segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O jornalismo não morreu

Minha filha Bianca costuma funcionar como uma espécie de grilo falante, sobretudo, nas minhas convicções. Daí me resulta desconfortável quando ela me qualifica como o último dos românticos. Não se trata aqui do romantismo aplicado a Cyrano ou a Camilo Castelo Branco, ou até a Alexandre Dumas. Mas, ao fato dela identificar em mim a renitente crença em valores e comportamentos ultrapassados.

Não está sozinha. Outras pessoas tão queridas, mas não tão influentes, também tem este diagnóstico.

Sempre vi o jornalismo como a última trincheira da história. Por isso me inspirei em figuras marcantes no seu exercício: Hemingway, Graham Greene, Kappa, John Steinback, Woodword, Arnett  entre outros.

Talvez o meu romantismo se deva ao fato de ter sido forjado na trincheira da reportagem. De nunca me incomodar em viajar com quatro gordos em um Gordini para a Bolívia, se isso significasse alcançar uma notícia.

Sempre tive horror ao yuppismo dos anos 90, quando o jornalismo deixou de ser uma profissão maldita. Quando o repórter deixou de ser um personagem incômodo para ser objeto de sedução.

Sou do tempo em que a liberdade para escrever fazia parte da remuneração, ainda que fôsse em um hebdomadário impresso em um mimeógrafo.

Meu mestre Tão Gomes Pinto me ensinou que o repórter tinha que capturar o cheiro da notícia. Cláudio Abramo falava em faca entre os dentes.

Com quatro gordos em um Gordini estive na América Central, na África, nas ditaduras do Cone Sul, na Bolívia e no Peru. Na maioria das vezes com o dinheiro contado para dormir em uma pensão e fazer uma só refeição. Não foram poucas as vezes em que sai do país escondido em kombis da VARIG, ou atravessei fronteiras a pé, com medo de ser enfrentado por um bando de meninos armados.

Quantas vezes não enfrentei a morte, cara-a-cara, senti o bafo dela no meu cangote ou temi pela tortura inútil e inconsequente sentado no chão gelado de uma cela.

E tudo isso por quê?

Porque eu acredito que o jornalista, o repórter, é a testemunha da história. A ele compete narrar os fatos que a história vai documentar. Sim. Eu gostaria de estar na Normandia no dia D, em Hiroshima, antes da bomba cair, no Vietnam durante a guerra, em Paris na primavera de 68, na Revolução Espanhola e assim sucessivamente.

Hoje, velho e cansado, não sinto mais as forças que me moviam para o perigo, para o inusitado.

Bem, mas já faz algum tempo em que eu deixei a redação, na verdade 14 anos, e mudei de lado. Coloquei como objetivo que iria trabalhar para orientar os repórteres e editores, sempre em busca da verdade, da informação clara.

Nunca intimidei um colega. Nunca neguei um fato. Nunca reagi a uma crítica. Não tolero a crítica pessoal, a plantação fria de informações falsas.

O jornalismo é heróico e romântico, Bianca. Tem que ser. Não importa o lado da notícia que você está. Um episódio marcante e ilustrativo para mim ocorreu no final da Segunda Grande Guerra na Europa. Um grupo de 17 correspondentes de guerra fizeram um combinado com o supremo comando aliado, no dia 7 de maio de 1945,quando se deslocavam de Paris para Reims, onde os alemães assinariam a rendição incondicional no dia seguinte. O supremo comando americano queria fazer o anúncio bombástico com os generais alemães. Tudo certinho, bonitinho, para colocar mais umas moedas políticas na bolsa política do general Dwight Eisenhower, o comandante supremo da Europa.

Ed Kennedy, repórter da Associated Press, não concordou com isso. Ainda havia combate sobretudo na Tchecoslováquia, na Itália, nos balcãs e na própria Alemanha, aliás, onde alguns nazistas insistiam em escaramuças tanto contra o exército vermelho, como contra ingleses, americanos e franceses.

Vamos combinar que um jornalista que se preza seria incapaz de dormir com uma notícia dessas: o fim de uma guerra que ceifou nada menos do que 50 milhões de vidas.

Kennedy mandou um despacho para Londres por volta das 15 horas: por um telefone livre, sem censura: “Escreva aí. A Alemanha capitulou incondicionalmente. A guerra acabou”.

Ed Kennedy pagou caro pela audácia. Foi expulso da Europa e só conseguiu emprego em jornais menores do interior dos Estados Unidos, até que morreu em um acidente de automóvel em 1958.

Tenho certeza que ele não se arrependeu jamais de ter quebrado o embargo político americano.

