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Soldados paranaenses de partida:defesa de território contestado |
A semana foi marcada pela
chegada da correspondência de meu amigo Paulo Ramos Derengoski, que me mandou
seu último livro, A Sangrenta Guerra do Contestado, tema de obsessão dele, e de
uma certa forma, meu também.
O texto apaixonado do
Paulo me trouxe a reflexão as barbaridades perpetradas pelas elites
brasileiras, sempre covardes, egoístas e prepotentes.
Outro amigo meu bastante
ligado ao assunto, e que aliás anda sumido, é o cineasta paranaense Silvio
Back, que rodou no passado até um longa-metragem sobre o assunto.
O Contestado tem elementos
fantásticos de uma história verdadeira, dramática e reveladora. Batalhas de
guerrilha e campais, cerco, romance, sedução, misticismo. Tudo isso em um dos
cenários mais bonitos do país, o vale do rio do Peixe, em cuja margem direita
começa a região contestada por Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Embora a questão
fronteiriça fosse apenas periférica, ela é imperativa no início do conflito.
Eternamente preocupados com a ameaça de uma aventura militar castelhana no Sul
do país, os militares do Rio de Janeiro entenderam como fundamental a
construção de uma estrada de ferro que ligasse São Paulo ao Rio Grande do Sul.
Seria uma forma de deslocar tropas para a região da fronteira com velocidade.
O governo Prudente de
Morais (1894-1898) decidiu então por uma negociata. Cedeu ao Sindicato Farcquar 15
quilômetros de terras em cada margem da ferrovia, que atravessaria o Paraná,
cruzaria Santa Catarina pelo vale do rio do Peixe e desembocaria no Rio Grande
do Sul. As terras catarinenses eram marcadas sobretudo pela existência de
pinhais e madeirais centenários.
A ferrovia evidentemente
foi traçada de forma a abarcar toda esta madeira. O Sindicato entre outras
coisas logo instalou ali uma serraria, à época uma das maiores do mundo,
chamada Lumbert.
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Ataque de colonos: ferrovia era alvo da guerrilha |
Claro, havia uns poucos
diabos, posseiros e colonos, que viviam na região da lavoura de subsistência. A
estas criaturas sobrou a expulsão e para os que resistiram se raspava a cabeça,
colocava-se sal em suas bocas, e dá-lhe chibata.
Esta gente andou
perambulando sem destino pelo Oeste do Estado, até que ouviram falar que na
cidade de Curitibanos, mais precisamente em seus arredores, um monge
arregimentava almas sofredoras e defendia o reino do Altíssimo.
O monge auto-batizado José
Maria, seguia a tradição dos profetas que se multiplicavam pelo interior do
país, a exemplo de Antônio Conselheiro, na Bahia, pregando um mundo novo e
abjurando o novo regime, a República, que havia expulsado os colonos de suas
terras.
Zé Maria não era um
Conselheiro. Na verdade era um desertor da Força Pública do Paraná. Não queria
saber de briga. Tanto que quando o governador de Santa Catarina, Hercílio Luz,
mandou tropas do Estado para dispersar os colonos que se agrupavam em sua
volta, não teve dúvidas. Juntou a todos e atravessou o rio do Peixe em direção
as colinas do Irani.
O monge não tinha a menor
idéia da encrenca que estava a criar. Ao atravessar o rio do Peixe entrou na
região contestada pelos três estados. O Paraná queria sua fronteira no rio
Canoas-Uruguai, o Rio Grande no Iguaçu e Santa Catarina queria chegar até o rio
Paraná.
Para os paranaenses,
liderados por um governador estúpido como Affonso Camargo, tratava-se da
incursão de catarinenses em território do Paraná. Motivo mais do que suficiente
para uma aventura militar. E, assim, dentro de um enredo que se mostraria
macabro, armou um exército com canhões e metralhadoras austríacas para, como
diziam na época, “trazer amarrados os invasores catarinenses para Curitiba”.
Os soldados foram confiados
a um garboso oficial do exército brasileiro, comandante da Força Pública do
Paraná, o coronel João Gualberto (nome de uma avenida em Curitiba). Partiram
sob vivas e gritos embarcados nos trens da São Paulo-Rio Grande.
Ao chegar na região, o
coronel mandou uma patrulha avançada propor a rendição a Zé Maria. Por alguma
razão, o desertor da Força Pública do Paraná não aceitou. Ao contrário,
arregimentou os colonos mais experientes. Alguns armados com velhos mosquetões,
refugos da Guerra do Paraguai, outros com facas de madeira apropriadas apenas
para quebrar a erva mate. Privilegiado pela questão geográfica, encastelou-se
com duas linhas de defesa no alto da Serra do Irani. E decidiu esperar pelo
ataque.
Na noite da vigília da
batalha, sentados em torno de uma fogueira e sob um céu estrelado, Zé Maria
profetizou que a batalha se daria embaixo de chuva, embora não houvesse uma
única nuvem no céu. Ele e o coronel João Gualberto tombariam mortos. Mas, os
colonos seriam vencedores. Ciente, agora, do equívoco que havia perpetrado,
orientou seu exército a atravessar de volta o rio do Peixe para terras de Santa
Catarina e se entrincheirar em uma localidade chamada Taquaruçu do Bom Sossego
e aguardar, pois ele voltaria do além à frente do exército de São Sebastião
para enfrentar as tropas invasoras e garantir um reino de felicidade para
aquela pobre gente expulsa de suas terras.
Desgraça pouca é bobagem.
O dia amanheceu sob tremendo aguaceiro. Os soldados paranaenses literalmente
atolaram no barral. As metralhadoras engasgaram. Os colonos caíram sobre os
soldados com uma fúria impressionante. Zé Maria e João Gualberto tombaram e os
paranaenses foram repelidos.
Como o monge orientara, os
colonos catarinenses atravessaram o rio do Peixe de volta para terras de Santa
Catarina e construíram um reduto, formado por um quadrado de 40 quilômetros de
lado no município de Campos Novos, onde a cabeça era Taquaruçu do Bom Sossego.
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O enterro de João Gualberto: vítima dos colonos catarinenses |
Em Curitiba a euforia e os
gritos entusiasmados da partida dos soldados foram substituídos pelo desespero
das famílias quando o trem chegou transportando os corpos dos soldados mortos.
Affonso Camargo, o governador genial, providenciou um enterro jamais visto na
cidade para João Gualberto. E na borda do túmulo não se conteve e descreveu com
detalhes como milhares de soldados paranaenses foram vítimas de um grupo de
covardes colonos catarinenses.
A batalha do Irani ocorreu
em outubro de 1912 e deu início a Guerra do Contestado que terminou quatro anos
depois em 1916. Mais de 90% de todas as tropas do Exército brasileiro foram
deslocadas para enfrentar os colonos e jagunços catarinenses. Um avião foi
utilizado como arma de guerra pela primeira vez, muito antes das célebres
batalhas da Primeira Guerra Mundial da Europa.
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O primeiro aeroplano usado como arma militar |
O presidente Cleveland,
dos Estados Unidos, foi chamado a mediar o conflito de fronteiras no sul do
país. Prevaleceu a tese sempre defendida pelos catarinenses, que ganharam sua
fronteira com a Argentina. O esdrúxulo é que a divisa entre as cidades de Porto
União (SC) e União da Vitória (PR) até hoje é a linha férrea da antiga São
Paulo-Rio Grande. Como tributo a sua contribuição, o Estado do Paraná nomeou
uma cidade da região Norte como Clevelândia.
Voltarei ao assunto no
futuro. Parabéns Paulo pelo novo livro, realmente emocionante.