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Dimitri Shostakovitch; um caroço na gargante de Stalin |
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A Macbeth de Mtsensk: montagem do MET de Nova York |
Certa feita caminhava pelo
píer do porto de Barcelona, na Espanha, dando tratos a imaginação, quando me
chamou a atenção um ponto vermelho que se destacava no horizonte. O ponto logo
se transformou em um navio e evidentemente chamou a atenção o tamanho do
cargueiro que se aproximava do cais. Era a capitânea da frota mercante
soviética, o Dimitri Shostakovitch.
Curiosa homenagem. Um
compositor, maestro e professor emprestou seu nome para o maior cargueiro a
singrar os sete mares. Coisa de comissários soviéticos, sem dúvida. Seria difícil imagina-lo, em sua timidez
quase doentia, aceitar tal batizado.
Shostakovitch tinha 11
anos quando eclodiu a revolução de outubro de 1917. Desde suas primeiras
composições era de se esperar que ele estivesse entre os principais talentos
que emergiram na União Soviética. Estudou e conviveu com outro gênio, Serguei
Prokofiev. Era amigo e reverenciava o gênio de outro Sérgio, o Eisenstein. Que
trio!
Revolucionário convicto,
enxergava no realismo socialista a arte de seu tempo. Uma de suas obras mais
marcantes foi a trilha sonora para nada menos que o clássico Encouraçado
Potemkin, cujo material sonoro serviria de base para a monumental sinfonia
número 5, com a qual fomos brindados no ano passado, graças ao talento do meu amigo
John Neschling, à frente da Sinfônica Municipal.
Muito cedo, entretanto, os
comissários soviéticos perderam-se na visão de que a arte ou a manifestação
humana sobre a forma, a música e as imagens não poderiam revelar a visão única
do artista, se não a expressão da coletividade. Caso contrário se constituíria
em arte burguesa individualista.
O que isso quer dizer, na
prática, nunca ninguém soube explicar. Mas, é óbvio, um conceito de tal maneira
difuso serviu para perseguir talentos, reforçar invejas e assim por diante. Uma
cantata como Alexandr Nevsky, composto por Prokofiev, ainda que conte a
história da unificação russa, na Idade Média, seria uma obra burguesa
individualista¿
O camarada Stalin já
travestido de todo poderoso secretário geral do Partido Comunista Soviético não
tinha lá um gosto musical tão expressivo. Enxergou nos grandes bales de
Tchaikowsky e na eterna habilidade russa para a dança uma ferramenta de
propaganda. E elegeu como sua ópera predileta a monumental Boris Goudonov, de
Modest Moussorgsky, com revisão e edição final de Nicolai Rimsky-Korsakoff.
Por alguma razão que foge
à minha compreensão, Stalin elegeu Shostakovitch como o compositor do regime. O
que incomodou profundamente o maestro. De tal sorte que a cada encomenda, como
se quisesse revelar a sua insatisfação, ele reagia com uma malcriação. Sutil
malcriação. Mas perceptível.
Ao final da Segunda
Guerra, por exemplo, Stalin encomendou uma grande sinfonia. Seria, como foi a 9ª
de Shostakovitch. E como nona deveria guardar relação com a monumentalidade de
suas irmãs, de Beethoven, de Schubert, de Mahler e de Bruckner. Uma composição
que incorporasse à massa orquestral, uma massa coral gigantesca, solistas,
canhões a la 1808.
Shostakovitch fez uma
sinfonia mínima, em mi maior. Batizou-a de pequena. Introduziu elementos claros
de jazz e de música instrumental. É uma
linda sinfonia. Mas, o camarada espumou de ódio.
Apesar disso, o compositor
escapou ao ódio do regime. A comunidade musical internacional o protegia. Desde
sempre, Shostakovitch era admirado em toda a Europa e nos Estados Unidos.
Morreu em 1975. Compôs 15 sinfonias e 15 quartetos de cordas, diversas obras de
câmara, música para o cinema, para ballet, cantatas e, pelo menos, uma ópera
monumental, Lady Macbeth of the Mtsensk District. Além de concertos para piano,
para violino e para violoncelo.
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