No outro lado da moeda, na Nicarágua pré-sandinista, uma agência americana de Relações Públicas havia sido contratada pelo ditador Anastácio Somoza para defender a sua imagem. Tarefa hercúlea eu diria, para não dizer nojenta, ainda que aqueles profissionais tivessem suas hipotecas para pagar. “Vocês tem que ver que sempre há o lado do presidente e do governo”, repetiam a exaustão.  

Estas agências americanas procriaram em todo o mundo e, sobretudo, no Brasil. Atuam com uma força descomunal. É comum um repórter de um jornal procurar o “outro lado” da notícia, sobretudo quando relacionada a um governo ou a uma estatal e a resposta ser passada diretamente para o seu editor, acompanhada de um corolário de ameaças e de argumentos do tipo: vocês podem se queimar, ou pior, vocês estão entrando no jogo político. Fulano vai ligar para o dono do jornal.

Meu Deus! Que argumento poderoso é esse que convenceu editores experientes e donos de veículos a descartar a informação de que São Paulo vive uma das piores crises de abastecimento de água de sua história? Muito bem, o governador Geraldo Alckmin ganhou mais um mandato, mas a população corre o risco de tomar banho de canequinha. Escolas e hospitais correm o risco de fechar por absoluta falta de abastecimento de água. E não se iludam, o único plano de contingência da SABESP é rezar. Rezar muito para chover. A píncaros.

Certa vez fui tostado pela assessoria do Palácio dos Bandeirantes porque questionei o governador Franco Montoro em uma coletiva. Ele havia informado que uma grande conspiração de forças reacionárias estava em marcha em São Paulo. Ora, ele era o governador, eleito, tinha toda a legitimidade. Não podia fazer uma denúncia como se fosse senador ou deputado. Cobrei dele as medidas necessárias para garantir o estado de direito.

Fui acusado de fazer o jogo político da ditadura, ou ainda pior, do PT.

Na última década do século XX, passei semanas no Nordeste em busca de poços que seriam perfurados com recursos públicos. A reportagem evoluiu para obras com mais de 100 anos, e que recebiam religiosamente recursos federais, todos os anos. Trombei com um potentado “progressista” ligado ao governo do presidente Itamar Franco.

A reportagem nunca foi publicada e eu ainda fui taxado de estar a serviço de poderosas forças de esquerda, cujo objetivo era desacreditar as instituições republicanas. Mais tarde, devidamente selecionadas, estas obras compuseram uma investigação no Congresso batizada pomposamente de CPI das Obras Inacabadas. Deu em nada, óbvio.

A reportagem de Veja distribuída as vésperas do segundo turno do último pleito eleitoral, segundo a qual, Dilma e Lula sabiam de tudo o que rolava na Petrobrás, merece uma qualificação só: LIXO!

Feita as pressas, tinha como objetivo claro interferir diretamente no resultado das eleições. Pior. Nenhuma das informações veiculadas se confirmou.

É jogo jogado, como diria o Elio Gaspari. Afinal, a Editora Abril não foi a única que tentou interferir nas eleições. Muitos veículos fizeram isso por dinheiro ou para se cacifar numa eventual eleição da oposição. E outros fizeram isso apenas para se identificar com uma parte do eleitorado que rejeitava o governo.

Veja foi descarada. A Editora Abril nunca teve simpatias por teses e governos progressistas. Nem no Brasil nem no mundo. É um direito dela. Já havia até feito conluios com criminosos, vide o celebre caso Carlinhos Cachoeira. Desta vez, entretanto, passou da conta. Colocou mais um tijolo no túmulo que erigiu ao jornalismo ali na avenida Marginal do rio Pinheiros. A  sociedade tem mecanismos jurídicos para se defender, o governo também. Pessoalmente, duvido que aconteça alguma coisa. Passado o frisson eleitoral, todos vão se refestelar no banquete dos rapapés, como se nada tivesse acontecido.

O jornalismo é a arte de incomodar os poderosos e confortar os desassistidos. Eu acredito nisso. Ao longo de mais de 40 anos de carreira, testemunhei vários casos de heroísmo, ou de romantismo, que mudaram o rumo da história. E eu me orgulho bastante de ter contribuído, ainda que modestamente. Na redação ou na assessoria. Se isso é ser romântico, que seja.Se romântico é sinônimo de ingênuo, isso também não me incomoda. Felizmente não estou sozinho. Tenho testemunhado o surgimento de novas gerações de repórteres que ainda carregam consigo o brilho nos olhos, que se colocam humildes diante da notícia. O jornalismo mudou, mas não morreu. 

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