quarta-feira, 1 de junho de 2011

Vozes do Além

 
Transcrito da  IstoÉ número 1285 de 18 de maio de 1994 
Nascido na França, foi no Brasil que o espiritismo  conquistou o maior número de adeptos
 

Candomblé, umbanda, quimbanda, espiritismo, mediunismo, mediunidade, esoterismos, pentecostalismos, catolicismo, orientalismos de uma maneira geral, nenhum povo, como o brasileiro, gosta tanto de lidar com o sobrenatural, ou com o desconhecido. Não há uma família que não conheça pelo menos uma benzedeira, um padre mágico capaz, por exemplo, de desfazer um  quebranto (aquela horrível sensação de sonolência e torpor,  invariavelmente relacionada a  mau-olhado) ou um pai-de-santo. O brasileiro é, sobretudo, um crente.
Dados da FEB - Federação Espírita Brasileira - estimam que um quinto da população – cerca de 30 milhões de brasileiros – acredita nos atributos  da  alma, na  sobrevivência  do espírito e na comunicação entre os vivos e os mortos. Deste total, entretanto, apenas sete milhões são propriamente espíritas, ou seja: seguidores de Allan Kardec, o codificador da doutrina. Os números são surpreendentes, ainda mais quando relacionados com cerca de 5,6 mil associações espíritas em todo o país, apenas para citar as que são filiadas a FEB.  
Allan Kardec, na verdade Hippolyte Leon Denizard Rivail, um pedagogo nascido em Lyon, em 1804, discípulo de Pestalozzi, jamais saiu da Europa. Mas é em solo brasileiro que a sua doutrina – substanciada em três dos cinco livros que escreveu – é mais praticada e suas teorias têm o maior número de seguidores do mundo. A primeira tradução de um livro de Kardec para o português foi feita em 1875 por Joaquim Carlos Travassos. A FEB recebeu os direitos de tradução e publicação de toda a obra em 1897 e se transformou na maior editora espírita do mundo. Hoje são mais de
400 títulos em edição permanente. Alguns em inglês, francês, espanhol e esperanto. Apenas o Evangelho Segundo o Espiritismo já teve 109 edições, perfazendo um total de 2,65 milhões de exemplares. O Livro dos Espíritos, até 1992, teve mais de 72 edições, um total de 1,15 milhão de exemplares, enquanto que o Livro dos Médiuns teve 59 edições, somando 784 mil exemplares.
Kardec não é, entretanto, a única estrela da FEB. Um humilde funcionário público do Ministério da Agricultura, hoje aposentado, com 84 anos, Francisco Cândido Xavier tem mais de 80 títulos publicados, todos psicografados, quer dizer, ditados por espíritos desencarnados. Desde Parnaso além Túmulo, uma coletânea de poesias parnasianas publicada em 1931, Xavier nunca deixou de escrever. Até 1992, ele havia psicografado 59.2% de toda a literatura espírita deste século, juntamente com Waldo Vieira, mais 11,2%. Apenas um de seus livros, Nosso Lar, ditado pelo espírito desencarnado do médico André Luiz, e que relata a vida após a morte, vendeu mais de 880 mil exemplares em 40 edições – a primeira em 1944. Ao todo, ele supera os 12 milhões de exemplares vendidos apenas nos títulos publicados pela FEB.
Francisco Cândido Xavier - "Apenas Chico" - é considerado o mais perfeito médium da doutrina do mundo. Apesar disso, ele vive em uma casa simples na periferia da cidade mineira de Uberaba. Está doente. Sofre de angina. Recentemente, quebrou a perna e, desde então, deixou de frequentar o Centro Espírita da Prece. Lá, ele recebia centenas de pessoas, que vinham de todo o país, todos os sábados. 
Foi assim com Lisle Lucena, a ex-namorada do presidente Itamar Franco e primeira filha do presidente do Senado, Humberto Lucena. Ela foi a Uberaba com a irmã Iraê em busca de consolo. O sobrinho de Lisle, Renato, de dois anos, morrera afogado na piscina da casa de seu avô, em agosto de 1987.
