sábado, 6 de abril de 2013

Os primeiros amores



Jennifer Jones: minha primeira paixão irresistível e obsessiva






Uma das poucas coisas agradáveis da chamada “melhor idade” é poder olhar pelo retrovisor da existência e contemplar os arroubos da adolescência e da juventude. Meu primeiro grande amor, irresistível e obsessivo, foi a atriz Jennifer Jones. Nunca me esquecerei do impacto que aquele personagem eurasiano de Suplício de uma Saudade provocou no minha mente infantil.

Curioso é que as meninas de verdade, de carne e osso, eram mesmo um transtorno. Dos 12 aos 14, nenhuma delas poderia rivalizar com uma boa pelada jogada na rua, nem mesmo com um torneio de “bafo”, ou um desafio de bolinhas de gude, de preferência jogado na terra. Tinha ainda os botões, os piões, as pipas, a bicicleta.

Não. Definitivamente elas não tinham nenhuma chance.

Mas, vieram as espinhas e a imagem angelical da doutora eurasiana começou a ser insuficiente. Uma das grandes sacanagens que eu aprontei na minha adolescência foi reescrever grandes cartas de amor, contidas em um livro que, não sei por que nem como, foi parar nas minhas mãos, e enviar pelo correio com a firma de um pseudônimo e mandar a todas as meninas da rua.

Foi um fuzuê danado. Mal sabia eu onde estava me metendo.  A maldade eu havia tirado de algumas peças da commedie dell’arte, que devorava freneticamente. Deliciava-me com as maldades de D.Giovanni ou do Tartufo.

Mas, o tiro saiu pela culatra. O que era para ser uma provocação virou um frisson. Descobri depois de acompanhar a prudente distância o trabalho do carteiro, que a chegada das ditas correspondências provocava um certo conforto nas pobres criaturas. Conseguia mesmo divisar uma ponta de orgulho. Que seres estranhos estas meninas, capazes de se reconfortar com algumas palavras tiradas de um livro barato e jogadas com algum talento em uma folha de papel.

Seria superestimar os efeitos das cartas de amor, mas o certo é que depois delas, as próprias meninas passaram a nos olhar com olhos diferentes. Não éramos mais os cafajestes da esquina. E não é que algumas delas passaram a frequentar as nossas rodas de conversa fiada. As primeiras experiências sexuais vieram do escurinho do cinema, eventualmente da garagem escura, ou da escada do prédio. Nada de sério. Apenas a descoberta dos corpos e uma avalanche de fantasias.

Este período ingênuo de relacionamentos passou muito rápido. A minha geração amadureceu muito depressa. De um dia para o outro fomos chamados a assumir responsabilidades. A bola, a bicicleta, o pião e a pipa desaparecem do nosso cotidiano. Aos 15 anos, quase todos nós tivemos que conciliar o primeiro emprego com o estudo do curso médio noturno.

Ainda dava tempo para uma partidinha de futebol, sempre contra o Sucena (nosso arquirrival) nas quadras do Distrital da Moóca; uma sessão de cinema no Moderno ou no Ouro Verde; ou todo mundo enfiado na varanda da casa do Tadeu para ver o Festival Internacional da Canção no Maracanazinho e repartir a inconformidade com a vitória de Tom Jobim.

O mundo fervia a nossa volta. Algo de muito sério estava acontecendo. O quinteto mágico do poderoso Mônaco da Leocádia parecia insuficiente para enfrentar o mundo que nos desafiava: Renato (ou André, meu irmão), Tadeu e Nunzio; Odair e Ciro.

O último relance da minha juventude veio pelas mãos delicadas de uma colega de classe: uma pianista sensível, de fartos cabelos negros e olhos suplicantes. Sem saber, ela me deu a base para uma catapulta que me projetaria para o outro lado do Tamanduateí.


A doutora eurasiana:guardada no DVD
Outro dia estava revendo Suplício de uma Saudade. Jennifer Jones e a doutora eurasiana ainda me provocam sentimentos de afeto. Felizmente o filme está guardado em um DVD e eu posso vê-lo, quantas vezes eu quiser.

As meninas vítimas das minhas cartas hoje são, com certeza, vetustas senhoras sexagenárias, avós, tias e esposas diligentes. Os meninos desapareceram. Vez por outra, meu irmão André me dá notícias. Alguns passaram desta para a melhor precocemente. Ana Lúcia, a pianista, me cobra ainda uma pizza, que eu não consigo agendar. Celina, a rainha das revelações, grita por socorro, inconformada provavelmente com a solidão.

Pena que as paixões do passado, a amizade, a ingenuidade e os sentimentos juvenis não possam ser guardados em um dispositivo eletrônico qualquer. Não há caminho de volta.

2 comentários:

  1. Olá, admiro muito o senhor e seu talento com a escrita, seus textos são maravilhosos!

    ResponderExcluir
  2. A inocencia foi perdida na Mooca, mas a sensibilidade continua intacta... Que texto adorável!

    ResponderExcluir