sábado, 20 de agosto de 2011

Sonhar é preciso. Viver não é preciso!





Prédio da prefeitura de Blumenau ilhado: o Itajaí havia tomado toda a cidade

Esta semana uma amiga e pupila querida completou 35 anos. Premiou-me com uma frase dramática e um susto: “Como você sempre diz, dobrei o Cabo da Boa Esperança e comecei a navegar em águas de Madagascar”. Ela me cita, sem nenhum pudor, para dizer que iniciava a segunda metade de sua vida. Isso sem dúvida não me assustou. O que me surpreendeu foi a substituição de um doce sotaque pernambucano por um leve acento gaúcho. Nada contra, afinal sou casado há 20 anos com uma gaúcha, tenho dezenas de amigos e amigas que arrastam a língua na verve farroupilha e eu mesmo aqui e ali escorrego em um tchê ou em butiá.
Certa vez, inconformados com a minha proximidade com o senador Carlos Wilson, a quem eu tive o prazer e o orgulho de assessorar, coleguinhas de Pernambuco, chocados, me qualificaram como um jornalista catarinense, enfronhado indevidamente no metiere que deveria ser de algum conterrâneo. Político como um muçum ensaboado, Cali saiu-se com essa: “Catarinense? Até onde eu sei ele é um italianão da Mooca, vive em Brasília, mas é conceituado e respeitado em todo o Brasil”.
A confusão dos coleguinhas pernambucanos se deve ao fato de que o meu registro profissional, com muito orgulho, é do Estado de Santa Catarina. As razões disso, explico em outro post com mais uma das minhas historietas. O importante é que dentre as 27 unidades da federação, a terra de Cruz e Souza é aquela pela qual eu nutro maior simpatia, onde vivi um período de sonhos e utopias. Foi lá, em um cenário ponteado por araucárias e sublinhado pelo magnífico vale do rio do Peixe, que eu desfrutei da amizade e da hospitalidade de gente nova, em torno de uma grimpa de pinhão, ou de um tortei caseiro, um copo de vinho ordinário.
Talvez a minha maior aventura em Santa Catarina tenha ocorrido em 1982, durante as grandes enchentes. No domingo a tevê mostrara a tragédia provocada pelo transbordamento do rio Itajaí, do rio do Peixe e do rio Iguaçu. O estado estava totalmente submerso. Quando me desloquei para a redação de IstoÉ na manhã de segunda-feira, tinha a absoluta convicção de que naquela noite estaria desembarcando em algum ponto do estado para fazer a cobertura. Mas, para minha surpresa, o chefe de reportagem, um sujeito estranho e difícil, decidiu inventar a roda e destacou para a cobertura o repórter Antônio Carlos Fon, que jamais havia pisado por lá. Para mim sobrou a greve dos petroleiros em Paulínia. Vá lá que o presidente do sindicato, Jacó Bittar, era e é meu amigo e, certamente, eu era muito bem informado no meio sindical. Mas, até a fruteira da Consolação sabia que o repórter certo para cobrir a enchente era eu. Conhecia tudo, os caminhos, os descaminhos, os prefeitos, a defesa civil... Só mesmo a genialidade daquela anta.
Pois bem, a despeito de ter passado todos os meus contatos para o Fon, ele não conseguiu sair de Itajaí, que também estava totalmente submersa. Na quarta-feira de manhã, quando o Tão chegou na redação me encontrou batucando a matéria sobre os petroleiros.
- Ué, o que você está fazendo aqui?
- Escrevo sobre a greve dos petroleiros de Paulínia.
- E quem está em Santa Catarina?
- O Fon.
Naquela noite eu embarquei em um voo para Navegantes, com a missão de em 48 horas, tentar resgatar uma cobertura praticamente perdida. No saguão de Congonhas encontro minha irmãzinha Suzana Veríssima, que, aliás, também era minha editora, se despedindo do seu companheiro Roberto Pompeu, então editor de Veja, que iria coordenar uma equipe de dez repórteres in loco, a partir de Florianópolis. E o idiota aqui ia enfrentar isso tudo sozinho.
Suzana não era querida. Era queridíssima. Beijou-me na face e sentenciou:
- Boa sorte! Você vai precisar.

