sábado, 9 de março de 2013

O badalar de um tempo que passou




O relógio da Luz: não indicava nada. Apenas as horas



Uma taça de Chablis bem fresco, algumas reminiscências e, de repente, as lembranças de um tempo que, com certeza, não volta mais. Barbara Tuchow, Pullitzer de 1962, no monumental Guns in August, diz que as badaladas do Big Ben no féretro de Eduardo VII, representavam o fim de uma era no Velho Mundo. E lá se foi mesmo a Belle Epoque para o ralo, superada pela atrocidade da Grande Guerra.

Lembrar do João Sebastião Bar e do Riviera é lembrar de uma São Paulo sonhadora, romântica e acolhedora, que também não existe mais.  É buscar o reflexo de uma cidade que correu na enxurrada por sobre os paralelepípedos, ao som de um piano nostálgico tocado ao ritmo de notas espaçadas como o Road to Zion, de Adrian Iaies.

Não se enganem os mais jovens. Eram tempos bicudos, difíceis, como sempre são. O dinheiro era curto, como sempre é. A noite em São Paulo se dividia entre a Boca do Lixo e a Boca do Luxo, cuja fronteira, imperceptível ficava em algum lugar entre os Campos Elíseos e a Vila Buarque. Os burgueses endinheirados sorviam doses enormes de White Horse no Lalicorne. Estudantes mais pobres se bastavam no Drurys e depois no Old Eight do Le Masque, do La Vie en Rose, ou em alguma casa obscura onde se podia ouvir Cyll Farney, Pedrinho Mattar e Claudete Soares. Com sorte até Cauby Peixoto, cuja eterna decadência cedia lugar a um interprete mágico ao som de Conceição ou de Cole Porter.

No João ou no Riviera, o vinho quente aquecia idéias políticas. Debates acalorados. Utopias irrealizáveis. A revolução parecia estar na calçada.

A noite terminava numa pequena kitchnete da rua dona Veridiana, onde olhos verdes, azuis ou castanhos apertados imploravam para que o escuro e a intimidade não dessem importância ao fim do glamour. Na maioria das vezes o que começara como uma relação comercial acabava em cumplicidade. Em uma fusão de almas em desespero.

Mas, isso era em noites raras, bafejadas pela sorte. Na quase esmagadora totalidade daquelas madrugadas, restava apenas a caminhada pela cidade deserta, onde os sons pareciam uma sinfonia dodecafônica. Uma fantasia e o velho negreiro, o 27, que circulava toda a noite, entre a Praça Clóvis e a Vila Oratório.

O cotidiano não dava tréguas. A fantasia cedia lugar à realidade. A vida não permitia intervalos contemplativos. Tudo seguia igual ou pior. O relato da noite revelava o massacre do dia. Alguns mudavam de vida, mudavam de noite. Outros desapareciam, outros sumiam, muitos se despediam. Para alguns o exílio acomodava, para outros apenas o anonimato restava.

Numa noite, Claudete, com sua voz pequena e cristalina, quase sussurrava o velho Lupicinio. Ninguém ousava produzir o menor ruído. Era uma noite como todas as noites, que misturava sonhos, solidão e utopia. “Estes moços, pobres moços. Ah se soubessem o que eu sei....”

Eu não sabia. Queria muito saber, mas não sabia. O relógio da Luz não apontava nada. Dizia apenas que era hora de tomar o 27. O novo dia serviria para que todos se reinventassem.


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