quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Com sua licença, mestre Akira!



Akira Kurosawa teria 101 anos se fosse vivo. Faz uma falta tremenda à humanidade



Enquanto a monotonia deste voo para Buenos Aires me entedia, tomo a liberdade de tirar uma história genial que Akira Kurosawa conta em seu Relato Autobiográfico, um dos tantos livros maravilhosos que a minha filha Bianca me presenteou.
Antes de mais nada, vamos combinar que Kurosawa é um dos cinco maiores diretores de todos os tempos. Aluno de Kanjirô Yamamoto, com quem trabalhou como assistente, superou em muito o seu mestre. Muita gente pode ter preferências variadas, Yojimbo, Rashomon, Sete Samurais, Donzoko, ou mesmo os seus últimos trabalhos Kagemusha, Ran, Dreams, Madadayo.
Descobri agora ao ler seu relato autobiográfico que ele considerava John  Ford e Jean Renoir os maiores diretores de todos os tempos e tinha uma curiosidade muito grande por Lewis Millestone, que arrebatou os principais Oscares de 1930, com a adaptação da obra extraordinária All Quiet in the Western Front, de Eric Maria Remarque.
Kurosawa leu muito, leu tudo que lhe caiu na mão, independente do autor ou do tema estar relacionado ao mundo oriental ou ocidental. Apesar da dificuldade em ter livros sobre obras de arte, era obcecado desde jovem por Gauguin, Cezanne e Van Gogh. Era um apreciador contumaz da música de Haydn. E viu muito, mas muito cinema Murnau e Harold Lloyd, Griffith e Chaplin, Eisenstein, Renoir, Ford, Stroheim, Lang. Ele simplesmente viu tudo o que importava nos anos 20 e 30.
Conectou-se com o de melhor no pensamento proletário japonês, esforçou-se para entender os grandes processos de transformação, a Depressão Americana, a Revolução Soviética. Foi testemunha do Grande Terremoto Kero de 1928, que praticamente destruiu o Japão todo e da ascensão do militarismo que culminou com o que ele chamava de Guerra do Pacífico.
Não obstante, a leitura de sua auto-biografia revela um homem tímido, que quase se desculpa por ter escrito sobre a sua vida. Coisa de japonês, dirão alguns. Coisa de gênio, direi eu. A timidez e a simplicidade é apenas uma forma. O conteúdo esta longe disso. Querem ver?
Em determinado momento do livro ele conta que quando morava com o irmão, em Asakusa, descobriu que o lugar que tanto gostava escondia uma realidade complicada. “Esta deve ser uma verdade em qualquer lugar – um exterior luminoso esconde um interior sombrio”.
Kurosawa descobre então historias terríveis como a do avo que estuprara a netinha, ou da mulher que atormentava a vizinhança toda noite com a ameaça de que iria se suicidar. Até que em uma noite foi ridicularizada pelos vizinhos depois que tentou enforcar-se e não conseguiu. Dirigiu-se discretamente até um poço e afogou-se, sem incomodar ninguém.
Mas, havia também histórias de Cinderelas e o próprio Kurosawa não consegue entender por que as madrastas judiavam tanto das enteadas. “Ignorância é a única explicação para este crime”.
Ele conta a história de uma menina que é obrigada a comprar uma erva chamada moxa, muito usada para cauterizar feridas, mas que pode ser usada também como forma de castigar uma criança uma vez que aplicada diretamente na pele queima profundamente.
“Um dia, quando eu habitava ainda a casa do meu irmão, nossa vizinha mais próxima apareceu soluçando. Chorava de uma forma insuportável para mim, apertando o peito com as duas mãos e tremendo convulsivamente.  Quando perguntei o que havia, ela disse que sua vizinha estava torturando a enteada novamente. Ouviu os gritos terríveis da garota e não conseguiu suportar. Através da janela da cozinha , viu a criança amarrada em um pilar. A madrasta jogava grande quantidade de moxa no abdômen da menina. Minha vizinha estava quase descrevendo os detalhes da cena quando olhou para fora e calou-se”.
O relato culmina com Akira seguindo a vizinha e passando por um pequeno buraco na parede da cozinha, na tentativa de resgatar a pobre criança torturada pela madrasta.
“Olhando pela janela da vizinha, avistei a criança amarrada no pilar com um cordão de quimono masculino. A janela estava aberta, como um ladrão, entrei na casa. Desfiz apressadamente o cordão que atava a menina ao pilar. Mas, em lugar de se sentir feliz com isso, ela olhou furiosamente para mim: ‘O que você pensa que está fazendo? Ninguém lhe pediu ajuda! ‘ Fitei-a, surpreso.  ‘Se eu não estiver amarrada quando ela voltar, ela vai me torturar de novo’. Senti como se tivesse levado um tapa na cara. Mesmo desatada , ela não poderia se livrar das circunstâncias que a meteram no pilar. Para ela, de nada valeria a solidariedade de outras pessoas. Piedade era um motivo de confusão ainda maior. ‘Corra e me amarre de novo’ , disse ela com tanta ferocidade que cheguei a pensar que me bateria. Fiz como ela me ordenou. Eu merecia aquilo”.
Depois disso, quase na hora de pousar, ainda me dá tempo de lembrar o brinde do professor no seu último filme: Madadayo. Ainda não!
Kurosawa é daqueles que a história conforta, mas que fazem muita falta no presente.
 

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