sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O dia que Stravinsky fez o pau quebrar no Teatro Municipal de São Paulo

 Concertgebown de Amsterdam: uma das melhores orquestras do mundo



No universo fantástico da música, como de resto de toda a criação humana, chama a atenção aquelas obras que provocam um salto na compreensão. Algumas rompem com o estabelecido, outras estão tão à frente de seu tempo, que foge ao entendimento como puderam ser concebidas precocemente.

Evidentemente salta aos olhos a genialidade do Renascimento, sobretudo o teto da Capela Sistina, no Vaticano. Mais recentemente o grotesco do desenho de Toulouse-Lautrec ou de Vincent Van Gogh, misto de gênio e louco. São obras que provocam desconforto pelo inusitado, pelo arrojo e pela coragem.

Na música, Beethoven bonapartista entusiasmado, decepcionou-se com o bombardeio francês a Viena, rasurou a dedicatória e compôs uma destas obras luminares, a Terceira Sinfonia, chamada Heróica. Nada mais seria como antes depois disso. Richard Wagner costumava dizer que esta obra marcava a divisão dos mundos. Não se deve esquecer que o gênio de Bonn escreveria depois a quinta e a nona sinfonias, provavelmente mais conhecidas, mas que não arrastaram o inusitado.

Coco&Stravinsky: encenação do estrago

Outro dia, vi pela televisão ao filme Coco Chanel & Igor Stravinsky. A primeira cena do filme é a encenação do estrago provocado pela estréia de A Sagração da Primavera, em Paris, em 1913. Bale primitivo criado por Diaghlev, com uma música absolutamente revolucionária de Stravinsky. Clique aqui para ouvi-la

Foi uma destas noites memoráveis em que nada mais seria como antes. As primeiras notas do fagote, 16 vezes mais agudas que o natural, o ritmo primitivo e a sequência melódica sempre interrompida provocaram tremendo tumulto na audiência. De um lado, os impressionistas aplaudiam de outro os conservadores gritavam impropérios. Tudo terminou em troca de sopapos, com a polícia invadindo o teatro e toda aquela gente de casaca e cartola indo parar na delegacia.

Curioso é que Stravinsky depois daquela noite iria ainda escrever pelo menos três quartas partes de toda a sua vasta obra, que inclui uma ópera, música de circo, música de jazz ( um notável concerto dedicado a Benny Goodman, o Ebony Concert), várias sinfonias, obras de câmara, e por ai afora... Mas, nada seria tão marcante quanto aquela notável Sagração.

A capacidade de criar tumulto da obra de Igor Stravinsky atingiu até a paulicéia. Ainda me lembro, e eu estava lá, do notável concerto da Concertgebown de Amsterdam, no início dos anos 70, no velho Teatro Municipal. Havia uma grande celeuma porque os críticos haviam elegido a orquestra holandesa a melhor do momento, desbancando a Berlim, de Karajan, a Viena, de Sawallisch e a Nova York, de Bernstein.

Lobby da Phillips? Talvez.

O certo é que a orquestra lotou o teatro, mesmo com ingressos absurdamente caros. Lembro-me que ficamos, eu e o tio Quico, como dois pedintes na entrada das galerias à espera de um porteiro amigo que nos colocasse para dentro. A alma caridosa apareceu. Tivemos que assistir o concerto lá de cima, em pé.

Haitink: Lá de cima só vimos a careca

Quando o maestro inglês, Bernard Haitink surgiu no palco, só vimos o cucuruto da sua careca. Mas, aos primeiros acordes da Abertura Trágica de Brahms, eu já me convencera de que não era lobby porcaria nenhuma. Era mesmo uma orquestra que soava inteira; as notas eram todas ouvidas com precisão, os silêncios eram marcantes.

Mas, foi na segunda peça do programa que o clima esquentou. Nada menos que a Sinfonia para Instrumentos de Sopro, de ninguém menos do que Igor Stravinsky. Primeira audição no Brasil.

A música é inquietante, por vezes desconfortável, mas soava como se alguém quisesse gritar a inconformidade com a forma. As dissonâncias eram expressivas, redondas e marcantes. Pois acreditem, 60 anos depois daquela noite memorável em Paris, o pau quebrou no Municipal de São Paulo. Começou com vaias e apupos nas galerias, passou pelas cadeiras de foyer e atingiu o teatro todo. Teve gente que trocou empurrões.

Haitink foi até o fim. Impassível. Sabia o que estava fazendo e o que estava provocando.

No intervalo, mais discussão, briga e empurrões. Lembro-me que discuti muito com um grupo que insistia em dizer que aquilo não era música. E me lembro que o mais exaltado era o maestro Olivier Toni.

Serenados os ânimos fomos para a conclusão do programa. Uma bobagem! A Nona Sinfonia de Mahler. Quando acabou, com os inconvenientes reacionários já em casa, constatamos todos que acabáramos de ouvir um concerto memorável, com a melhor orquestra do mundo, e de quebra reeditamos, mutatis mutantes, aquela noite de Paris, em 1913, quando o mundo conheceu A Sagração da Primavera.



    

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