Itajaí inundada: o cenário era terrível e devastador
Quando desembarquei 40 minutos depois em Navegantes, cujo aeroporto parecia um aeródromo inglês no dia da invasão da Normandia, o prefeito de Itajaí, Arnaldo Schmidt, me aguardava com as últimas informações. A situação era mesmo terrível. O bom Arnaldo, que me hospedou na sua casa, informou que uma reunião teria lugar na noite de quinta-feira no ilhado teatro Carlos Gomes em Blumenau. Mas, ele não fazia a menor ideia de como eu faria para chegar até lá.  
Naquela noite, confortado por um cobertor quente, em um pequeno quarto da casa do prefeito, soltei a imaginação e me pus a sonhar. Sim! Aquela reunião era a salvação da lavoura. Uma boa conversa com o governador Espiridião Amin, que além de eu não conhecer, não era, digamos assim, do meu grupo ideológico. Meia dúzia de histórias dos prefeitos do Vale do rio Itajaí. Um pequeno box com uma entrevista com o prefeito Dalton dos Reis, de Blumenau, e um cozidão com as notícias factuais dos jornais da terra.
Mino Carta me ensinou que duas informações e um personagem são suficientes para uma boa matéria. E eu tinha condições de ter mais que isso. Claro! Se chegasse até lá. Mas, ainda faltava a cereja. Como superar o Robertão e a gigantesca equipe de Veja. Gorda, farta, cheia de recursos, com helicópteros alugados e eu ali olhando para o teto do quarto.
Naquela noite sonhei. Sonhei sim. Que a bordo de um pequeno caminhão eu conseguia chegar a Blumenau costurando as colinas do Vale do rio Tijucas, atravessava a cidade de Brusque e, sempre pelo alto, chegaria a Blumenau por trás, sem passar por Gaspar que estava totalmente tomada pelas águas. Na princesa do Itajaí, os prefeitos se reuniriam a minha volta contando histórias e me passando informações. Era apenas um sonho!

O rio Itajai avançara sobre o porto: ferrovia totalmente destruida

O dia amanheceu com a luz do sol pálida, refletindo o lamaçal e as águas represadas do rio dentro de Itajaí. Sentei a mesa do café com os olhos ainda embaçados e os cabelos (ainda os tinha em profusão) sem pentear.
- Arnaldo, preciso de uma caminhonete e um motorista que não tenha medo de água ou de lama.
- O que você andou pensando?
- Vou tentar chegar a Blumenau pelo Vale do rio Tijucas.
- Hummmm! Não tinha pensado nisso. Mas, como você vai superar a inundação do próprio rio Tijucas?
- Com fé, a habilidade do motorista e um sonho que me acometeu a noite toda.
Ato contínuo, o bom prefeito pegou o telefone e pediu a caminhonete, abastecida, no menor tempo possível.
E lá fomos nós. Eu e o seo Mariano, lageano de estirpe, motorista do próprio prefeito, a bordo de uma D-20, com um motor Perkins que parecia de uma balsa.
Quando chegamos a Tijucas, voltou a chover e forte. A estrada construída na margem do rio estava coberta pelas águas.
- Seo Nunzio não me falta coragem. Mas, me sobra bom senso. Se a gente entrar ai, podemos até avançar um pouco, mas se atolarmos não teremos como voltar ou nos movimentar. Vamos ficar presos.
- Mariano é o seguinte: o bom senso que se dane. Eu tive um sonho esta noite e nele eu passava. Toca esta merda desta caminhonete para dentro do rio.
E lá fomos nós, lentamente, o eixo cardã da caminhonete rodava dentro da água. Vez por outra, Mariano mostrava toda a sua competência desviando de troncos que vinham em nossa direção. Ele não via a estrada, apenas intuía. Foram cinco longos quilômetros, várias patinadas, até que sabe Deus como o asfalto começou a surgir em meio a água e logo cruzamos uma colina e pudemos, do alto dela, ver o vale todo submerso.