Chico Xavier recebeu três mensagens que psicografou e cuja autoria se atribui a Renato. Numa delas, o menino conta que na vida espiritual está sob os cuidados da tetravó Carolina. "Para nós foi uma surpresa essa informação. Nem sequer lembrávamos do verdadeiro nome dela, conhecida apenas como vovó Quiquita", relata Lisle. 
Na mesma mensagem, Renato revela aos familiares como aconteceu o acidente. Tranquiliza o pai, Laerte, e o avô Humberto, dizendo que o ocorrido não havia sido provocado por ninguém. "Eu estava com muita sede e, vendo a piscina com tanta fartura de água, estirei-me na beira, na esperança de conseguir beber água com a minha própria boca. No esforço que fazia o corpo pesou muito e caí de ponta cabeça. Queria gritar, mas não consegui. Debati-me até que me apanhassem".
Com uma experiência tão pessoal com o espiritismo, Lisle aprofundou-se ainda mais nos ensinamentos de Allan Kardec. Passou a devorar todos os livros e depois presenteá-los. Ao presidente Itamar Franco, quando namoravam, deu o clássico Há 2.000 anos, cuja autoria se atribui ao espírito de Emmanuel. Trata-se de uma reflexão sobre o orgulho e a vaidade por meio da historia do senador romano Publio Lentulus, na verdade uma encarnação passada do próprio autor. 
Em outra mensagem de Renato, ele se refere ao namoro dos dois: "Quero dizer que também gosto muito da tia Lisle, junto daquele que chamarei por tio Itamar, e que estarei feliz se Jesus permitir que eles dois se unam em casamento". 
Toda a família Lucena acabou se convertendo ao espiritismo. Lisle, evidentemente, é a mais ativa. É assídua frequentadora da Comunhão Espírita cristã de Brasília e integra um grupo de cura, onde descobriu sua mediunidade, assunto do qual prefere não falar.
Hoje, Chico Xavier recebe apenas umas poucas pessoas em casa, depois de uma rigorosa triagem feita pelo seu filho adotivo, o dentista Eurípedes Higino dos Reis. Foi assim que as irmãs Juliana e Marta Plachi, ambas de Lajes, Santa Catarina, estiveram no início do mês com o médium, querendo informações sobre o paradeiro espiritual da outra irmã, Rita de Cássia, falecida em um acidente de ônibus na BR-116, Regis Bittencourt (São Paulo-Curitiba), em junho de 1993. Uma entre tantas consultas em que Xavier responde sempre com palavras de alento e segurança. A uma delas, entretanto, ele revelou que se prepara para, em breve, deixar este mundo. Questionado sobre a sua sucessão, limitou-se a dizer que não é tão importante que deva provocar este tipo de preocupação. Quanto a hegemonia na mediunidade brasileira, respondeu: "Isso é como capim em pasto. Seca um, nasce outro logo à frente".
A morte de Chico Xavier vai aguçar um debate muito grande no seio da própria doutrina. Afinal, raciocinam os espíritas, como a religião sobreviverá sem seu profeta maior? O presidente da FEB, Juvanir de Souza, ensina: "Cada grande médium vem com uma tarefa específica. Não há que se falar em sucessão".
Em Uberaba, entretanto, a ausência de Xavier pode representar o fim da "capital brasileira do espiritismo", como dizem ufânicos os radialistas locais. É claro que para eles a sucessão passa por um dos mais de 70 centros espíritas que existem na cidade e que, semanalmente, recebem a visita de centenas de pessoas, ansiosas por uma comunicação com o mundo do além. 
Para o comerciante Manoel Ivlarhns Chaves, de 77 anos, presidente do Centro Espírita Uberabense, fundado em 1911, Chico Xavier não terá sucessor. Ele atribui ao médium o que chama de impulso extraordinário no seio da doutrina, desde 1927, quando começaram  a circular as primeiras informações sobre a sua existência. “O espiritismo cresceu demais, por conta de sua influência“, diz.
Igual posição tem a também comerciante Sonia Maria Barsanti Santos, de 49 anos, uma das mais requisitadas companhias de Xavier. “Para nós espíritas ele é considerado o ponto máximo no espiritismo entre os encarnados'', diz ela. A adoração pelo médium transcende até os limites da religião. O arcebispo da cidade, dom Alexandre Gonçalves do Amaral, um pastor bastante linha-dura, tem se mostrado preocupado com o estado de saúde do médium. “Os pontos que nos separam são bem menores do que aqueles que nos unem”, costuma repetir.
