domingo, 14 de dezembro de 2014

A arte de incomodar um tirano

Dimitri Shostakovitch; um caroço na gargante de Stalin

A Macbeth de Mtsensk: montagem do MET de Nova York





Certa feita caminhava pelo píer do porto de Barcelona, na Espanha, dando tratos a imaginação, quando me chamou a atenção um ponto vermelho que se destacava no horizonte. O ponto logo se transformou em um navio e evidentemente chamou a atenção o tamanho do cargueiro que se aproximava do cais. Era a capitânea da frota mercante soviética, o Dimitri Shostakovitch.

Curiosa homenagem. Um compositor, maestro e professor emprestou seu nome para o maior cargueiro a singrar os sete mares. Coisa de comissários soviéticos, sem dúvida.  Seria difícil imagina-lo, em sua timidez quase doentia, aceitar tal batizado.

Shostakovitch tinha 11 anos quando eclodiu a revolução de outubro de 1917. Desde suas primeiras composições era de se esperar que ele estivesse entre os principais talentos que emergiram na União Soviética. Estudou e conviveu com outro gênio, Serguei Prokofiev. Era amigo e reverenciava o gênio de outro Sérgio, o Eisenstein. Que trio!

Revolucionário convicto, enxergava no realismo socialista a arte de seu tempo. Uma de suas obras mais marcantes foi a trilha sonora para nada menos que o clássico Encouraçado Potemkin, cujo material sonoro serviria de base para a monumental sinfonia número 5, com a qual fomos brindados no ano passado, graças ao talento do meu amigo John Neschling, à frente da Sinfônica Municipal.

Muito cedo, entretanto, os comissários soviéticos perderam-se na visão de que a arte ou a manifestação humana sobre a forma, a música e as imagens não poderiam revelar a visão única do artista, se não a expressão da coletividade. Caso contrário se constituíria em arte burguesa individualista.

O que isso quer dizer, na prática, nunca ninguém soube explicar. Mas, é óbvio, um conceito de tal maneira difuso serviu para perseguir talentos, reforçar invejas e assim por diante. Uma cantata como Alexandr Nevsky, composto por Prokofiev, ainda que conte a história da unificação russa, na Idade Média, seria uma obra burguesa individualista¿
O camarada Stalin já travestido de todo poderoso secretário geral do Partido Comunista Soviético não tinha lá um gosto musical tão expressivo. Enxergou nos grandes bales de Tchaikowsky e na eterna habilidade russa para a dança uma ferramenta de propaganda. E elegeu como sua ópera predileta a monumental Boris Goudonov, de Modest Moussorgsky, com revisão e edição final de Nicolai Rimsky-Korsakoff.

Por alguma razão que foge à minha compreensão, Stalin elegeu Shostakovitch como o compositor do regime. O que incomodou profundamente o maestro. De tal sorte que a cada encomenda, como se quisesse revelar a sua insatisfação, ele reagia com uma malcriação. Sutil malcriação. Mas perceptível.

Ao final da Segunda Guerra, por exemplo, Stalin encomendou uma grande sinfonia. Seria, como foi a 9ª de Shostakovitch. E como nona deveria guardar relação com a monumentalidade de suas irmãs, de Beethoven, de Schubert, de Mahler e de Bruckner. Uma composição que incorporasse à massa orquestral, uma massa coral gigantesca, solistas, canhões a la 1808.

Shostakovitch fez uma sinfonia mínima, em mi maior. Batizou-a de pequena. Introduziu elementos claros de jazz e de música instrumental.  É uma linda sinfonia. Mas, o camarada espumou de ódio.


Apesar disso, o compositor escapou ao ódio do regime. A comunidade musical internacional o protegia. Desde sempre, Shostakovitch era admirado em toda a Europa e nos Estados Unidos. Morreu em 1975. Compôs 15 sinfonias e 15 quartetos de cordas, diversas obras de câmara, música para o cinema, para ballet, cantatas e, pelo menos, uma ópera monumental, Lady Macbeth of the Mtsensk District. Além de concertos para piano, para violino e para violoncelo.  

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