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Jennifer Jones: minha primeira paixão irresistível e obsessiva |
Uma das poucas coisas
agradáveis da chamada “melhor idade” é poder olhar pelo retrovisor da
existência e contemplar os arroubos da adolescência e da juventude. Meu
primeiro grande amor, irresistível e obsessivo, foi a atriz Jennifer Jones.
Nunca me esquecerei do impacto que aquele personagem eurasiano de Suplício
de uma Saudade provocou no minha mente infantil.
Curioso é que as meninas
de verdade, de carne e osso, eram mesmo um transtorno. Dos 12 aos 14, nenhuma
delas poderia rivalizar com uma boa pelada jogada na rua, nem mesmo com um
torneio de “bafo”, ou um desafio de bolinhas de gude, de preferência jogado na
terra. Tinha ainda os botões, os piões, as pipas, a bicicleta.
Não. Definitivamente elas
não tinham nenhuma chance.
Mas, vieram as espinhas e
a imagem angelical da doutora eurasiana começou a ser insuficiente. Uma das
grandes sacanagens que eu aprontei na minha adolescência foi reescrever grandes
cartas de amor, contidas em um livro que, não sei por que nem como, foi parar
nas minhas mãos, e enviar pelo correio com a firma de um pseudônimo e mandar a
todas as meninas da rua.
Foi um fuzuê danado. Mal
sabia eu onde estava me metendo. A
maldade eu havia tirado de algumas peças da commedie dell’arte, que devorava
freneticamente. Deliciava-me com as maldades de D.Giovanni ou do Tartufo.
Mas, o tiro saiu pela
culatra. O que era para ser uma provocação virou um frisson. Descobri depois de
acompanhar a prudente distância o trabalho do carteiro, que a chegada das ditas
correspondências provocava um certo conforto nas pobres criaturas. Conseguia
mesmo divisar uma ponta de orgulho. Que seres estranhos estas meninas, capazes
de se reconfortar com algumas palavras tiradas de um livro barato e jogadas com
algum talento em uma folha de papel.
Seria superestimar os
efeitos das cartas de amor, mas o certo é que depois delas, as próprias meninas
passaram a nos olhar com olhos diferentes. Não éramos mais os cafajestes da
esquina. E não é que algumas delas passaram a frequentar as nossas rodas de
conversa fiada. As primeiras experiências sexuais vieram do escurinho do
cinema, eventualmente da garagem escura, ou da escada do prédio. Nada de sério.
Apenas a descoberta dos corpos e uma avalanche de fantasias.
Este período ingênuo de
relacionamentos passou muito rápido. A minha geração amadureceu muito depressa.
De um dia para o outro fomos chamados a assumir responsabilidades. A bola, a
bicicleta, o pião e a pipa desaparecem do nosso cotidiano. Aos 15 anos, quase
todos nós tivemos que conciliar o primeiro emprego com o estudo do curso médio
noturno.
Ainda dava tempo para uma
partidinha de futebol, sempre contra o Sucena (nosso arquirrival) nas quadras
do Distrital da Moóca; uma sessão de cinema no Moderno ou no Ouro Verde; ou
todo mundo enfiado na varanda da casa do Tadeu para ver o Festival
Internacional da Canção no Maracanazinho e repartir a inconformidade com a
vitória de Tom Jobim.
O mundo fervia a nossa
volta. Algo de muito sério estava acontecendo. O quinteto mágico do poderoso
Mônaco da Leocádia parecia insuficiente para enfrentar o mundo que nos
desafiava: Renato (ou André, meu irmão), Tadeu e Nunzio; Odair e Ciro.
O último relance da minha
juventude veio pelas mãos delicadas de uma colega de classe: uma pianista sensível,
de fartos cabelos negros e olhos suplicantes. Sem saber, ela me deu a base para
uma catapulta que me projetaria para o outro lado do Tamanduateí.
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A doutora eurasiana:guardada no DVD |
Outro dia estava revendo Suplício
de uma Saudade. Jennifer Jones e a doutora eurasiana ainda me provocam
sentimentos de afeto. Felizmente o filme está guardado em um DVD e eu posso vê-lo,
quantas vezes eu quiser.
As meninas vítimas das
minhas cartas hoje são, com certeza, vetustas senhoras sexagenárias, avós, tias
e esposas diligentes. Os meninos desapareceram. Vez por outra, meu irmão André
me dá notícias. Alguns passaram desta para a melhor precocemente. Ana Lúcia, a
pianista, me cobra ainda uma pizza, que eu não consigo agendar. Celina, a
rainha das revelações, grita por socorro, inconformada provavelmente com a
solidão.
Pena que as paixões do
passado, a amizade, a ingenuidade e os sentimentos juvenis não possam ser
guardados em um dispositivo eletrônico qualquer. Não há caminho de volta.
Olá, admiro muito o senhor e seu talento com a escrita, seus textos são maravilhosos!
ResponderExcluirA inocencia foi perdida na Mooca, mas a sensibilidade continua intacta... Que texto adorável!
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