O vereador e radialista Jesus Manzano, de 65 anos, já eleito por cinco mandatos, acredita que um dos dois mais notáveis discípulos de Xavier, Celso Afonso de Almeida ou Carlos Barceli, assumirá o lugar do velho médium. Com efeito, as dezenas de ônibus que chegam a Uberaba, em busca do Centro Espírita da Prece, são desviadas para os dois centros alternativos.
Barceli é um médium polêmico. Cometeu o erro de se indispor com o filho adotivo de Xavier, Higino dos Reis. A cidade se dividiu. Almeida, ao contrário, parece ter herdado do professor também o dom da humildade. Natural de Araxá, ele descobriu a mediunidade aos 23 anos, enquanto  participava de um culto do Evangelho. “Havia um caderno e um lápis. Puxei e comecei a escrever”, lembra. Com 51 anos de idade, ourives de profissão, Almeida compara Xavier com o rio Amazonas. “E nós somos seus afluentes”, diz. Quanto à possibilidade de ser o herdeiro do mestre, diz: “Não serei eu. Nesta encarnação, tudo o que eu almejo é me comparar com a unha do seu  pé”. 
Para inquietação dos idólatras de Xavier, entretanto, a liderança do movimento espírita no Brasil, pelo menos em termos mediúnicos, passara ao largo de Uberaba. Os espíritas mais convictos acreditam que esta responsabilidade cairá sobre o médium Divaldo Pereira Franco. Aos 67 anos, este baiano de Feira de Santana tomou-se um dos maiores pregadores do espiritismo.
Já viajou fazendo palestras pelos cinco continentes, em 47 países, e mais de 600 cidades. Condecorado em diversos países, foi o único a dissertar sobre a doutrina de Kardec da tribuna das Nações Unidas.
Famoso também pela obra social que desenvolve, desde 1952, em Salvador, através de creches, escolas e centros médicos e odontológicos, Pereira Franco já escreveu mais de 100 livros, a maioria psicografada, e já vendeu mais de quatro milhões de exemplares. Inquieto e intransigente na defesa da doutrina, ele não aceita sequer discutir a sucessão de Xavier. “Não se fala em substituir um santo’’, diz.
Mas, se Xavier se prepara para desencarnar, seu mentor espiritual, Emmanuel, se prepara para voltar a Terra. “Admitimos que ele estará regressando ao nosso meio de espíritos encarnados, no fim do presente século, provavelmente, na última década”, disse o médium, em entrevista em julho de 1971. Emmanuel já havia encamado como o senador romano Publio Lentulus e, mais tarde, como ninguém menos que o padre jesuíta Manuel da Nóbrega. Xavier psicografou pelo menos dois de seus grandes best sellers: A caminho da luz e Há 2.000 anos, cada um com mais de 150 mil exemplares vendidos.
Apesar da volumosa produção, Xavier doa todos os direitos autorais para entidades filantrópicas. “Não me pertencem”. Apesar disso, em 1944, Catharina Vergolino de Campos, viúva do escritor cearense Humberto de Campos (1886-1934), impetrou uma ação declaratória na 8ª Vara Cível do Rio de Janeiro contra a Federação Espírita Brasileira e o médium Francisco Cândido Xavier. Amparada por seus filhos Lourdes, Henrique e Humberto, todos titulares dos direitos autorais da obra literária do pai, sua viúva pedia que a justiça brasileira declarasse por sentença se a obra literária psicografada e atribuída a Humberto de Campos era ou não dele mesmo. Além disso, propunha uma solução para os direitos autorais da referida obra.
A justiça, é claro, saiu pela tangente. Considerou a ação uma mera consulta e arquivou o processo. Por conta dessa pendência judicial, o espírito de Humberto de Campos por várias vezes se comunicou por psicografia valendo-se do pseudônimo de Irmão X. Se a justiça preferiu a segurança da distância em uma ação declaratória em 1944, 41 anos depois o tribunal popular do júri de Campo Grande, ao contrário, absolveu um réu acusado de homicídio qualificado, baseado em um testemunho da vítima, psicografado pelo mesmo Chico Xavier. Foi em 1985, durante julgamento de um rapaz de nome João de Deus, acusado de assassinar sua esposa, Gleides, ex-Miss Campo Grande, no dia 1º de março de 1980.