Os vales catarinenses estavam todos submersos: visão desoladora
De Brusque a Blumenau por estradas secundárias ainda mais obstáculos. Quando não era uma ponte precária, eram barreiras no caminho, barro muito barro. Mas, não havia mais como desistir. A tarde já ia alta quando finalmente nós chegamos em Blumenau. A visão do alto era aterradora. O Itajaí havia passado pela Beira Rio, batia no segundo andar dos edifícios da rua 7 de setembro e chegava até a calçada da esquerda da rua XV de Novembro.
Implorei ao gerente do hotel Himmelblau que me desse um apartamento. Ele ponderou que a energia era de geradores, que os telefones funcionavam precariamente, que não havia serviço nenhum, mas me alojou em um apartamento bem alto, por via das dúvidas.
Fui a pé até o Carlos Gomes. Os prefeitos do Vale estavam todos reunidos. Me contaram histórias e histórias. Só pararam quando o governador Espiridião Amin chegou e passou a relatar as agruras de que tinha conhecimento e a insensibilidade do governo federal em enviar recursos financeiros para o Estado. O presidente João Figueiredo estava fora do país e o vice Aureliano Chaves não tinha autonomia para pedir um cafezinho no Palácio Jaburu.
A noite ia alta. Eu sentia uma fome tremenda. Os telefones do hotel estavam funcionando, mas o gerador de energia elétrica tinha pifado. Eu escrevia na minha Olimpus portátil, companheira velha de guerra. Faltava uma cereja. O sonho se realizara. Mas, faltava o plus.
O Tão certamente leria aquele cabedal de casos e tragédias e diria:
- Sim, mas cadê a surpresa? Aquilo que o leitor não esperava ler?
Hehehehe! Bom e velho Tão. Que saudades! Que problema! Ter um editor que também é repórter e brilhante.
Mas, onde diabos eu vou achar esta cereja no meio deste caos?
Eis que ouço o golpear na porta do apartamento. Abro e diviso um oficial da Polícia Militar, segurando uma lanterna, no meio do escuro.
Educado ele me diz:
- Seo Nunzio? O governador pergunta se o senhor não se importaria em trocar algumas palavras com ele?
Claro que eu fui atrás do oficial até a suíte do governador. Encontrei-o bastante apreensivo, preocupado, andando de um lado para outro.
- Olá! Como vai? Não sabia que você havia conseguido chegar até aqui. Aliás, como você fez isso? Sei que nós estamos em lados políticos opostos. Sei também de suas relações com os prefeitos da oposição. Mas, preciso te fazer um apelo: não é hora de pensarmos nisso e o estado precisa da sua ajuda.
- Governador, eu estou as suas ordens. O que posso te ajudar?
- Preciso falar agora com o ministro Delfim Neto. Você é um repórter reconhecido, certamente terá condições de encontrá-lo.

Espiridião Amin: governador ilhado pelas águas e pela política

Eu não tinha. Mas, o publisher da revista, Armando Salém, tinha. E os telefones?
Tirei o telefone do gancho rezando para que ouvisse o indefectível som de linha. Comecei a discar e alguém atendeu na redação.
- O Salém, rápido!
-Fala Bri, onde você está?
-Turco, o governador precisa falar com o ministro Delfim Neto agora. A situação aqui está preta.
- Me dê quinze minutos e volte a ligar.
O relógio se arrastava e o tempo não passava. Espiridião parecia angustiado e me perguntava a cada minuto quanto tempo passara.
Enfim liguei de novo.
- Bri, liga você para tatatatatata. Fala com ele primeiro.
Liguei.
- As suas ordens Nunzio.
- Professor eu estou aqui com o governador Espiridião Amin, em Blumenau. Estamos em uma situação muito complicada, como o senhor deve estar sabendo, e ele gostaria de falar com o senhor.
- Por favor, me passe o governador Nunzio, muito obrigado viu?
Os dois conversaram longamente. Espiridião fez um relato da situação do estado e Delfim começou a apontar como liberaria os recursos necessários. O rosto do governador iluminou-se.
Comecei a minha reportagem relatando com tons dramáticos a conversa do Espiridião com o Delfim e a revelação de que o Governo Federal iria liberar todos os recursos necessários para a reconstrução do estado. Depois relatei a tragédia. Fiz o box com a entrevista com o Daltinho. Eram oito da manhã quando eu comecei a perfurar a fita do telex para transmitir a reportagem.
Dormi o sono dos justos. Sonhei de novo. Com o estado reconstruído, os meios-fios pintados de branco. Uma grande festa na cidade. Enfim, a vida de novo na normalidade.
No sábado, o massacre. IstoÉ furava Veja com informações exclusivas. O paquiderme da marginal atolara na arrogância. O ratinho sonhador e solitário conseguira materializar o seu sonho.
Na segunda-feira saboreei o prestígio junto aos colegas de redação e tive o privilégio de responder ao Tão.
- Como você conseguiu?
- Sonhei chefe!
- Mas, você podia morrer.
- Sonhar é preciso. Viver não é preciso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário