segunda-feira, 13 de junho de 2016

Um deus no céu e um maestro no podium

Aida, primeira montagem desta gestão: participação de todos os corpos estáveis


Gosto de música desde que me conheço por gente. Aos seis anos debutei no Theatro Municipal numa matiné de Rigoletto. Acho que minhas duas primeiras paixões foram o futebol e os concertos matinais que ocupavam as manhãs dominicais. 
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Não tive a sorte de me dedicar a um instrumento, embora tenha dedilhado um piano e aprendido a ler uma partitura. Desta forma, decidi investir na capacidade de ouvir, de distinguir intérpretes, de analisar execuções. Por conta própria estudei um pouco de regência, história da música, harmonia, solfejo e fraseologia.

Este conhecimento me permitiu, por exemplo, perceber que Milton Nascimento é um compositor complexo. Não é qualquer cantor ou cantora que se aventura nas suas canções. Que Cauby Peixoto era um monstro de um cantor, capaz de transitar tranquilamente entre Conceição e Irving Berlin, ou Cole Porter. Que algumas canções de Chico Buarque, notadamente aquelas compostas para o teatro, tinham a estrutura de um musical, para não dizer de uma ópera.

E, claro! Meu ouvido educado permitiu distinguir a Filarmônica de Viena da Banda da Guarda Civil Metropolitana de Osasco. 

Nada contra nada. Adoro, por exemplo, ouvir um cantor de cantina se esgoelando com o Sole Mio ou com Por una Cabeza. Cansei de ouvir o Champagne per brindare un incontro, na voz do Giovanni Bruno (Ah! Que saudades!).

Na minha juventude frequentei muito o Teatro Lírico de Equipe, que às vezes se apresentava numa garagem com cantores amadores, outras tantas no Teatro Arthur de Azevedo, com high lights de grandes óperas acompanhadas apenas por piano. Era um prazer inenarrável ouvir um mecânico de automóvel se transformar no Conde de Luna, ou a gostosinha do bairro em Mimi.

Guiado por mestres fui levado a conhecer os grandes templos da ópera e das orquestras sinfônicas. Primeiro em gravações e depois, graças a minha profissão e a sorte de ter percorrido as principais cidades do mundo, presencialmente.

Falstaff: montagem criativa de alto nível artístico
Sempre soube que o maestro John Neschling é genial e genioso. E que entre suas maiores qualidades está a capacidade, só conferida aos gigantes mitológicos, de transformar um conjunto musical numa orquestra sinfônica. Não afeito às pachecadas ou aos lances midiáticos, ele é rigoroso ao extremo. Vive da música e para a música e assim construiu uma carreira que o transformou no século XXI em um dos maiores regentes do planeta.

Transformar o Theatro Municipal em uma casa de ópera e, eventualmente, de concertos em padrões internacionais, é uma destas missões que se confia a uma personalidade como Neschling.

Ainda me lembro da execução dos interlúdios orquestrais do Peter Grimes, de Benjamin Britten, nos primeiros concertos, em 2013. Poucos minutos antes da apresentação, o prefeito me questionou porque eu estava tão aflito. Na verdade, suava frio, tinha as mãos constritas, o batimento cardíaco acelerado. Era um divisor de águas. Depois daquela noite, pensava eu, nada mais voltaria a ser como antes. E não foi. 

Começamos a produzir em série: Aida, Falstaff, Il Trovatore, Salomé, Carmem, Tosca, Eugen Oneguin, D.Giovanni, Lohengrin, entre outras.

Fora do poço, a série completa das sinfonias de Mahler. Faltam apenas a 7ª e a 8ª. O Tríptico Romano de Respighi com a Fura del Bauls, As Quatro Últimas Canções de Strauss. Foram três anos de realizações que levaram o casarão de Ramos de Azevedo a figurar entre os maiores teatros do mundo, literalmente.

Sonhar era permitido: D.Carlos, Boris Goudonov, Contos de Hoffmann, Parsifal, Peter Grimes, o Tríptico de Puccini, La Fanciulla del West, Der Freischutz, O Cavaleiro da Rosa. A série integral das sinfonias de Bruckner. O Réquiem de Guerra, de Britten, quem sabe as duas sinfonias de Elgar. Com os corpos estáveis celetizados, o céu era o limite.

Mas, forças estranhas se articularam em uma espantosa velocidade para punir os sonhadores. Apoiados em um modelo jurídico ultrapassado, perpetraram descaradamente um assalto aos recursos do Theatro. Não se sabe ainda ao certo, se 10, 12 ou 15 milhões, em três anos. Mas, se sabe quem são os autores. Estão às portas do cárcere. Pelo menos eu espero.

Na ânsia de se livrar da cadeia e do fato de que foram pegos com a boca na botija, jogaram lama em pessoas honradas, que sonhavam com o melhor para a cidade e que vibravam a cada acorde e a cada ária.

Pior. Reabriram as portas para um debate oportunista. Se agora era a hora de discutir o aprimoramento do modelo jurídico, valendo-se inclusive do bem sucedido da exemplo da OSESP , preferem questionar a via artística. Exatamente o que deu e está dando certo. 

Com base em um democratismo ultrapassado, querem rebaixar tudo a um nível primário e devolver o Theatro à mediocridade de antes. Quem sabe com concertos de funk ou rap, apresentação de corais de igrejas, bandas militares, formaturas e assim por diante.

Nada contra estas atividades. A Prefeitura dispõe de uma dezena de teatros municipais para este fim.

Também não tenho nada contra a formação de conselhos artísticos, de administração ou do que quer que seja, desde que seus membros saibam com o que estão lidando. Um especialista em artes plásticas, não necessariamente entende de Robert Schumann, ou de Claude Debussy. Um carnavalesco não entende de uma montagem de ópera. Um diretor de cinema pode muito bem aprender, mas sua habilidade com uma câmara não é suficiente para que ele entenda de balé.
Adoraria que a nossa orquestra tivesse a maturidade e a experiência da Filarmônica de Viena, que escolhe ela mesma os regentes que a dirigem. Ou a Concertgebown de Amsterdam, cujos músicos participam da sua programação artística. Quem sabe um dia a gente chega lá. Por enquanto, é fundamental termos uma direção autoral, assessorada e fiscalizada. Um deus no céu e um regente no podium.

Neschling: um dos dez maiores regentes em todo o mundo
E este regente tem de ser o melhor. Ter experiência. Formar músicos e cantores. Ser distinguido em todo o mundo. Atrair público de toda a parte. Desenvolver uma programação específica para formar plateias, sem rebaixar o nível artístico. Oferecer o melhor. É o que temos com Neschling.

Deve ser apoiado por uma política de marketing que desenvolva o orgulho da população em ter um teatro de ponta, reconhecido internacionalmente, com história e excelência. Possa angariar apoios financeiros que assegurem sua independência e não onerem o poder público. Foi assim que as maiores orquestras americanas foram criadas. Foi assim que as principais orquestras europeias passaram pelo horror da segunda guerra e ressurgiram.

São Paulo se orgulha muito da sua vida cultural. E tem razão para isso. Pode ser também um dos maiores centros de difusão de música clássica e ópera em todo o planeta. Para isso, basta levar a sério e aprimorar o bem sucedido projeto que está em execução. Os teatros de ópera e de concerto de todo o país foram dizimados pelo voluntarismo de uma meia dúzia de “entendidos”. Não vamos, nós também, cometer este mesmo erro.

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