mais sofisticada e exigente do que a de Golijov.
Menos pirotécnica, exige dos músicos, o tema básico de José Pires de Assunção,
o acorde de três oitavas do piccolo e do fagote, é precioso. O dueto e cena de
amor de José e Rita é praticamente a ópera inteira. O libreto de Gianfrancisco
Guarnieri, infelizmente, é bem datado.
Rodrigo Esteves e Luciana
Bueno estiveram perfeitos.
Uma ressalva aqui para o
trabalho do nosso maestro do coro, Bruno Facio. Impressionante. O polifonismo
de Guarnieri, com coro misto, e a forma delicada com que ele trabalhou as 12
cantoras (narradoras) para o Golijov.
O maestro John Neschling
segue em seu trabalho de aprimorar cada vez mais os corpos estáveis do
Municipal. A orquestra e o coral lírico estão cada vez melhores e respondem com
serenidade e eficiência aos desafios que a programação lhes impõe. Agora é a
contagem regressiva para Eugene Oneguin, de Tchaikovsky, a primeira ópera
cantada em russo em São Paulo, depois de mais de 40 anos.
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