segunda-feira, 18 de junho de 2012

A bucca del ballone, a média aritmética e a P2

 


Sarney e João Paulo II (foto do grande Gervásio Batista): arrebentar a boca do balão


Esta história é rigorosamente verdadeira. Não é lenda. O genial repórter e jornalista Dirceu Brisola, então correspondente, acho que de Veja, em Roma, acompanhava a visita do presidente Sarney ao papa João Paulo II. Entrão, foi se metendo na comitiva. Deixou os coleguinhas em uma sala e seguiu ao lado do presidente, até que prestes a entrar na câmara papal, foi convidado a voltar ao seu lugar. Quando retornou ao convívio dos colegas ouviu a pergunta:

- E aí Dirceu, o que o papa disse pro Sarney?

Dono de um humor corrosivo e maravilhoso, Dirceu não hesitou:

- Sarney, andiamo a spulcare la bucca del ballone!

Um grupo de jornalistas desatou a rir desbragadamente. Outro ficou perplexo em busca do significado de palavras tão, digamos, inquietantes.

Uma máxima do jornalismo diz que quanto mais sensacional a notícia, mais próximos estamos da barrigada. Todos conhecem a célebre história do boi-mate na revista Veja.

Para quem não sabe, a revista Science decidiu fazer uma brincadeira de 1º de abril e publicou um ensaio em que informava o feito sensacional de cientistas americanos, cujo talento havia permitido cruzamento de genes do tomate com o de bovinos. Dizia o texto da revista que isso permitiria, por exemplo, o plantio de um tipo híbrido de tomate cujo fruto seria, por exemplo, um hambúrguer ao sugo.

Atingido como um raio pelo sensacionalismo da história, o editor de Veja não deu bolas nem ao bom senso e cravou a matéria nas páginas. Foi o célebre episódio do boi-mate, assunto até hoje proibido no gigantesco edifício da avenida marginal do rio Pinheiros.

Outra questão inesquecível foi a divulgação das médias dos estudantes brasileiros no Enem de alguns anos atrás. Impressionados com a informação sensacional de que metade dos alunos estava abaixo da média e outra metade estava acima, o jornal O Globo cravou o título “Metade dos estudantes brasileiros estão abaixo da média no Enem”. Claro, a outra metade estava acima, e não poderia ser diferente.

O portal UOL incorreu no mesmo erro. Apelei ao bom senso da editora, aliás uma doce e competente criatura, que cheia de razão ainda me disse: “Consultei dezenas de matemáticos que me asseguraram que não tem nenhum problema se oitenta por cento dos estudantes estiverem abaixo ou acima da média”.

Esta semana, um repórter de O Globo implicou que os estudantes que vão se inscrever no SiSU, o sistema de seleção unificada das federais, do meio do ano, e que também tenham se inscrito no ENEM do fim do ano, deveriam ter o direito de pedir a taxa de inscrição de volta, caso consigam uma vaga agora. A tese por si é estapafúrdia, afinal uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas, chega a ser hilário alguém conseguir uma vaga na UFRJ, que vai lhe assegurar seis anos de educação superior gratuita, estar preocupado com uma taxa de R$ 35. Ainda assim, o jornal do nosso companheiro Roberto Marinho cravou a seguinte frase atribuída a um estudante descontente: “O governo só pensa em nos tomar dinheiro”.

Em tempo, o ENEM deste ano coletou mais de 6,4 milhões de inscrições. Menos de um terço pagou ou terá que pagar a taxa. Todos os estudantes de escolas públicas ou que por alguma razão não tem condições de pagar estão isentos.

Por falar em barrigadas, diz a lenda que um repórter argentino foi deslocado para o interior da Bolívia em busca de uma entrevista com o mitológico Ernesto Guevara Serna. Depois de dias na mais sofrida das tentativas, ele recebeu a informação de que o guerrilheiro havia sido executado e, por baixo da porta da pensão onde estava hospedado, recebeu ainda o relato de tudo o que havia ocorrido nos últimos dias.

Sentou-se na máquina de escrever, redigiu várias reportagens e, por final, consegui transmitir para a redação em Buenos Aires. O editor, um boludo juramentado, ao ler o despacho comentou: “Este é um caso típico de um repórter que enlouqueceu”. E jogou o texto no lixo. Em seguida mandou telegrafar: “Vuelva por que estas loco!”

Quem publicou com primazia, furo mundial, a morte de Guevara foi o pequeno e provincial diário Gazzetta de Antofagasta.

A morte de Guevara era uma notícia sensacional. E logo os editores em todo o mundo queriam sites exclusivos e informações novas. A melhor de todas foi do correspondente do Corriere della Sera, no Brasil, que cravou, desde a avenida marginal do rio Tietê, a manchete do dia seguinte: “Ho visto Guevara morto!”

No texto, discretamente podia se entender que a visão do guerrilheiro morto houvera se dado ao contemplar uma fotografia. Mas, a reportagem era cheia de detalhes e de minúcias aventurescas, como se o repórter estivesse embrenhado nas matas bolivianas.



Um despacho inquietante sobre o paradeiro de um criminoso



Gelli, hoje condenado, e com Ortolani; tempos do fascismo




Num final de sexta-feira, eu e o grande Hélio Campos Mello estávamos destacados para viajar no domingo para a enésima reportagem sobre a ascensão da classe média paraguaia. Eis que um discreto telegrama da Associated Press entregava que o poderoso Lício Gelli, homem forte da loja maçônica Propaganda Dois, o homem mais procurado na Itália por crimes que iam desde a bancarrota do Banco do Vaticano até chantagem a Sua Santidade, havia desembarcado em Montevidéu.