O réu, assustado, durante o processo procurou auxílio espiritual em Uberaba. “De lá, voltou com duas mensagens psicografadas pelo médium Chico Xavier, cuja autoria se atribui à própria Gleides”, conta o seu advogado, Nelson Trad, hoje deputado federal e líder do PTB.
No mundo jurídico tal documento não tem nenhum valor. João de Deus foi pronunciado pelo juiz do júri de Campo Grande por homicídio simples. Trad recorreu e o processo, por sorteio, caiu nas mãos do desembargador Higa Nabukatsu para ser relatado ao Tribunal de Justiça. 
Nabukatsu é um kardecista convicto. Em seu despacho, considerou que as mensagens demonstravam claramente que o réu havia dado uma versão bastante coerente com os fatos. No máximo, ele poderia ser julgado por homicídio culposo.
No julgamento, diante do júri, Trad reconheceu que seus membros teriam o direito de desprezar os documentos. Mas não teriam como desconhecer a notoriedade dos poderes do médium. "Se fosse uma mistificação, caberia ao Ministério Público prová-la", explica o deputado mato-grossense-do-sul. 
O júri absolveu João de Deus por sete votos a zero, reconhecendo que o fato foi atípico, jurídico e sem autoria. O promotor Aldo Bastos, também espírita, apesar da sentença, recorreu. Um novo júri acatou a tese da imperícia e condenou João de Deus a um mês de prisão. 
 
Nelson Trad não é espírita. Diz professar a fé católica apostólica romana. Mas, ressalva: “Eu me convenci mesmo da autoria das cartas. Passei a acreditar na reencarnação, na vida após a morte e na comunicação dos espíritos”. João de Deus desde então dedica-se à caridade e trabalha em um hospital psiquiátrico espírita, onde ele se refugiou logo após a morte de sua esposa.
Trad não é o único político a acreditar na reencarnação. O senador Mario Covas, do PSDB de São Paulo, se define como espiritualista cristão. E faz questão de manter esta distinção: "Não sou kardecista". 
Covas sempre frequentou um centro de umbanda em Santos. Na passagem do ano de 1975 para 1976, sua filha Silvia, de 19 anos, foi vítima de um acidente e veio a falecer. Desconsolado, além de tudo vivendo um momento difícil em que estava cassado pelo regime militar, Covas acabou procurando o médium Chico Xavier, que visitava a cidade de Santos, em 1976. O encontro no Ginásio de Esportes de Santos, juntamente com outras famílias, e a comunicação com a filha perdida confortaram a ele e a sua esposa, Lila. “Xavier é um apóstolo, uma torrente de ternura”, diz ele. Até hoje, entretanto, a família Covas não comemora a passagem de ano.
É raro algum político assumir publicamente que professa o espiritismo, apesar da inegável força eleitoral que os adeptos e simpatizantes da doutrina constituem. Na Câmara dos Deputados há apenas o registro de dois grandes parlamentares, ambos paulistas; o deputado Campos Vergal, ainda na década de 50, e o deputado Freitas Nobre, desaparecido em 19 de novembro de 1990. Hoje, apenas o deputado Maurici Mariano (PMDB-SP) se diz seguidor da doutrina de Kardec. “O espírita, ao contrário dos evangélicos, não usa a religião em função da política”, explica.
Mariano tem razão. O rigor crítico dos espíritas não permitiria que alguém se elegesse deputado apenas por professar aquela religião. “Mas não estou só”, diz o deputado paulista, ex-prefeito da cidade de Guarujá. “Vários parlamentares têm me inquirido sobre a doutrina e  alguns deles, como Mendes Ribeiro (PMDB-RS) e Carlos Luppi (PDT-RJ), com muita simpatia”.  
Maurici Mariano diz ter ouvido de Chico Xavier um apelo aos confrades brasileiros. “Está na hora de os espíritas brasileiros assumirem posturas doutrinárias no exercício de suas responsabilidades”, teria dito o médium. Isso, na prática, pode significar uma mudança de postura da doutrina de Kardec em relação à realidade. Vale dizer que o Brasil pode no futuro se tornar a maior nação espírita assumida do mundo.

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