terça-feira, 25 de setembro de 2012

A transgressão do conhecimento






Glenda Jackson em Mulheres Apaixonadas: ver o filme era uma transgressão 






Recebi no início da noite de sexta-feira a sempre iluminada visita do meu mestre Tão Gomes Pinto. Voltou a chover em Brasília, enfim. A primavera chegou com ventos de incerteza e o anúncio de um futuro incerto. O Brasil pelos dados do PNAD, apurados pelo IBGE, vai muito bem. Há mesmo uma nova classe média, os indicadores de miséria absoluta são residuais; o analfabetismo recua; as crianças estão na escola; quase todo mundo leva a vida com trabalho e perseverança.

Claro, estamos longe de ser uma Dinamarca ou uma Coréia. Ainda bem. Há problemas com a faixa dos 15 aos 17 anos. A molecada anda meio perdida. Nem estuda e nem trabalha. Anda sem saber para onde, premida por um volume gigantesco de informações. É um problema grave, que precisa de um estudo mais apurado. Não se pode menosprezar o drama existencial dos adolescentes modernos. Trabalho, estudo, ou os dois? Autonomia, independência, futuro, hormônios a mil, uma sociedade individualista que se anima cheia de novidades, materialista. O universo atual dos adolescentes é aborrecido. Urge criar uma utopia, uma nova versão de Woodstock, uma primavera de Paris, sei lá...

Outro dia, Fernando Haddad estava em campanha na periferia de São Paulo e defendia a educação integral. Ou seja, jornadas escolares de dia inteiro. Alguns adolescentes quando entenderam do que se tratava saíram de fininho. A gente se esquece de que a escola é uma prisão. Pode ser linda, cheia de atrativos, com professores maravilhosos. Mas, sempre será um porre. A não ser que este sacrifício temporário tenha um significado futuro. Tem?

A minha geração, e já se vai meio século, era marcada pela transgressão. Ultrapassar a barreira do permitido. Chocar. E assim aos trambolhões atravessamos os anos 60 e 70. Ficamos deslumbrados com as descobertas. Fomos para frente e para trás, num movimento intenso de busca de uma resposta singela: que diabos estamos fazendo aqui?

Atos simples como assistir a Mulheres Apaixonadas, de Ken Russel, significava por si um ato de transgressão. Deixar a barba ou o cabelo comprido era mais um ato político de que um gesto de estética. Podia-se ver a transgressão em Mozart ou nos Beatles. Em Schiller ou em Plínio Marcos. No Redondo ou no Blue Riviera. No sexo grupal ou num arroubo romântico a la Cyrano. Os punhos de Marcelus Cassius Clay, mais tarde Muhammed Ali, representavam uma transgressão tremenda. Malcolm X, Martin Luther King, Miriam Makeba, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, Chico Buarque, o esporte transgredia, o cinema transgredia, a música transgredia. Não vivíamos para conformar. Vivíamos para confrontar.

Não. Não era apenas um movimento contra os militares brasileiros ou latino-americanos, ou contra a Guerra Fria. Era uma forma de enfrentar o determinismo: as coisas são assim e sempre foram assim. A utopia? Sei lá, um estado de liberdade absoluta, onde cada um de nós pudesse fazer o que quisesse, sem amarras políticas ou sociais, onde todos fossem felizes. Não haveria fome ou exploração, nem um estado opressor ou um rol de obrigações.

Nos anos 90 veio o yuppismo e nos transformamos exatamente naquilo que tanto combatíamos. Colocamos uma gravata e começamos a valorizar a forma, o politicamente correto, os valores e a ascensão social. Castramos o poder de transgressão de nossos filhos e passamos a envolvê-los em uma bolha de proteção. Sob o manto do politicamente correto, passamos a impor normas de comportamento e conduta, que nós tanto combatemos.

Alguém pode me dizer, pelo amor de deus, que graça tem em transar com a namorada na casa dos pais, com a família toda reunida assistindo ao Faustão? Qual é o sentido de participar de uma jornada ecológica para coletiva seletiva de lixo no bairro, ou uma pedalada ecológica? Ou passar horas e horas em uma academia de ginástica?

Certa vez, lecionava para alunos de classe média em Brasília, e me submeteram um jornal “clandestino”. Muito bem feito, tratava de questões de convivência e de aprendizagem. Fiquei chocado. Não havia uma única maldade. Não se falava da professora gostosa, do professor alcóolatra, nem havia uma coluna de fofocas e de fuxicos.

- Ninguém come ninguém nesta escola? – indaguei.

Os alunos me olharam com ar de profunda perplexidade. Notei mesmo uma ponta de vergonha.

Será possível?

O novo está no inusitado ou no inesperado. No Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues, na prostituta que se perde em um orgasmo do Abajur Lilás, de Plínio Marcos. Ou se quiserem na inveja doentia que Elizabeth I sentia de Maria Stuart, no texto brilhante de Schiller. Meu amigo Helvécio Raton, gênio mineiro do cinema brasileiro, repartiu comigo um prato de pappardelle no Luca esta semana. E me disse: “As pessoas hoje gostam mesmo é de acompanhar histórias previsíveis, onde os personagens façam apenas o que se espera deles. Sem sobressaltos, sem novidades”.

Isso explica porque as pessoas ficam imbecilidades com estes modernos seriados de tevê, em sua maioria de uma mediocridade brutal. Ou ainda o sucesso destes panfletos novelescos medíocres. Tudo é previsível. Tudo é medíocre.

Uma vez perguntaram a John Huston porque os filmes dele não tinham um final clássico, onde o bandido, ou malvado se ferrava, e o herói ou o bom moço, acabava feliz da vida. Ele deu de ombros e respondeu: “O final não é importante. A forma como chegamos a ele é que conta”.

Aprendi ao longo dos meus 60 anos, que quando tudo está certinho, arrumadinho, alguma coisa está errada. O avanço se dá no caos, jamais no consenso. Apenas para citar mais uma vez o velho Nelson: “a unanimidade é burra”. E eu acrescentaria: e manipulada.

Transgredir pode ser sinônimo de questionar, de criticar ou de discordar.  Trata-se, portanto, de um exercício bastante complicado e desconfortável. É muito mais cômodo ceder à mediocridade, deixar-se levar pelos ventos do politicamente correto e seguir a manada.

A tendência natural da humanidade a mediocridade em contra-partida deixa claro que a principal transgressão é o conhecimento. Não é difícil entender. Se a maioria prefere orelha de livros, finais previsíveis e novelas globais, a forma de confrontar é contrapor a visão mais ampla, mais profunda e mais complexa. Se as pessoas não pensam, aquele que pensa choca.

Quando Beethoven se apresentou para o rei da Áustria, no começo de sua carreira, foi severamente criticado porque estava desalinhado e sujo. Apenas um atento Mozart sentenciou: “Este será o maior de todos!”

O gênio de Bonn era um genial transgressor. Arrasou com um andante no segundo movimento da Terceira Sinfonia, a chamada Marcha Fúnebre. E quando poderia ser cultuado pela originalidade, preferiu a discrição e a solidão.

O que é preciso fazer os jovens entenderem é que o segredo da transgressão é o conhecimento. E que a sua busca é a maior transgressão possível. Do contrário é melhor mesmo cuidar do corpo, porque a mente não vai ter jeito mesmo.

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