Numa tarde fria de domingo, descemos em Carrasco de um 727 da Cruzeiro e nos entregamos à inglória tarefa de encontrar o cara.

Foi uma saga, com lances rocambolescos de perseguição nas ramblas, informações confidenciais transmitidas por fontes que se protegiam por sombras. Mas, na terça-feira não só sabíamos o paradeiro dele -- uma mansão no bairro de Carrasco, atrás do Cassino – como tínhamos desvendado toda a rede da Propaganda Dois na América Latina, que passava, entre outras coisas, pela Soberana Ordem de Malta, cujo chanceler, Umberto Ortolani, era o principal mentor de toda a organização criminosa.

A história dos dois é digna de um romance. Esbirros de Benito Mussolini ficaram com o ditador até os últimos dias da República de Saló. De lá saíram com várias barras de ouro arrebatadas aos empresários e as grandes famílias italianas pelo Fascio e se refugiaram em Lima, no Peru, onde fundaram o Banco Financeiro Sudamericano (BAFISUD), uma espécie de sucursal do famoso Banco Ambrosiano. Este foi o gérmen, o ovo da serpente de uma gigantesca rede de intrigas e de extorsão, que culminou com a desgraça do sistema financeiro do Vaticano (um buraco de nada menos do que US$ 1,4 bilhões) e do cardeal Paul Marcinkus, pelo menos dois suicídios (Roberto Calvi e Michele Sindona), um deles por enforcamento sob a ponte de Londres. Claro, haviam ramificações por regimes autoritários latino-americanos, sobretudo no Uruguay, onde se dizia que o general Gregório Goyo Álvares, títere de plantão, era ligado a loja, e na Argentina.

Quando tivemos esta informação, eu e o Hélio nos entreolhamos e chegamos à brilhante conclusão que de caçadores, iríamos, se já não éramos, transformar-nos em caça. E diga-se, uma caça fácil.

Sair do Montevidéu foi uma operação de guerra. Estávamos sendo seguidos e tínhamos certeza de que seríamos presos quando tentássemos embarcar para o Brasil. Entramos na galeria Puerta del Sol, Hélio com uma cópia da matéria que eu já havia escrito e os filmes, escondeu-se enquanto eu servia de isca. Tomei um taxi na saída e fiquei mais tranqüilo quando vi que o Peugeot preto me seguia.

Hélio foi para Carrasco e embarcou em um vôo para Buenos Aires, sem ser molestado.No fim daquele dia, quando cheguei ao Hotel Internacional, o gerente, o senhor Lopes, me chamou a sua sala e calmamente me informou que eu não devia dormir no hotel, pois dois agentes do Estado haviam me procurado e revistaram todo o meu apartamento.

Naquela noite dormi na casa de meu compadre Raul Ronzone, em Malvin, e de manhã depois de conversar com o gerente da VARIG, o senhor Gonzáles, pai do zagueiro Daniel Gonzáles do Vasco, me preparei para embarcar no vôo da tarde, vestido como tripulante.

O editor de Istoé não emprestou grande importância a nossa aventura. Publicou duas singelas páginas no corpo da revista. Já o editor de Panorama, em Milão, foi à loucura. Deu capa: GELLI FORAGIDO NO URUGUAY!

Algum tempo depois, descobrimos que Gelli havia fugido para o Chile e Ortolani para o Brasil. Antes que eu começasse a pesquisar os negócios da P-2 no Brasil, houve um providencial incêndio em um único arquivo do Banco Central, em seu escritório de São Paulo. Justamente onde estava o dossiê do Banco Financeiro Sudamericano.

O juiz Falcone veio a São Paulo para interrogar Ortolani, que se escondeu atrás de uma cidadania brasileira e não respondeu a nenhuma pergunta. Um dos meus perseguidores no Uruguay, Hugo Rivas, decidiu mudar de lado e recorreu a Comissão de Direitos Humanos da Cúria Metropolitana de São Paulo. Queria um asilo, de preferência na Suécia. Na sala do advogado José Carlos Dias, no edifício Itália, perguntei-lhe se nós dávamos muita dor de cabeça ao sistema de inteligência do regime militar uruguaio.

 - Muita disse ele. No caso Gelli nós recebemos ordens de matá-los. Só que vocês foram mais rápidos.

Ou seja, eu e o Hélio poderíamos ter sido mortos pela ditadura uruguaia e o meu editor de Istoé, na melhor das hipóteses achou que esta história valeria apenas duas páginas.

Meu editor italiano, entretanto, pensou diferente. Gelli até onde eu sei está em prisão domiciliar em sua vila na Toscana. Tem 93 anos.

O cabeça da operação P-2, Umberto Ortolani, viveu um inferno em São Paulo, onde se refugiou. Até que, doente acabou se entregando em 1992 no Aeroporto de Milão. Condenado na Itália, morreu em 2002.

A P-2 esteve envolvida em operações para-militares da OTAN, no mercado clandestino de petróleo, na conspiração contra vários gabinetes europeus e financiou a repressão na América Latina. Descobrimos a ponta do iceberg por conta de um singelo telegrama da AP, informando em três linhas que Lício Gelli estava em Montevidéu. Ninguém acreditou. Nós acreditamos.

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