sábado, 29 de novembro de 2014

O dia da fúria


O dia da Fúria: de William Foster e do engenheiro portenho 




Confesso que nos anos 90, me identifiquei muito com um personagem vivido por Michael Douglas, no clássico Um Dia de Fúria, dirigido por Joel Schumacher e escrito por Ebbe Roe Smith. Quem nunca passou por uma situação limite, mais ou menos como aquela manhã de William Foster, que jogue a primeira pedra.
Quando o dia começa ruim, diz a sabedoria que o ideal é voltar para a cama e passar o tempo todo sem sequer ligar o interruptor de luz.
As coisas começam de forma gradativa e na maioria das vezes usual:
1)   Você acorda com um telefonema que te cobra ou te responsabiliza por providências que deveriam ter sido tomadas por outra pessoa. E precisa se controlar muito quando descobre que justamente a pessoa que deveria ter empreendido aquela ação foi  quem te acusou.
2)   Depois de se recuperar, você vai fazer a barba e descobre que a única lâmina disponível foi usada por sua filha adolescente.
3)   O seu telefone celular subitamente tem uma pane e você não consegue ligar ou receber chamadas.
4)   A jarra de sua cafeteira elétrica está mal encaixada e inunda a pia da cozinha com café.
5)   A primeira camisa que você quer vestir está sem botão no colarinho; você arrebenta o cadarço dos sapatos ao amarrá-los.
6)   Você desce esbaforido, mas descobre que seu motorista não chegou.
7)   Finalmente você entra no carro e o rádio está ligado na Bandeirantes. Você muda de estação, vai para a Pan e ouve uma senhora de nome Rachel Scherazade (quem é esta criatura¿) falando um monte de bobagens sem nexo.
8)   Enfim o telefone volta a funcionar e você recebe uma chamada da sua secretária com a informação de que seu chefe procurou falar com você, mas que ela sem saber o que fazer, disse que não sabia se você iria trabalhar.
9)   Mas, não é só. Ela avisa que o almoço com aquele velho amigo que vinha de Brasília e que você não via há muito tempo, foi cancelado.
10)               O pneu do carro furou. Clássico. E o macaco está quebrado.
11)               Você pega um taxi. O motorista insiste em falar de futebol e muito mal, justamente do teu trabalho.
12)               Quando você chega na repartição o teu crachá não passa na roleta eletrônica e a segurança insiste em fazer uma ficha cadastral completa para que você acesse o seu local de trabalho.

Não são nem 10 horas da manhã, o dia nem começou, ou melhor, os problemas de fato nem começaram e você começa a pensar na solução de William Foster.

Recentemente uma comédia de humor negro argentina (redundância, pois não¿), chamada Relatos Selvagens aborda seis relatos de situações limites. Gostei muito do filme de Damián Szifron, mas confesso que fiquei um pouco desconfortável com as histórias. O engenheiro que tem problemas com o Departamento de Trânsito e, sobretudo, o pai que desperta no meio da madrugada com a informação que o filho bêbado havia atropelado e matado uma mulher grávida possuem soluções previsíveis e hilárias. Mas, a realidade não é bem assim.

A vida moderna é marcada por situações estapafúrdias: certa vez em um fim de semana em um hotel em Araxá-Minas Gerais, fiquei perplexo quando o maitre do restaurante tentava se justificar pelo fato de que não havia queijo mineiro no Buffet. Outra engraçada foi em um resort em Alagoas, onde o gerente dizia alto e bom som que o estabelecimento não trabalhava com água de coco.

Uma vez em uma pizzaria em Brasília depois do maitre nos reacomodar três vezes, ele nos entregou o cardápio e avisou: “Infelizmente não temos mais pizza”.

Como assim¿

“Acabou a massa”.

Mas, o que tem para comer então¿

“Uma sobremesa, talvez”.  

Os brasileiros se levam muito a sério. Eu concordo com isso. Ficam revoltados quando a ilusão se desfaz e acabam se conformando da forma mais insólita possível.

Quem não se lembra da onda de ataques aos caixas automáticos dos bancos na cidade¿ A solução foi limitar o serviço até às 22 horas e reduzir o valor dos saques.

Mais brasileiro, diria mais paulistano que isso, impossível. Na impossibilidade de enfrentar o problema, retirem o sofá da sala.

Esta semana a Sabesp anunciou que vai aumentar a tarifa da água. Como assim¿ A cidade está numa penúria tremenda, os reservatórios estão secos e rachados. Pior, a empresa está fazendo uma gigantesca campanha no rádio e na televisão conclamando os paulistanos a economizar água em troca de descontos na conta e aí aumentam as tarifas!!!!!!!!!!!!

Por falar em água, certa vez durante uma festa de crianças na cobertura do meu prédio, em Brasília, acho que aniversário da Nina, uma de suas convidadas, vai saber por qual razão, encheu uma bexiga com água e mandou lá de cima para o teto de um Corolla.

Claro, fez um estrago danado. O proprietário algumas horas depois bateu na minha porta amparado por um oficial da gloriosa Polícia Militar, que insistia em me levar para a delegacia.

- Cara, eu sou teu vizinho, tua filha estava na festa, nossas filhas cresceram juntas. É claro que eu vou honrar o prejuízo que você teve.

Devia ser o Dia da Fúria dele. Alguns dias depois ele me mandou a conta. Mas, nunca mais me dirigiu a palavra. Vai entender...

Tem também o célebre caso da reforma no apartamento dos Jardins. Edifício de classe média alta, a proprietária decidiu reforma-lo. Durante um ano, foi aquele entra e sai de material de construção e pior, o chamado martelo hidráulico que batia durante todo o dia. Não havia como saber o que estava acontecendo e a reforma não acabava. Até que um dos vizinhos, um renomado e conhecido jornalista, decidiu interpelar a proprietária com um revolver, uma Beretta 47. Era o Dia da Fúria dele. Acabou todo mundo na delegacia.

Mas, nenhuma ganha de um português, situação que eu testemunhei quando ainda era criança. Um padeiro passava pelas ruas a vender pão, pão doce, roscas, em uma linda carroça vermelha. Uma bela tarde, uma senhora decidiu implicar. Reclamou que o filão de pão italiano estava muito duro, depois que estava muito assado. Depois reclamou do troco. Do papel que envolvia o pão. Reclamou do tempo, da vida. Era o Dia dela.

O pobre do português da carroça segurou olimpicamente. Apenas afinava o bigode de tempos em tempos.

A mulher havia ido embora, ela já estava na boleia da carroça, quando divisou uma trava de madeira à sua frente. Desceu resmungando se abaixou para pegar o pau, quando subitamente o pobre do cavalo, que usava antolho, decidiu morder a cabeleira ruiva do carroceiro.

O português enlouqueceu e desferiu um soco tremendo na testa do cavalo, que imediatamente, dobrou os joelhos.

Finalmente tem também a história do cara que morava com a família ao lado de um lago, na periferia de Belo Horizonte. Com o salário no bolso, depois de meses  de desemprego, ele chegou em casa e deu tudo para a mulher que foi para o supermercado para, finalmente, fazer as compras do mês.  Em casa restava um pedaço de queijo duro e meio pacote de café.

A mulher ao sair do supermercado com as compras foi assaltada por um bando de arruaceiros. Tomaram as compras e o resto do dinheiro.

Quando chegou em casa, machucada e humilhada, o marido ainda a confortou. Depois pegou o velho caniço atrás da porta e foi para o lago, na esperança de pegar um lambari que servisse de jantar.

No meio do escuro, quando banhava as minhocas, luzes de lanterna o denunciaram na beira do lago. A Polícia Ambiental  levou o pobre coitado para a delegacia. Crime inafiançável. Ficou preso por mais de 40 dias. Para piorar, os arruaceiros que assaltaram a mulher foram presos, na mesma delegacia, e soltos três dias depois.

Bem, como se pode ver situações limites são frequentes. Um pouco de fluoxetina, bom-senso e tolerância podem servir de bálsamo numa situação dessas. Caso contrário, os resultados podem ser imprevisíveis.



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